quinta-feira, 17 de outubro de 2019

EDUCAÇÃO FAMILIAR E SUPERPROTECÇÃO


Há já uns dias li no Público uma interessante entrevista de Bárbara Wong a Javier Urra. Javier Urra é psicólogo e autor de dois livros que tiveram alguma divulgação em Portugal, “O Pequeno ditador” e o “O Pequeno Ditador Cresceu”: Publicou mais recente “Deixe-o Crescer” o que justificou a entrevista.
Como felizmente é cada vez mais acentuado relativamente à educação familiar, Javier Urra volta a sublinhar algo de que aqui tantas vezes também tenho falado, a importância da autonomia na educação de crianças e adolescentes. Neste livro é dado particular ênfase à designada “superprotecção” que por diversas razões informa a acção parental em muitas famílias e pode comprometer a promoção da autonomia e auto-regulação centrais no crescimento e desenvolvimento saudável de todas as crianças.
Num texto que aqui coloquei em 2018 sobre a questão da superprotecção referi um trabalho divulgado na Developmental Psychology que acompanhou durante oito anos um grupo de 422 crianças, entre os 2 e os 10 anos, e respectivas mães. Os dados sugerem que excesso de controlo, superprotecção, parece promover comportamentos e emoções menos reguladas nas crianças, ter impacto no ajustamento escolar e nas estratégias de auto-regulação à entrada na pré-adolescência.
O estudo, cuja metodologia sugeria alguma reserva no estabelecimento de relações de causa-efeito justificava, no entanto, alguma reflexão.
Os que por aqui vão passando reconhecem a frequência com que abordo a importância da promoção da autonomia das crianças como um dos princípios fundadores da educação familiar. O mesmo discurso e a forma de intervir neste sentido nos contextos familiares preenchem também boa parte do trabalho que realizo com pais e com futuros profissionais meus colegas a propósito de educação familiar.
De facto, um processo educativo terá com eixo estruturante a construção de gente que sabe tomar conta de si própria da forma adequada à idade e à função, actividade ou contexto em que se encontra. Este entendimento traduz-se num esforço contínuo de promover a autonomia das crianças e jovens para que "saibam tomar conta de si próprios" necessitando menos que "tomem conta de si". Sabemos que que também nos contextos escolares os professores gastam um tempo muito significativo a "tomar conta dos alunos" subatraído ao tempo para ensinar com implicações óbvias.
Parece-me fundamental que adoptemos comportamentos que favoreçam esta autonomia dos miúdos e dos jovens que, evidentemente, não se pode confundir com "autogestão", estar entregues a si próprios fazendo o que lhes pode passar pela cabeça. No entanto, é minha convicção que por razões que se prendem com os estilos de vida, com os valores culturais e sociais actuais, com as alterações das sociedades, questões de segurança, por exemplo, estamos a educar os nossos miúdos de uma forma que não me parece, em termos genéricos, promotora da sua autonomia e auto-regulação apesar das inúmeras habilidades e competências que desde muito cedo revelam. Aliás, a observação dos comportamentos de muitas crianças em sala de aula e em contextos familiares ou de outra natureza mostra isso mesmo.
A rua, a abertura, o espaço, o risco (controlado obviamente), os desafios, os limites, as experiências, são ferramentas fortíssimas de desenvolvimento e promoção dessa autonomia. É neste contexto que devem ser colocadas, trabalhadas e decidas as dúvidas sobre o que criança ou adolescente pode ou não fazer só.
Por outro lado, os miúdos são permanentemente bombardeados com saberes e actividades que serão obviamente importantes para o seu desenvolvimento e para o seu futuro mas, ao mesmo tempo, são miúdos, pouco autónomos, pouco envolvidos nas decisões que lhes dizem respeito cumprindo agendas que lhes não dão margem de decisão sobre o quê e o porquê do que fazemos ou não fazemos. Acabam por se tornar menos capazes de decidir sobre o que lhes diz respeito, dependem da "decisão de quem está à sua volta, companheiros ou adultos.
Um exemplo, para clarificar. Um adolescente não habituado a tomar decisões, a fazer escolhas, mais dificilmente dirá não a uma oferta de um qualquer produto ou um a convite de um colega para um comportamento menos desejável. É mais difícil dizer não do que dizer sim aos companheiros da mesma idade. Numa sala de aula é bem mais provável que um adolescente tenha um comportamento adequado porque "decida" que é assim que deve ser, do que por "medo" das consequências.
Só miúdos autónomos, autodeterminados, informados e orientados sobre os riscos e as escolhas serão mais capazes de dizer não ao que se espera que digam não e escolher de forma ajustada o que fazer ou pensar em diferentes situações do seu quotidiano. Este entendimento sublinha a importância de em todo processo de educação, logo de muito pequeno, em casa e na escola, se estimular a autonomia dos miúdos.
Creio que este entendimento está pouco presente em muito do que fazemos em matéria de educação familiar ou escolar e para todos os miúdos.
Todos beneficiariam, miúdos e adultos.

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