sexta-feira, 31 de outubro de 2025

O HOMEM QUE VIVE DO AR

 Lá naquela terra onde acontecem coisas há um homem que vive do ar, é verdade, vive do ar.

É curioso que desde muito novo, alguma gente o avisava de que não iria conseguir viver do ar. Quem o conhecia achava-o um habilidoso, sempre à procura de esquemas estranhos para conseguir alguma coisa. Contava umas mentiras de um lado, falhava umas promessas do outro, arranjava umas desculpas bem montadas e com alguma ligeireza ia construindo a sua vida. Naquela terra onde acontecem coisas o desenrascar, por assim dizer, é habitual.

Face ao comportamento do Homem algumas pessoas insistiam, "tens que mudar e aprender a fazer qualquer coisa de sério, não vais poder viver do ar", "não podes ser assim toda vida, andar sempre a inventar habilidades, julgas que vais viver do ar", etc.

Mas nada parecia levar o Homem a mudar algo, ia levando assim a sua forma de estar na vida e, ao fim de algum tempo, para espanto dos que o acompanharam mais de perto, conseguiu mesmo começar a viver do ar.

Tornou-se especialista em mostrar um ar sério, um ar de pessoa competente em muito assuntos, um ar de pessoa interessada pelos outros, um ar de pessoa com capacidade para resolver problemas, fáceis ou mais complicados, enfim um ar de qualquer coisa que parecesse bem. Até ascendeu a lugares importantes lá na comunidade, sempre a partir do ar que compunha.

Naquela terra onde acontecem coisas, muita gente gosta das pessoas que mostram um ar de qualquer coisa que lhes pareça positivo. E a verdade é que imensa gente nesta terra vive do ar. Do ar que compõem.

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

OS SINALIZADOS

 Ontem, numa conversa com duas colegas de percurso profissional veio à baila o recurso excessivo a uma terminologia que sempre me incomodou, a sinalização de crianças, dos alunos. Continuo a entender que sinalizamos em excesso, avaliamos de menos e respondemos ainda menos de forma adequada. Com alguma frequência aqui tenho abordado estas questões, mas hoje lembrei-me de um história que já aqui deixei, a História do Sinalizado.

Era uma vez um rapaz chamado Sinalizado. Filho de uma mãe muito nova e pouco preparada para ser mãe, nasceu antes de tempo e ficou Sinalizado, nome curioso. E assim continuou.

Em pequeno, devido às condições muito precárias e com bastante dificuldade em que a família vivia, continuou Sinalizado.

À entrada na escola com a mochila que já carregava logo perceberam que devia ser Sinalizado. E foi. Toda a gente conhecia o Sinalizado, toda a gente sabia das circunstâncias de vida do rapaz, por isso mesmo era um Sinalizado.

Mais crescido, os problemas em que estava frequentemente envolvido continuavam a fazer com que o Sinalizado assim continuasse, Sinalizado.

Já no final da adolescência o Sinalizado envolveu-se em algo de mais grave e sucedeu uma tragédia que encurtou a sua vida.

Muita gente que conhecia o Sinalizado se interrogava e dizia ter dificuldade em perceber como podia tal vida ser vivida por um Sinalizado. Até foi notícia de rodapé em alguns jornais mais dados a estas coisas que acontecem aos Sinalizados.

Mas isto foi só uma história triste e sem jeito. Os Sinalizados raramente entram em histórias bonitas e bem contadas.

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

SERENIDADE PRECISA-SE. É URGENTE

 Estamos perto dos dois meses após o arranque do ano lectivo em meados de Setembro.

O início de um ano lectivo deveria ser a ocasião de regresso à escola para a grande maioria de professores, funcionários, técnicos e alunos, para além, naturalmente do retorno das rotinas familiares relativas à frequência escolar. Para um infelizmente pequeno número de alunos e professores, terá sido, por assim dizer, a sua “estreia” que deveria decorrer apenas com a “ansiedade” de uma estreia.

Lamentavelmente, assim não acontece. A serenidade é um bem de primeira necessidade no trabalho educativo. No entanto, serenidade é o que menos temos nesta altura. É tempo demais sem que nada mude substancialmente.

Da gestão das políticas públicas espera-se, exige-se, as decisões que criam as condições de serenidade e normalidade do trabalho de alunos e professores.

Sabemos que ensinar e aprender têm sobressaltos que são naturais nestes processos. No entanto, o que nos preocupa, não parecem ser esses sobressaltos esperados.

Estamos num mundo às avessas.

O que temos são decisões ou falta delas que alimentam problemas e pouco impacto têm nas soluções.

O que temos é uma carga de burocracia que promove ineficiência e desgaste sem que o retorno justifique minimamente o esforço e o tempo despendidos.

O que temos em muitas escolas são climas pouco amigáveis para o trabalho educativo da comunidade.

O que temos, aliás, não temos, são professores suficientes para as exigências da população discente. No final da passada semana ainda existiam 1240 horários por preencher nas escolas. Em 488 agrupamentos havia pelo menos um horário por preencher e em 12 agrupamentos havia dez ou mais, lê-se no Público.

O que temos são discursos patéticos, ardilosos, que “martelam” a realidade desconsiderando o conhecimento e a experiência que tanta gente possui.

O que temos são fingimentos de “soluções” que, mais uma vez, alimentam os problemas.

Não, não está tudo mal, nem vai correr tudo mal.

Os professores, na sua esmagadora maioria continuam a “dar o litro” sustentados no seu sentido ético, deontológico e competência. Os alunos tentam, na sua maioria, fazer o melhor possível e, felizmente, serão bem-sucedidos, esperando que sucesso corresponda, de facto, a aquisição de conhecimentos e competências.

No entanto, a realidade não poderá ser esta, a que vivemos, mesmo que do ME venham outros retratos mais simpáticos.

Daí este meu cansaço e desabafo.

E … vai correr bem. Ou não.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

ELE E ELA NÃO FALAM COMO A GENTE, ASSIM É DIFÍCIL APRENDER

 De acordo como o Perfil Escolar de Alunos Filhos de Pais com Nacionalidade Estrangeira 2023/ 2024, publicado pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, continua a verificar-se uma diferença significativa no desempenho escolar dos alunos com pais estrangeiros, cerca de um quarto dos alunos reprova ou desiste no secundário

As taxas de retenção e desistência no secundário ascenderam a 25,5%, entre os alunos cujos dois pais tinham nacionalidade estrangeira (ou um dos pais e o próprio aluno). Representa uma diferença de 17,3 pontos comparando os alunos com pais portugueses, 8,2%.

