Entrou hoje em discussão pública o Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação 2021-2025. Do Plano consta a criação de um contingente especial, quotas, no acesso ao ensino superior e a cursos técnicos superiores profissionais para alunos das escolas do Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária.
A proposta já terá merecido, sem
surpresa, o apoio do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores
Politécnicos e do Conselho de Reitores das Universidades.
Quem acompanha o que escrevo e a intervenção
profissional conhece a minha posição de entender a qualificação como um bem de
primeira necessidade e a ferramenta mais potente de promoção de equidade, de desenvolvimento
pessoal, criação de projectos de vida bem-sucedidos e, naturalmente, do desenvolvimento
das comunidades.
A proposta em discussão levanta
várias questões pelo que de forma telegráfica algumas notas sem hierarquizar.
1 – O país educativo é, globalmente,
um conjunto de TEIP, os Territórios Educativos de Intervenção Prioritária e os restantes
Territórios Educativos com a Intervenção Possível. Dito de outra forma, existirão
muito poucas escolas ou agrupamentos sem alunos no escalão A da Acção Social
Escolar que, certamente, estarão em circunstâncias tão desfavoráveis como os
alunos dos TEIP.
2 – Os TEIP procuraram responder
aos efeitos de políticas urbanísticas desastrosas, criadoras de guetos enormes
que, naturalmente precisaram de equipamentos sociais, escolas por exemplo, com as
consequências conhecidas de exclusão, insucesso, etc. Só políticas e
investimentos estruturais de médio prazo com políticas publicas sectorais integradas
ao nível da requalificação e reordenamento se podem combater a existência de guetos,
a base de todos os problemas.
3 – É habitual ouvir-se que, recorrer
a quotas ou contingentes especiais para minimizar exclusão, não sendo o ideal,
pode ajudar a minimizar os problemas. A título de exemplo, considerando dados de
2017/2018, frequentaram o ensino superior 1644 alunos com necessidades
especiais, 0,5% do total dos matriculados no ensino superior, sendo que apenas
14% das vagas do contingente especial para estes estudantes foram ocupadas.
Donde, o caminho só por aqui é demasiado estreito.
4 – A decisão de continuar para o
ensino superior é construída durante todo o trajecto do básico e secundário.
Percursos com mais sucesso são potenciadores de expectativas mais elevadas, de valorização
do conhecimento e da qualificação e, portanto, potenciadores da intenção de
continuar a estudar. Donde, é imprescindível um forte investimento em recursos
e dispositivos de apoio que que sustentem mais sucesso para todos os alunos de
todas as escolas.
5 – Com maior frequência que
noutros grupos demográficos, as famílias mais vulneráveis expressam também
expectativas mais baixas ou nulas sobre o sucesso escolar dos seus filhos e
sobre a importância de estudar. Donde, seria desejável trabalho de mediação com
recursos competentes e adequados no trabalho com as famílias no sentido de
reajustar expectativas e reconstruir a atribuição importância ao estudo e à
qualificação. Só pessoas com fragilidades na saúde mental se “sentem bem” com o
insucesso, nas mais das vezes aprendem a conviver com essa “fatalidade” o que
lhes tranquiliza a forma como olham para si e para os seus filhos.
6 – As famílias portuguesas
enfrentam um dos mais caros sistemas de ensino superior da UE e da OCDE. Donde,
é crítica a questão dos apoios à frequência, tipologia, número de bolsas e
critérios de acesso a essas bolsas, para lá da existência ou não de
contingentes ou quotas.
7 – Embora já seja feito em
muitas escolas, sobretudo no final e durante o pós-básico, seria desejável que
os dispositivos de orientação vocacional tivessem os recursos necessários para
de forma alargada providenciarem informação clara sobre a natureza da oferta formativa,
das suas características e solicitações, a que áreas de desempenho permitem aceder
no mundo profissional, etc. Por outro lado, esse apoio também envolve o
trabalho com os alunos no sentido de ajudar a um processo de tomada de decisão
que seja base para procurar qualificação, de natureza diversa, no ensino
superior.
8 – Já no ensino superior e para
todos os alunos é importante que existam dispositivos de apoio institucionais e também formas de mentoria desenvolvidas já por alunos a frequentar os estabelecimentos que contribuam para melhores e mais rápidos
processos de adaptação a novas rotinas, métodos de trabalho, dificuldades de
adaptação, etc.
9 – Uma nota final para o óbvio,
as mudanças mais estruturais requerem investimentos e os recursos são finitos,
nenhuma dúvida. No entanto, as políticas públicas exigem opções e, também por
isso, serão avaliadas.
Era isto.
4 comentários:
Caro Zé Morgado,
As escolas TEIP são uma invenção governamental cujo objetivo passa por manter as denominadas escolas difíceis, inseridas em comunidades chamadas de risco, onde se sobressai os elevados níveis de despesa, de indisciplina, de abandono e de insucesso, rácios professor/alunos de exceção e um número considerável de assessores da direção e técnicos da área social (tachos).
Num estudo recente (https://doi.org/10.1590/S0104-40362018002601036) sobre os programas de educação compensatória, no caso português o TEIP, os resultados sugerem a ausência de impacto do programa TEIP na melhoria dos resultados escolares. Consequentemente, discute-se a eficácia da transferência de recursos materiais e humanos para estas escolas, especialmente considerando que a sua integração em programas de educação compensatória pode gerar fenómenos de estigmatização.
Para Powers, Fischman e Berliner (2016) a Escola não pode ser o equilibrador das desigualdades produzidas pela sociedade: as desigualdades sociais devem ser enfrentadas pelos políticos, ao invés de se refugiarem em medidas de caráter paliativo ou compensatório.
Cumprimentos.
Justamente, Rui. Por isso sublinho a necessidade de respostas estruturais e integradas. Intervir, melhor ou pior, apenas a jusante tem um potencial de sucesso bastante mais baixo.
Cumprimentos
A boa literatura dá nomes a tudo aquilo que vivencio há 12 anos a esta parte num agrupamento TEIP. Hoje li três artigos e destaco este excerto de um deles:
À semelhança das ZEP, os TEIP deveriam pressupor a transformação dos territórios, das comunidades locais e do próprio funcionamento do sistema educativo, podendo ser encarados como “laboratórios” que contribuiriam para a mudança social através da educação.
No entanto, a análise dos princípios políticos que, desde o início, regularam os TEIP, demonstra que este dispositivo político continha, afinal, um propósito mais pacificador que democratizador dos públicos difíceis. Os seus pressupostos assentavam numa intervenção educativa inclusiva em contextos marcados pela exclusão social mas, em termos práticos, muito poucos agrupamentos de escolas desenvolveram, até à data, uma intervenção consubstanciada no fortalecimento da relação com as famílias e restantes parceiros locais.
Origem: https://www.researchgate.net/publication/314520173
Os dados conhecidos sugerem níveis de mudança pouco significativos e ao nível estrutural parecem inexistentes. Não está em causa o esforço realizado, mas modelo, objectivos e estratégias.
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