Depois da habitual ida à vila, o caderno de encargos para hoje era limpar e traçar a lenha resultante da limpeza das oliveiras equipado de catana e motosserra. Está um dia de muito frio e com uma ventaneira que aumenta a sensação de frio pelo que é uma tarefa adequada, aquece e não é pouco. O Mestre Zé Marrafa andava de posse das favas que se querem semeadas nesta altura e, se houvesse tempo, começava a semear os alhos que também já querem ir para a terra.
Passou por mim e, como sempre, surgiram
umas lérias.
“Assim não tem frio Sr. Zé. Nem agora, nem depois com tanta lenha que aí vai. É mau um homem ter frio. Passei muito
frio quando era gaiato”. Disse o Mestre Zé.
Eu sei, ele já me tem contado o
que era guardar porcos aos nove anos e o que se passava no Inverno. Hoje é um
homem que só se sente bem no tempo quente e sempre se mete comigo quando me
queixo do calor áspero do Alentejo. Bom mesmo para o Mestre Zé é o Verão que
nunca lhe parece demasiado quente e trabalhar ao Sol da tarde em Julho ou Agosto
… “não tem dúvida” diz ele.
Esta conversa, o frio que alguns miúdos
passam, recorda-me, já aqui o escrevi, da narrativa de Juan José Millás em
"O Mundo" quando enuncia, “Quem teve frio em pequeno, terá frio para
o resto da vida, porque o frio da infância nunca desaparece”.
Na verdade, no Inverno ou até no
Verão existem muitos miúdos que passam frio, às vezes muito frio, e nem sempre
conseguimos dar por isso. Acontece até que alguns deles sentem frio em
ambientes muito aquecidos ou mesmo no Verão, como disse. Não se trata do frio
que vem de fora, daquele de que falam os alertas coloridos que nos fazem no
inverno, que seria “fácil” minimizar se assim se quisesse. É, antes, o frio que
está à beira, um bloco de gelo disfarçado de família, de escola ou de
instituição de acolhimento, é o frio que vem de dentro e deixa a alma
congelada. Do frio que vem de fora, apesar de incomodar, acho que, quase
sempre, nos conseguimos proteger e proteger os miúdos, mas dos frios que estão
à beira e dos que vêm de dentro nem sempre o conseguimos fazer porque também
nem sempre os entendemos e estamos atentos ao frio que tolhe muitas crianças e
adolescentes.
Apesar de sentir confiança na
resiliência dos miúdos, expressa em muitíssimas situações de gente que sofreu e
resistiu a experiências dramáticas, uns mais que outros naturalmente, parece-me
fundamental que estejamos atentos aos frios da infância.
Muitas vezes, como diz Millás,
quem teve frio em pequeno terá mesmo frio no resto da vida.
Quando olhamos para muitos
adultos à nossa volta pode reconhecer-se o frio que terão passado na infância.
E são assim os dias do Alentejo.
Bom, vamos voltar à lida, daqui a pouco é de noite.
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