Será razoavelmente claro que este desempenho está fortemente associado ao não domínio da língua portuguesa.

Antes do início do ano lectivo o MECI apresentou numa reunião com directores escolares um conjunto de medidas no âmbito de desenvolvimento do Plano +Aulas+Sucesso.

Entre as medidas apresentadas inscreve-se o aumento do número de mediadores culturais passando a 310 em 25/26 que intervirão em 347 unidades orgânicas o que representa um aumento de 23 face ao ano anterior e a intervenção em mais 28 unidades orgânicas.  O número, definido de acordo com o número de alunos migrantes inscritos em 23/24, continua a ser francamente insuficiente face à realidade das escolas e agrupamentos e aos problemas de alunos de outras nacionalidades em particular no que respeita ao domínio da língua.

Parece claro que a presença crescente de alunos estrangeiros nas escolas portuguesas coloca enormes desafios e necessidades. De acordo com dados do MECI acentua-se a heterogeneidade da população escolar, os agrupamentos têm, em média, alunos de 19 nacionalidades diferentes (quase o dobro do que acontecia em 2018/19) e existem escolas com jovens oriundos de 46 países.

Face a este cenário percebe-se a importância crítica da presença de mediadores linguísticos e culturais a quem competirá “promover a integração plena no ambiente escolar”.

Além dos mediadores, que trabalharão com alunos, professores, famílias e outros técnicos, está previsto que no âmbito do plano Aprender Mais Agora se verifiquem ajustamentos na oferta de disciplina de Português Língua Não Materna (PLNM).

Foi criado um “nível zero” que abrange alunos que não tiveram qualquer contacto prévio com a língua portuguesa ou mesmo com o alfabeto latino e ajustar-se-ão os dispositivos de avaliação e diagnóstico.

As escolas precisam de maior autonomia na colocação dos alunos nos anos curriculares considerando a sua origem e trajecto escolar.

Parece crítica a necessidade de mudança na Disciplina de Português Língua Não Materna pois a baixa frequência que se verifica compromete, obviamente, os objectivos para que existe, outro lado e em termos genéricos, verifica-se uma baixa de frequência da Disciplina de Português Língua Não Materna, em 21/22, tínhamos 2% de todos os alunos estrangeiros inscritos no 1.º ciclo, 12,5% dos que frequentam o 2.º ciclo, 15% no 3.º ciclo e apenas 5,1% dos que estão no ensino secundário.

Apesar dos indicadores não serem propriamente uma surpresa, pois tem vindo a aumentar a vinda para Portugal de cidadãos de outros países importa considerar que, contrariamente ao que as narrativas xenófobas que se vão escutando afirmam, é importante esta vinda de pessoas de outras paragens que se radiquem por cá através de projectos de vida bem-sucedidos e contributivos para o desenvolvimento das nossas comunidades. Minimiza-se o efeito do Inverno demográfico que vivemos levando ao envelhecimento significativo da população portuguesa rejuvenescendo-se as populações.

Como é evidente este movimento envolve famílias e, naturalmente, a existência de crianças e a necessidade da sua educação escolar, certamente, a mais potente ferramenta contributiva para a sua boa integração na comunidade.

Esta cenário não pode deixar de constituir o um enorme desafio para muitas escolas.

A disciplina de Português Língua Não Materna tem sido constituída com um número mínimo de 10 alunos e os recursos disponíveis são manifestamente insuficientes como directores e professores tem regularmente referido.

Está, pois, criada uma dificuldade acrescida para promover de forma eficiente o domínio da língua de aprendizagem, o português, e o impacto negativo que tal terá no seu trajecto escolar. Aliás, são bem conhecidas as enormes dificuldades que muitas comunidades portuguesas de emigrantes portugueses sentiram e ainda sentem no processo de escolarização dos seus filhos em diferentes países da Europa.

Sabemos da enorme dificuldade de conseguir que em cada escola se consiga responder de forma eficaz às necessidades específicas da população que a frequenta, nenhuma dúvida sobre isto.

No entanto, também sabemos que o domínio proficiente da língua de aprendizagem, escrita e falada, é imprescindível a um trajecto escolar com sucesso.

Não existe normativo ou discurso em educação que não sublinhe as ideias de educação inclusiva, equidade, a diversidade, etc. O problema está nas políticas públicas e nos recursos de diferente natureza que este desafio exige, a retórica não chega.

Estes alunos, tal como outros, enfrentam sérias dificuldades e um risco grande de insucesso como os dados evidenciam.

E é bom não esquecer que o seu sucesso será um forte contributo para as comunidades onde se integram, assim como poderemos ter de pagar um preço elevado pelo seu insucesso e exclusão.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

LIVROS E LEITORES, DE PEQUENINO É QUE ...

 Nos últimos dias o Público tem duas peças relativas às bibliotecas escolares  e ao trabalho dos professores bibliotecários. Em 2024/2025 nas escolas públicas estavam 1380 professores bibliotecários que têm uma média de 10 anos como responsáveis de bibliotecas e desenvolvem um trabalho notável.  Num país com índices de leitura preocupantemente baixos o seu trabalho nas escolas.

Entretanto, o Ministério da Educação no seu “ímpeto reformista” extinguiu o Plano Nacional de Leitura e a Rede de Bibliotecas Escolares. Apenas se sabe que estas áreas serão integradas no novo Instituto de Educação, Qualidade e Avaliação. Os professores bibliotecários vêem esta alteração com alguma reserva e temem o comprometimento do trabalho que está a ser realizado.

Com alguma frequência aqui tenho abordado a questão crítica da leitura e dos hábitos de leitura entre nós, em particular, dos mais novos, o tempo em que tudo se constrói.

Retomo algumas notas.

Dados do estudo Evolução das Práticas de Leitura dos Alunos do Ensino Básico e Secundário em Portugal, realizado por investigadores do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (​CIES) do Iscte-IUL para o Plano Nacional de Leitura, cerca de um em cada quatro alunos portugueses dos ensinos básico e secundário tem menos de 20 livros em casa. E que se no início da escolaridade as crianças demonstram maior interesse pela leitura, este vai decaindo ao longo dos anos. Em 2023, 96,8% dos alunos do 1.º ciclo tinham lido pelo menos um livro nos 12 meses anteriores; no secundário, apenas 78,2%.

