Li há dias no DN que está a ser preparado um programa especificamente destinado a crianças e jovens que experienciaram situações de violência doméstica, designadamente, situações de homicídio. A iniciativa integrará instituições públicas e Organizações Não Governamentais, fazendo parte de um novo Plano de Acção de prevenção e combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica, uma das componentes da Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação, divulgado no Conselho de Ministros da semana passada.
É uma questão que de há muito
exige uma atenção particular.
De acordo com o relatório anual
de 2021 da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças
e Jovens, as situações que envolveram violência doméstica estavam entre as que
maior subida tiveram relativamente a 2020.
No final de 2022 foi divulgado um
trabalho de uma equipa do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade
Lusófona que envolveu 1205 crianças filhas de 1010 mulheres que nos anos de
2014, 2015 e 1016 apresentaram queixa por violência doméstica.
Em termos sintéticos, a taxa de
retenção no seu trajecto escolar é cinco vezes a superior à restante população
escolar, revelam mais perturbação da sua saúde mental e mobilizam mais
comportamentos ilícitos em contexto escolar, maiores níveis de consumo de
álcool ou drogas. Trata-se de facto, de um quadro preocupante e indicador do
caminho que importa percorrer.
Em Setembro de 2021 foi
formalmente anunciada a constituição de 31 equipas para apoio a crianças e
jovens vítimas de violência doméstica. Estas equipas integram as Respostas de
Apoio Psicológico para crianças e jovens atendidos ou acolhidos na Rede
Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.
Importa ainda registar que em
Julho de 2021 foi finalmente aprovado o estatuto de vítima para as crianças e
jovens em contexto de violência doméstica algo reclamado de há muito pelo
Instituto de Apoio à Criança e pela a Ordem dos Advogados.
Para além de sublinhar os danos
potenciais que esta exposição pode provocar nas crianças ou adolescentes, como
o estudo agora divulgado mostra de forma bem elucidativa, gostava de chamar a
atenção para um outro potencial efeito nas crianças que assistem a episódios,
por vezes violentos, de violência doméstica, os modelos de relação pessoal que
são interiorizados. Aliás, nos últimos anos tem-se verificado que a maioria das
queixas de violência doméstica é apresentada por mulheres jovens o que permite
pensar em crianças pequenas que assistirão a estes episódios e nas potenciais
consequências. Nesse sentido, operacionalização das equipas de apoio foi uma
boa notícia e desejo que o trabalho esteja em desenvolvimento.
Numa avaliação por defeito aos
casos participados de violência doméstica, estima-se que cerca de um terço
serão testemunhados por crianças. Se considerarmos que existem muitíssimas
situações não reportadas, pode concluir-se que estas testemunhas, por vezes
também vítimas, serão em número bem mais elevado.
Este quadro lembra o velho adágio
"Filho és, pai serás", ou seja, num processo de modelagem social
muitas crianças tenderão a replicar ao longo da sua vida, em adultos também, os
comportamentos a que assistiram e que, tal como podem produzir efeitos
traumáticos, poderão adquirir aos seus olhos, infelizmente, um estatuto de
normalidade.
Não é certamente por acaso que
estudos recentes em Portugal evidenciaram números elevadíssimos de violência em
casais de jovens namorados universitários, uma população já com níveis de
qualificação significativos.
Neste contexto e com o objectivo
de contrariar uma espécie de fatalidade em círculo vicioso, os miúdos assistem
à violência doméstica, replicam a violência, a sociedade é violenta, quando
crescem são violentos em casa, e assim sucessivamente, importa que os processos
educativos e de qualificação sublinhem a dimensão, a formação cívica e o quadro
de valores.
Não é nada de novo, a afirmação
desta necessidade.
A questão é que a intervenção
junto das famílias e a tentativa de contrariar dinâmicas disfuncionais,
violência doméstica por exemplo, não dispõe dos meios e recursos suficientes e os
riscos para crianças e jovens são significativos.
Esperemos que as medidas agora
anunciadas, sejam mais do que uma promessa, e aumentem significativamente os
níveis de protecção e apoio a crianças e jovens.
Como afirma, Benedict Wells em “O
fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se
sabe quando nos vai atingir”.
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