quarta-feira, 5 de julho de 2023

CRIANÇAS, JOVENS E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

 Li há dias no DN que está a ser preparado um programa especificamente destinado a crianças e jovens que experienciaram situações de violência doméstica, designadamente, situações de homicídio. A iniciativa integrará instituições públicas e Organizações Não Governamentais, fazendo parte de um novo Plano de Acção de prevenção e combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica, uma das componentes da Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação, divulgado no Conselho de Ministros da semana passada.

É uma questão que de há muito exige uma atenção particular.

De acordo com o relatório anual de 2021 da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, as situações que envolveram violência doméstica estavam entre as que maior subida tiveram relativamente a 2020.

No final de 2022 foi divulgado um trabalho de uma equipa do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade Lusófona que envolveu 1205 crianças filhas de 1010 mulheres que nos anos de 2014, 2015 e 1016 apresentaram queixa por violência doméstica.

Em termos sintéticos, a taxa de retenção no seu trajecto escolar é cinco vezes a superior à restante população escolar, revelam mais perturbação da sua saúde mental e mobilizam mais comportamentos ilícitos em contexto escolar, maiores níveis de consumo de álcool ou drogas. Trata-se de facto, de um quadro preocupante e indicador do caminho que importa percorrer.

Em Setembro de 2021 foi formalmente anunciada a constituição de 31 equipas para apoio a crianças e jovens vítimas de violência doméstica. Estas equipas integram as Respostas de Apoio Psicológico para crianças e jovens atendidos ou acolhidos na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.

Importa ainda registar que em Julho de 2021 foi finalmente aprovado o estatuto de vítima para as crianças e jovens em contexto de violência doméstica algo reclamado de há muito pelo Instituto de Apoio à Criança e pela a Ordem dos Advogados.

Para além de sublinhar os danos potenciais que esta exposição pode provocar nas crianças ou adolescentes, como o estudo agora divulgado mostra de forma bem elucidativa, gostava de chamar a atenção para um outro potencial efeito nas crianças que assistem a episódios, por vezes violentos, de violência doméstica, os modelos de relação pessoal que são interiorizados. Aliás, nos últimos anos tem-se verificado que a maioria das queixas de violência doméstica é apresentada por mulheres jovens o que permite pensar em crianças pequenas que assistirão a estes episódios e nas potenciais consequências. Nesse sentido, operacionalização das equipas de apoio foi uma boa notícia e desejo que o trabalho esteja em desenvolvimento.

Numa avaliação por defeito aos casos participados de violência doméstica, estima-se que cerca de um terço serão testemunhados por crianças. Se considerarmos que existem muitíssimas situações não reportadas, pode concluir-se que estas testemunhas, por vezes também vítimas, serão em número bem mais elevado.

Este quadro lembra o velho adágio "Filho és, pai serás", ou seja, num processo de modelagem social muitas crianças tenderão a replicar ao longo da sua vida, em adultos também, os comportamentos a que assistiram e que, tal como podem produzir efeitos traumáticos, poderão adquirir aos seus olhos, infelizmente, um estatuto de normalidade.

Não é certamente por acaso que estudos recentes em Portugal evidenciaram números elevadíssimos de violência em casais de jovens namorados universitários, uma população já com níveis de qualificação significativos.

Neste contexto e com o objectivo de contrariar uma espécie de fatalidade em círculo vicioso, os miúdos assistem à violência doméstica, replicam a violência, a sociedade é violenta, quando crescem são violentos em casa, e assim sucessivamente, importa que os processos educativos e de qualificação sublinhem a dimensão, a formação cívica e o quadro de valores.

Não é nada de novo, a afirmação desta necessidade.

A questão é que a intervenção junto das famílias e a tentativa de contrariar dinâmicas disfuncionais, violência doméstica por exemplo, não dispõe dos meios e recursos suficientes e os riscos para crianças e jovens são significativos.

Esperemos que as medidas agora anunciadas, sejam mais do que uma promessa, e aumentem significativamente os níveis de protecção e apoio a crianças e jovens.

Como afirma, Benedict Wells em “O fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se sabe quando nos vai atingir”.

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