Sem surpresa, também para os mais velhos os livros não são uma escolha. Segundo os resultados do Inquérito às Competências dos Adultos de 2023, publicado no final do ano passado pela OCDE, 41% dos adultos que apenas conseguem ler textos curtos e listas organizadas e um grupinho de 15% nem sequer isso consegue.

A promoção de hábitos de leitura de crianças e jovens é um eixo crítico na educação escolar e familiar das sociedades actuais.

Recordo que em 2023 doi divulgado o designado Manifesto de Liubliana, subscrito pela Associação Internacional de Editores, Academia Alemã de Língua e Literatura, Federação dos Editores Europeus, EU-READ, Consórcio de organizações europeias de promoção da leitura, PEN Internacional, Federação Internacional das Associações de Bibliotecários e Conselho Internacional dos Livros para Jovens, apresentado na Feira do Livro de Frankfurt que decorre de 18 a 22 de Outubro.

Esta iniciativa destina-se promover os hábitos de leitura entre crianças e jovens designadamente a leitura de livros e textos mais longos. O movimento é sustentado pela importância que para o desenvolvimento global e conhecimento a leitura assume e, naturalmente, motivado pelo abaixamento destes hábitos de leitura que continuam preocupantes.

Como já aqui tenho escrito, os livros e a leitura são bens de primeira necessidade para gente de todas as idades donde a insistência. Recordo sempre Marguerite Yourcenar que em “As Memórias de Adriano” escrevia “A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana.”

São múltiplos os estudos e referências que sublinham o impacto dos livros e da leitura no desenvolvimento e competências escolares no trajecto pessoal. Lamentavelmente, são também muitos os trabalhos que mostram que os hábitos de leitura são pouco consistentes entre as crianças, adolescentes e jovens como, sem surpresa, também o são entre a população em geral. Nos últimos tempos parece estar a despertar um maior interesse pelos livros, sobretudo entre os mais novos, associado a um fenómeno das redes sociais, os booktokers que lêem e divulgam livros no TikToK. Esperemos que se mantenha e fortaleça.

Os livros têm uma concorrência fortíssima com outro tipo de materiais, telemóveis, jogos ou consolas por exemplo, e que nem sempre é fácil levar as crianças, jovens ou adultos a outras opções, designadamente aos livros.

Apesar de tudo isto também sabemos que é possível fazer diferente, mesmo que pouco e com mudanças lentas.

Só se aprende a ler lendo e o essencial é criar leitores que, quando o forem, procurarão o que ler, livros por exemplo, em que espaços, biblioteca, casa ou escola e em que suportes, papel ou digital.

Um leitor constrói-se desde o início do processo educativo, escolar e familiar. Desde logo assume especial importância o ambiente de literacia familiar e o envolvimento das famílias neste tipo de situações, através de actividades que desde a educação pré-escolar e 1º ciclo deveriam ser estimuladas, muitas vezes são, e para as quais poderiam ser disponibilizadas aos pais algumas orientações.

Apesar dos esforços de muitos docentes, a relação de muitas crianças, adolescentes e jovens com os materiais de leitura e escrita assentará, provavelmente de forma excessiva, nos manuais ou na realização de trabalhos através da milagrosa “net” proliferando o apressado “copy, paste” ou resumos disponíveis das obras que são de leitura obrigatória ou recomendada.

 Neste contexto, embora desejasse muito estar enganado, não é fácil construir miúdos ou adolescentes leitores que procurem livros em casa, em bibliotecas escolares ou outras e que usem o "tablet" também para ler e não apenas para uma outra qualquer actividade da oferta sem fim que está disponível. A iniciativa dos booktokers que referi acima pode ser um bom sinal.

Felizmente e apesar das dificuldades também importa sublinhar que se realizam com regularidade experiências muito interessantes em contextos escolares no âmbito do Plano Nacional de Leitura e da Rede de Bibliotecas Escolares com os professores bibliotecários têm desenvolvido um trabalho essencial, ou em iniciativas mais alargadas a outras entidades como autarquias e instituições culturais. Com a sua extinção e desconhecendo o que segue o cenário não é positivo.

Sabemos, isso sim, que precisamos de criar leitores, eles irão à procura dos livros ou da leitura, mesmo em tempos menos favoráveis.

domingo, 26 de outubro de 2025

DOS DIAS DO ALENTEJO

 É Domingo, caiu uma água bem chovida durante a noite. O cheiro da terra molhada mantém-me mais ligado ao monte que ao mundo, ainda que o não consiga esquecer de tão feios que são os dias.

A apanha da azeitona terminou. Ainda estava um pouco verde, mas a disponibilidade dos companheiros que ajudam, o Carlos e o Luís, determinou que fosse esta semana.

Dá trabalho, cansa, mas sabe bem. Quase 1700 Kg estão entregues no lagar, veremos que azeite se recebe lá mais para Janeiro.

Não gosto de ver a azeitona a ficar nas árvores e cair apodrecendo sem ser colhida. Felizmente, vou conseguindo ajuda.

Ontem e hoje foi tempo de limpar e arrumar panos, varas e varejador. Para o ano, se cá estivermos, como dizia o Mestre Zé Marrafa, nova campanha nos espera.

Agora, retomo daqui a pouco, ando de posse da limpeza de alfarrobeiras e amendoeiras.

E são assim os dias do Alentejo, melhores e mais bonitos que os dias do mundo. Sorte a minha que os vivo.

sábado, 25 de outubro de 2025

NÃO, A MÁQUINA DO ESTADO NÃO ESTÁ A FALHAR NA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

 

A “newsletter” do Público sobre educação mostra uma síntese semanal do que vai sendo notícia. Esta semana, tem como título “A máquina do Estado falha na educação inclusiva”.

Após cinquenta anos de trabalho em educação sobretudo direccionado para o que corre menos bem,  já não sei muito bem o que dizer, mas … não consigo ficar calado.

Quando comecei, nos idos de setenta, tínhamos uma escola normal para os alunos “normais” e uma escola “especial”, a "instituição" para os alunos “deficientes”.

Depois conheci escolas normais que, para além dos alunos “normais” já recebiam alunos “especiais” no ensino especial, em salas dos “normais” e em salas de ensino especial, as “salas de apoio”. Chamava-se  Educação integrada. 

Depois as escolas deixaram de ser normais e passaram a ser escolas inclusivas, lidam com os alunos normais e com os alunos “universais”, com os alunos “selectivos” e com os alunos “adicionais”.

E assim chegámos à educação inclusiva face à qual a jornalista do Público, Catarina Moreira, afirma que a máquina do Estado falha.

Lamento, mas mais uma vez não me parece que a máquina do Estado falhe na educação inclusiva, a máquina do Estado falha na Educação, ponto.

A máquina do Estado falha nos professores, com tratos injustos e políticas públicas de educação inadequadas e com implicações diversificadas, ou seja, inclusivas. São óbvios aspectos como a falta de professores e a sua valorização que, aliás, estão ligados.

 A máquina do Estado falha nos profissionais que, para além dos docentes, são imprescindíveis à educação, técnicos (psicólogos, por exemplo, mas também em apoios especializados) ou assistentes operacionais.

A máquina do Estado falha nos equipamentos para a Educação. Hoje li que na escola que o meu filho frequentou vão ser retiradas turmas para outra escola da área por risco sério num dos pavilhões.

A máquina do Estado falha na Educação quando submerge os profissionais numa burocracia que ineficiente e consumidora de recursos e desgastante.

A máquina do Estado falha quando deixa pais e encarregados de educação inquietos e preocupados e impotentes face às dificuldades sentidas pelos seus filhos para cumprir o direito à Educação.

A máquina do Estado falha …

Não, a máquina do Estado não falha na Educação Inclusiva, é mesmo falha na Educação.

PS - Não deveria ser necessário, mas conheço e todos conhecemos e reconhecemos o que de muito bom se realiza diariamente nas escolas. Dito de outra forma, todos os dias acontece Educação em todas as escolas. Não precisamos de lhe chamar Inclusiva.

 

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

PARTIU ÁLVARO LABORINHO LÚCIO

 Partiu Álvaro Laborinho Lúcio, um daqueles que, citando Camões, “por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”. Um Homem que nos pensava e fazia pensar, há poucos. Uma inspiração para todos com quem se cruzou.

Lembrei-me das diferentes circunstâncias em que estive com Laborinho Lúcio, mais recentemente como membros do Conselho Consultivo da Associação AjudAjudar, e sempre me senti e sinto grato por tais encontros associados ao universo das crianças, do seu bem-estar e dos seus direitos.

Muitas vezes aqui escrevi a necessidade de um Provedor da Criança, que já há muito João dos Santos, outra enorme figura, defendia e que teria sido muito bem entregue a Laborinho Lúcio por tudo o que realizou e defendeu em matéria de protecção das crianças. Um Homem com um perfil ético, cívico e científico que promoveria o “supremo interesse da criança”.

Já há alguns anos, num dos nossos “cruzamentos”, tive oportunidade de lhe dizer isso mesmo. Respondeu com a humildade e sensibilidade que se lhe reconhece. No entanto, todo o seu trajecto foi de certa forma uma Provedoria da Criança.

Deixem-me mais uma vez recordar algo que lhe ouvi lá para trás no tempo, não mais esqueci e muitas vezes cito. Estávamos os dois numa mesa de um encontro no Sardoal no âmbito da protecção de crianças e jovens e Laborinho Lúcio, pedindo para que as muitas pessoas presentes no auditório não reagissem logo no início da afirmação, afirmou “Só as crianças adoptadas são felizes ... felizmente a maioria das crianças são adoptadas pelos seus pais”.

Obrigado e até um dia, Álvaro Laborinho Lúcio.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

DOS COLUNISTAS

 Nos últimos anos tem surgido como forma de apresentação de algumas pessoas a referência ao serem “colunistas”. Aplica-se à nuvem de opinadores espalhados pela imprensa escrita em papel e/ou em formato digital.

Alguns restringem os conteúdos da sua coluna a áreas nas quais têm conhecimento e analisam, questionam e opinam com base nesse conhecimento, mas muitos abordam qualquer temática num notável exercício de tudologia, fingindo conhecimento, ficando-se pela opinião e ansiando pelo estatuto de “opinion maker” ou “influencer”, termo a que acho piada.

Com demasiada frequência confunde-se o comentar num espaço público com o dizer “umas coisas” sobre um qualquer assunto que esteja na agenda. Comentar em espaço público deveria acrescentar massa crítica à análise da realidade, não porque se detenha a verdade ou o saber absoluto, mas porque potencia qualidade à reflexão ou informação. Para que assim seja, pressupõe-se conhecimento e estudo que muitos dos palpitólogos não têm sobre muitos dos assuntos de que falam, refugiando-se em exercícios de futurologia, em retóricas sem substância ou em discursos de manipulação e demagogia.

De forma despudorada e com ar sério emitem opiniões travestidas de análise e que entendem como saber, tudo isto servido muitas vezes por um enorme umbiguismo.

Estranhamente, boa parte da comunicação social, num enjeitar das responsabilidades que lhe cabem, não prescinde desta fauna e disputam a sua presença, pagando bom preço, numa tentativa de vender o melhor produto possível que, frequentemente, é contrafeito, é de plástico, independentemente do que as audiências possam dizer.

Na verdade, muitos destes colunistas não têm coluna, têm agenda

Que cansaço!

Isto é, naturalmente, um desabafo do palpitólogo que habita este espaço.

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

NÃO DÁ PARA ENTENDER

 O mundo ensandeceu.

A direcção de um Agrupamento Escolar de Famalicão proibiu a professores e funcionários a utilização de telemóveis em áreas comuns da escola, como recreios e corredores. Ao que parece não será a única direcção escolar a tomar esta decisão.

Confesso que tenho alguma dificuldade em entender o racional da decisão. Os meus netos, miúdos como todos os outros percebem sem grande dificuldade que os pais ou eu, por exemplo, posso recorrer ao telemóvel em circunstâncias que, em regra, eles não utilizam.

Não, não se trata de uma variação de “faz o que eu digo, não faças o que eu faço”, idades e papéis não se fundem, gerem-se com regulação e compreensão da razão para que assim seja.

Acresce que uma medida desta natureza me parece insultuosa de professores e funcionários, assumindo a sua incapacidade de regulação do seu comportamento pelo que só a proibição os fará “bem-comportados”. Aliás, a ideia de que “têm de dar o exemplo “ e para o darem só proibindo é “dar um exemplo” de incompetência e desrespeito, para além de ser discutível a legalidade desta decisão.

Todos os que conhecemos o universo da educação conhecemos excelentes direcções escolares que, é bom lembrar, são professores.

No entanto, também conhecemos práticas de direcções escolares que estão longe de se considerarem positivas e competentes considerando a forma como lidam e destratam os seus colegas professores.

Não dá para entender.

terça-feira, 21 de outubro de 2025

TUDO SE TRAFICA

 Vivemos tempos sombrios em que imperam os traficantes e tudo se trafica, ética, valores, história, culturas, ideias e também pessoas, grandes e pequenas que deixam de o ser.

Numa peça do JN, responsável pela Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras (UNEF) da PSP afirma que em Portugal estão a ser identificados mais casos de tráfico de seres humanos em Portugal para exploração laboral e sexual e "importação" de crianças para adopção.

Em Julho, o Grupo de Especialistas sobre a Acção contra o Tráfico de Seres Humanos (GRETA) esteve em Portugal para avaliar a implementação da Convenção do Conselho da Europa relativa à luta contra o tráfico de seres humanos identificou 2211 vítimas nos últimos seis anos.

Dados preliminares disponibilizados ao Grupo de Trabalho pelo Observatório do Tráfico de Seres Humanos reconhece-se que, nos últimos 20 anos, entre 2004 e 2024, apenas 25 vítimas reclamaram uma indemnização, maioritariamente por via das associações que as apoiam no terreno sendo que apenas 11 conseguiram a satisfação do pedido.

Há algum tempo referi aqui o Relatório Anual de Segurança Interna relativo a 2023 no qual se referia que a criminalidade associada à imigração ilegal e tráfico de pessoas foi a que mais cresceu em 2023, mais 68% e 29%, respectivamente.

Na verdade, têm sido recorrentes as referências a situações inaceitáveis de exploração e maus-tratos envolvendo muito frequentemente cidadãos estrangeiros.

É conhecida e muitas vezes objecto de intervenção e notícia a situação que se verifica no Alentejo, mas não só, e que tem vindo, por várias razões, a aumentar, de exploração brutal, condições de habitação degradantes, vitimização por redes organizadas de “tráfico” de mão-de-obra em que se encontram milhares de cidadãos estrangeiros. Nas primeiras levas surgiram muitos cidadãos oriundos de países de leste e africanos e mais recentemente de países asiáticos.

A escandalosa e irresponsável política (?!) em matéria de agricultura e ambiente estarão gradualmente a transformar o Alentejo, o Algarve também, num deserto, mas que neste momento alimenta quilómetros e quilómetros de culturas intensivas e depredadoras que para já exigem mão-de-obra não existente no país e a prazo condenarão os alentejanos a viver no deserto. Os responsáveis assobiam para o lado e, por vezes, parecem virgens ofendidas face a algo que toda gente conhecia.

Este cenário, o tráfico de pessoas e a exploração quase escravizante, tal como a fome, é das matérias que maior embaraço pode causar em sociedades actuais e deveria ser algo de improvável no séc. XXI em sociedades desenvolvidas. Parece algo “fora do tempo” e de impossível existência nos nossos países, estamos a falar da Europa. Mas existe e é sério o problema que, como não podia deixar de ser, atinge os mais vulneráveis.

Este negócio, o tráfico e exploração de pessoas de todas as idades, um dos mais florescentes e rentáveis em termos mundiais, alimenta-se da vulnerabilidade social, da pobreza e da exclusão o que, como sempre, recoloca a imperiosa necessidade de repensar modelos de desenvolvimento económico que promovam, de facto, o combate à pobreza e, caso evidente em Portugal, às enormes assimetrias na distribuição da riqueza. Também por isso, são recorrentes as notícias de portugueses usados como escravos em explorações agrícolas espanholas ou redes de contratação de trabalhadores da construção civil para países do primeiro mundo europeu.

Estes tempos são marcados por competição, diminuição de direitos e apoios sociais, pressão sobre a produtividade. Tudo isto é submetido a um deus mercado que não tem alma, não tem ética, é amoral e pode alimentar, sem particulares sobressaltos, algumas formas de escravatura mais "leves" ou, sobretudo em casos de particular fragilidade dos envolvidos, bastante pesadas.

As pessoas, muitas pessoas, apenas possuem como bem a sua própria pessoa e os mercados aproveitam tudo. Por isso, se compra e vende as pessoas dando-lhe a utilidade que as circunstâncias, a idade, e as necessidades de "consumo" ou "produção" exigirem. O que parece ainda mais inquietante é o manto de silêncio e negligência, quando não cumplicidade, que frequentemente cai sobre este drama tornando transparentes as situações de exploração ou escravatura, não se vêem, não se querem ver.

Neste universo não conseguimos ouvir o coro dos escravos, não têm voz.

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

"DÓI-ME AQUI DENTRO, NÃO SEI ONDE"

 No Expresso encontra-se uma peça extensa e aprofundada relativa uma preocupação crescente em quem lida com adolescentes e jovens incluindo, naturalmente, os pais.

Trata-se do aumento significativo do comportamento autolesivo entre os mais novos e, ainda mais preocupante, cada vez mais novos, aos 9, 10, 11 anos são conhecidos casos.

Parece também claro que os comportamentos autolesivos estão associados a grupos e também ao universo das redes sociais e IA que potenciam o risco em situações de mal-estar entre crianças e jovens.

Recordo um trabalho recente realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em que, com base em dezenas de estudos internacionais, se encontra uma significativa relação entre a exposição às redes sociais e o aumento do risco de comportamentos autolesivos em crianças e adolescentes ainda que, naturalmente, não se estabeleçam relações de causa e efeito.

Os comportamentos autolesivos observados em crianças, adolescentes e jovens é uma das questões mais inquietantes para quem por qualquer razão está ligado ao universo dos mais novos, parece de acordo com os autores do estudo estar a aumentar e justifica o retomar de algumas notas.

Quando uma criança ou adolescente provoca sofrimento ligeiro, moderado ou severo a si próprio toda a comunidade perceberá que o mal-estar é enorme e importa estar atento e intervir.

Também são citados os dados do trabalho, "A Saúde dos adolescentes Portugueses" de 2022, que integra o estudo internacional "Health Behaviour in School-aged Children", da responsabilidade da OMS, realizado de quatro em quatro anos e coordenado em Portugal pela excelente equipa da Aventura Social, de que destaco Margarida Gaspar de Matos e Tânia Gaspar. Na altura da sua divulgação também aqui registei estes e outros dados que justificam reflexão.

O estudo envolveu 5809 alunos do 6.º, 8.º e 10.º anos, uma amostra representativa destes anos de escolaridade. A natureza e diversidade dos dados encontrados justificará várias reflexões, mas hoje consideremos os indicadores relativos a adolescentes que se magoam a si próprios num quadro de mal-estar. Este comportamento é referido por 24,6% dos inquiridos, maioritariamente raparigas e mais no 8º ano. Em 2018, último estudo, a percentagem era de 19,6%. Trata-se, de facto, de um dado inquietante e reflexo do mal-estar em muitos adolescentes que é coerente com outros indicadores do trabalho.

Alguns estudos internacionais apontam para cerca de 10% da população em idade escolar com comportamentos autolesivos pelo que os dados encontrados em Portugal são, de facto, preocupantes. Conheceremos melhor a situação comparativa quando estes dados forem cruzados com os de outros países envolvidos

Na verdade, os comportamentos autolesivos em adolescentes são mais frequentes do que muitas vezes pensamos e devem ser encarados com preocupação. E os casos que vão sendo conhecidos são apenas isso, os conhecidos, a ponta do iceberg.

Num estudo da Universidade de Coimbra, creio que divulgado em 2017, que envolveu 2.863 adolescentes, entre os 12 e os 19 anos, a frequentar o 3.º ciclo e o ensino secundário em escolas do distrito de Coimbra se referia que cerca de 20% afirma já tinha desencadeado comportamentos autolesivos pelo menos uma vez na vida.

É justamente por esta dimensão e as suas potenciais consequências que me parece fundamental entender tudo isto como um sinal muito forte do mal-estar que muitos adolescentes e jovens sentem e a verdade é que em muitas situações não conseguimos estar suficientemente atentos. Este mal-estar e o que daí pode emergir decorrem de situações de sofrimento com as mais diversas origens, relações entre colegas, bullying por exemplo nas suas diferentes formas ou relações degradadas na família que facilitam a instalação de sentimentos de rejeição, ausência de suporte social que serão indutoras de comportamentos autodestrutivos.

Neste contexto e dado a relação de boa parte de crianças, adolescentes e jovens com as redes sociais percebe-se a relação encontrada no estudo referido acima e, simultaneamente, a dificuldade de intervenção

Também como causa deste mal-estar pode referir-se a dificuldade que algumas crianças e adolescentes sentem em lidar com situações de insucesso escolar. Estas dificuldades são frequentemente potenciadas pela pressão das famílias e pelo nível de competição que por vezes se instala.

Os tempos estão difíceis e crispados para muitos adultos e também para os miúdos a estrada não está fácil de percorrer.

Como disse, alguns vivem, sobrevivem, em ambientes familiares disfuncionais que comprometem o aconchego do porto de abrigo, afinal o que se espera de uma família.

Alguns percebem, sentem, que o mundo deles não parece deste reino, o mundo deles é um espaço, nem sempre um espaço físico, insustentável que, conforme as circunstâncias, é o inferno onde vivem ou o paraíso onde se acolhem e se sentem protegidos, mas perdidos.

Alguns sentem que o amanhã está longe de mais e que um projecto para a vida é apenas mantê-la ou que nem isso vale a pena.

Alguns convencem-se ou sentem que a escola não está feita para que nela caibam e onde podem ser vitimizados.

Alguns sentem que podem fazer o que quiserem porque não têm nada a perder e muito menos acreditam no que têm a ganhar fazendo diferente.

Alguns transportam diariamente um fardo excessivamente pesado e que os torna vulneráveis.

Depois das ocorrências torna-se sempre mais fácil dizer qualquer coisa, mas é necessário pois muitos destes adolescentes e jovens terão evidenciado no seu dia-a-dia sinais de mal-estar a que, por vezes, não damos atenção, seja em casa ou na escola, espaço onde passam boa parte do seu tempo. Aliás, alguns testemunhos ouvidos no âmbito dos recentes e mediatizados casos mostram isso mesmo.

De facto, em muitos casos, designadamente, em comportamentos autolesivos ou estados mais persistentes de tristeza e isolamento, pode ser possível perceber sinais e comportamentos indiciadores de mal-estar. Estes sinais não podem, não devem, ser ignorados ou desvalorizados. É também importante que pais e professores atentos não hesitem nos pedidos de ajuda ou apoio para lidar com este tipo de situações.

O sofrimento e mal-estar induzem uma espiral de comportamentos em que os adolescentes causam sofrimento a si próprios o que promove mais sofrimento num ciclo insuportável e com níveis de perplexidade, impotência e sofrimento para as famílias também extraordinariamente significativos.

Não, não tenho nenhuma visão idealizada dos mais novos, nem acho que tudo lhes deve ser permitido ou desculpado. Também sei que alguns fazem coisas inaceitáveis e, portanto, não toleráveis. Só estou a dizer que muitas vezes a alma dói tanto que a cabeça e o corpo se perdem e fogem para a frente atrás do nada que se esconde na adrenalina dos limites.

Alguns destes miúdos carregam diariamente uma dor de alma que sentem, mas nem sempre entendem ou têm medo de entender.

Espreitem a alma dos miúdos, sem medo, com vontade de perceber porque dói e surpreender-se-ão com a fragilidade e vulnerabilidade de alguns que se mascaram de heróis para uns ou de bandidos para outros, procurando todos os dias enganar a dor da alma.

Eles não sabem, eu também não, o que é a alma. Um adolescente dizia-me uma vez, “dói-me aqui dentro, não sei onde”.

Muitos pais, mostra-me a experiência, sentem-se de tal forma assustados que inibem um pedido de ajuda por se sentirem impotentes e perplexos.

O resultado de tudo isto pode ser trágico e obriga-nos a uma atenção redobrada aos discursos e comportamentos dos adolescentes e dos jovens."

Desculpem a insistência nestas questões, mas é necessário.

domingo, 19 de outubro de 2025

O TEMPO DA AZEITONA

 Está a chegar o tempo da apanha da azeitona. Apanhada a que se destina a conserva, amanhã começamos a lida para apanhar a que irá para o lagar e voltar como azeite e do bom.  Este ano a produção parece “escapatória” como como diria o Mestre Zé Marrafa se estivesse ainda connosco.

Uma chuva que não veio ainda a tornaria mais grada, mas se não vier alguma ventaneira por estes dias, será razoável. Vamos ter ainda uns dias de lida até darmos conta do recado. Falo no plural, mas desta vez e com tristeza estou de fora, os parafusos da coluna não rimam com as tarefas de apanhar azeitona.

A apanha da azeitona pelo método tradicional não é tarefa fácil, substitui bem umas idas ao ginásio. Ao fim de algum tempo, o varejador ou as varas, apesar de serem de carbono, já pesam e ao fim do dia, o cansaço é bravo. Felizmente, vou contar com a ajuda preciosa do Carlos e do Luís, gente vontadeira e sabedora para varejar, apanhar, ensaca, carregar e entregar no lagar.

Parece estar a baixar a entrega por parte dos pequenos agricultores com as grandes herdades convertidas ao olival intensivo e com lagares próprios, tudo com custos que todos iremos pagar.

Há sempre tempo para umas lérias no lagar, claro estamos no Alentejo, e os temas de conversa vão surgindo, mas quase sempre, não podia deixar de ser, andam à volta dos enleios e das molengas em que a vida da gente se transformou e da dificuldade de encontrar quem ajude na apanha.

Acho que só lá para o fim de Janeiro, quando voltar ao lagar para buscar o azeite, com o ambiente quentinho das enormes salamandras que impede o azeite de coalhar e o cheirinho inconfundível do azeite novo é que me vou esquecer das agruras da apanha da azeitona. Mas, no fundo, sabe bem o cansaço manso que deixa.

São também assim os dias do Alentejo.

sábado, 18 de outubro de 2025

MEMÓRIA - "Se houvera quem me ensinara ... quem aprendia era eu"

 Talvez seja da velhice, mas com mais frequência olho para trás. Hoje, com ajuda do FB, recordei que há onze anos tive um convite para uma intervenção num evento, TEDxLisboaED, a que dei o título “Se houvera quem me ensinara … quem aprendia era eu”.

Foi uma experiência interessante e diverti-me. Ainda me lembro que foi a única circunstância na minha vida profissional em que realizei um ensaio geral antes da apresentação o que produziu uma sensação estranha. Uma sala gigante, com as pessoas da organização e técnicos em trabalho activo, os colegas que também iriam realizar intervenções e, à vez, falar para … “ninguém”. Um enorme desconforto compensado pelo gozo da intervenção.

A conversa girou em torno de uma escola em que professores, técnicos e auxiliares, na sua grande maioria, com competência, com visão, e esforço assentes em princípios de educação inclusiva procuram diariamente combater os riscos e as situações de exclusão que muitas crianças pelas mais variadas razões correm ou vivem. É responsabilidade das políticas públicas promover que assim seja. Como diz Biesta, a história da inclusão é a história da democracia. Os tempos negros que vivemos mostram que assim é.

E foi assim:

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

VELHICE E POBREZA

 A agenda das consciências determina para hoje o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza.

O relatório "Pobreza e Exclusão Social 2025", do Observatório Nacional de Luta Contra a Pobreza da Rede Europeia Anti-Pobreza, refere que apesar de uma redução, o risco de pobreza ou exclusão social é de 19,7%, acima dos dois milhões, um em cinco portugueses.

No entanto, para a população mais idosa a situação agravou-se, "22,3% dos reformados, 23,8% das pessoas com 65 anos ou mais e 26,5% dos idosos com 75 anos ou mais estavam em risco de pobreza ou exclusão social".

Nada de novo, no âmbito das políticas sociais é reconhecido que crianças e idosos são os grupos em maior risco de pobreza. O número de pessoas idosas que beneficiam do Complemento solidário para Idosos continua em crescimento significativo. Considerando o mês de Julho, cresceu 57,3% relativamente a 2024, 228827 pessoas, mais 83348 que em Julho do ano anterior. Este apoio abrange as pessoas com um rendimento inferior 630,67€.

Na verdade, em Portugal, a vida de muitos de nós, os velhos, é dura e difícil. Portugal é um dos países da Europa com população mais envelhecida, que vive só e no limiar de pobreza, uma percentagem muito significativa dos idosos tem pensões bem abaixo do salário mínimo.

As despesas de estadia nos lares e centros de acolhimento são bastante mais altas que os rendimentos dos velhos, pelo que se torna necessária a comparticipação das famílias para além dos apoios do Estado. Dadas as dificuldades que também afectam as famílias, estas estão a sentir progressiva dificuldade em assegurar essas comparticipações.

Numa altura em que continua na agenda a reforma do estado que, parece, assenta nos cortes das suas funções sociais este cenário exige uma profunda atenção.

A discussão necessária sobre o chamado estado social decorre num contexto particularmente adverso que pode, existe esse sério risco, fazer emergir ameaças sobre a sua sustentabilidade e, naturalmente, sobre a sua matriz conceptual.

Na verdade, pensando sobretudo no quadro actual e futuro próximo, a nossa população mais velha vive de uma forma genérica em condições muito precárias, como também sabemos que a população mais jovem é a mais exposta ao risco de pobreza para além dos velhos. Aliás, como é conhecido a tragédia do desemprego afecta sobretudo os mais novos e os mais velhos.

Os idosos começam por ser desconsiderados pelo sistema de segurança social que com pensões que não suportam um nível de vida básico, transforma os velhos em pobres, dependentes e envolvidos numa luta diária pela sobrevivência.

Continua com um sistema de saúde que deixa muitos milhares de velhos dependentes de medicação e apoio sem médico de família. Em muitas circunstâncias, as famílias, seja pelos valores, seja pelas suas próprias dificuldades, não se constituem como um porto de abrigo, sendo parte significativa do problema e não da solução. Por outro lado, para além dos custos das instituições importa ainda considerar a acessibilidade da oferta e a respectiva qualidade como tem vindo a ser conhecido envolvendo ainda a clandestinidade de algumas das respostas.

Se olharmos para o conjunto de dados que vão sendo disponibilizados sobre este universo, verifica-se que as condições estruturais se mantêm sem alterações significativas, estamos na mesma posição de pobreza há vários anos e, por outro lado, as condições conjunturais, a crise, acentuam a preocupação com a pobreza e com a velhice o que define um cenário altamente inquietante em termos de confiança no futuro e na desejada e necessária qualidade de vida.

Temos vindo a assistir a um acréscimo de dificuldades das organizações de solidariedade social no providenciar de apoios às dificuldades crescentes da população, sobretudo à mais idosa conhecendo-se a situação de “asfixia” de muitas instituições, e retorna a mendicidade ou o bater à porta das instituições, porventura de forma mais envergonhada e a atingir camadas diferentes.

Neste cenário, todas as medidas que de alguma forma atinjam os mais velhos devem ser objecto de uma extrema reflexão no sentido de evitar que se acentuem as dificuldades no (sobre)viver de uma parte significativa da população portuguesa.

Lamentavelmente, boa parte dos velhos, sofreu para chegar a velho e sofre a velhice. Não é um fim bonito para nenhuma narrativa.

Se a este quadro já instalado acresce o envelhecimento progressivo, o futuro exigirá mudanças substantivas e soluções novas, por exemplo, o estudo e desenvolvimento de algumas formas de vida activa uma vez que boa parte das pessoas mais velhas refere o desejo de poder manter algum tipo de actividade após a reforma.

Este país, não estando a ser para jovens, vai ter de ser para velhos.

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

OS ATRAVESSADIÇOS

 A habitual passagem de olhos pela imprensa e a natureza da maioria das matérias abordadas, fez-me recordar outra vez uma das muitas conversas aqui no Monte com o Mestre Zé Marrafa que guardo com muito carinho na cabeça e no coração.

Falávamos sobre as dificuldades que muita gente atravessa e o fardo pesado que carregam. O Velho Marrafa dizia que as pessoas do Alentejo, sobretudo os mais velhos, estão habituadas a fardos pesados, a vida sempre lhes foi dura. Para exemplificar, mostrou o longo caminho que foi percorrido desde o trabalho de sol a sol, muitas vezes até sete dias na semana, a passagem por ter e ganhar os feriados, passar a trabalhar só as oito horas e a riqueza de ter férias pagas.

No fim da sua viagem conclui com a tranquilidade que nele parece um ser e não um estar, que a culpa dos problemas, os de hoje e os de sempre, é dos atravessadiços. Provavelmente, tal como eu na altura, ficarão intrigados com a referência.

Pois o Velho Marrafa esclareceu que os atravessadiços são aquelas pessoas que sendo assim "atravessadas" só pensam nelas, nunca pensam nos outros. Fazem tudo para sair beneficiadas mesmo que isso possa prejudicar os outros. Depois, à medida que têm mais coisas e mandam mais, ainda mais querem ter e mandar e como são atravessadiços, causam muitos problemas aos outros sem se preocuparem com isso.

O Velho Marrafa rematava sem a menor dúvida, "Veja-me lá Senhor Zé se os que mandam, os que são grandes, se importam alguma coisa com os pequenos? Nada, mesmo nada".

Não é assim uma teoria muito sofisticada, mas o Velho Marrafa é capaz de ter alguma razão. Andam por aí muitos atravessadiços em lugar de mando e muitos atravessadiços a querer mandar.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

DO BULLYING. É PRECISO INSISTIR

 Considerando os níveis de sofrimento envolvido, a dificuldade de prevenir, intervir e conhecer com rigor o volume de situações verificadas, o bullying é sempre uma matéria que está na agenda.

A PSP iniciou na segunda-feira a operação Bullying é Para Fracos. Decorrerá durante duas semanas em todo o país, é direccionada para os alunos do ensino básico e secundário e para professores e encarregados de educação. Envolverá a realização de acções de sensibilização pelas Equipas do Programa Escola Segura “sobre as temáticas do bullying e cyberbullying junto da comunidade escolar”.

No ano lectivo de 24/25, a PSP realizou 6336 acções de sensibilização sobre bullying e cyberbullying envolvendo a participação de mais de 131.200 alunos e as equipas do Programa Escola Segura registaram 2791 ocorrências criminais, 130 das quais relacionadas com situações de bullying e 21 com situações de cyberbullying um pouco abaixo do ano lectivo anterior.

É também relevante recordar dados divulgados em Janeiro do relatório “Bullying e Ciber-bullying em Contexto Escolar”, produzido pelo Grupo de Trabalho criado pela Ministério da Juventude e Modernização com o objectivo de combater e prevenir o bullying. O inquérito que envolveu 31133 participantes entre os 11 e os 18 anos, 5,9%, 1837, referiram já ter sido vítimas de bullying. Também sem surpresa, a maioria das vítimas são raparigas e a maioria dos agressores são rapazes

Importa considerar que uma parte significativa de episódios desta natureza não são reportados tornando, naturalmente, mais difícil a intervenção.

Relativamente ao fenómeno do bullying e em particular do cyberbullying, não há muito de novo a dizer, continua a ser fonte de sofrimento para muitas crianças e jovens e, naturalmente, uma fonte de preocupação para famílias, professores e técnicos.

Um relatório da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia divulgado em Maio de 2024 afirmava que cerca de 66% dos alunos portugueses da comunidade LGBTIQ sofreram bullying ou foram humilhados na escola algo que também é perceptível nos dados agora conhecidos.

Um trabalho que aqui referi, “Global estimates of violence against children with disabilities: an updated systematic review and meta-analysis”, divulgado em 2022 na The Lancet Child & Adolescent Health, mostrou com indicadores alarmantes, mas, lamentavelmente, não surpreendentes. Cerca de uma em cada três crianças ou adolescentes com deficiência é vítima de algum tipo de violência, física, emocional, sexual ou negligência. No caso mais particular do bullying verifica-se um significativo nível de vitimização, cerca de 40% das crianças com deficiência terá sido alvo deste tipo de comportamento. O bullying presencial, violência física, verbal ou social como bater, pontapear, insultar, ameaçar ou excluir é mais comum, 37%, do que o cyberbullying (23%) que está a aumentar com a presença esmagadora do digital.

O estudo recorreu a dados relativos a mais de 16 milhões de crianças de 25 países, recorrendo ao tratamento de 98 estudos, realizados entre 1990 e 2020, de que 75 respeitam a países de mais elevados rendimentos e 23 relativos a sete países de baixo ou médio rendimento.

Os dados conhecidos no que respeita ao bullying e considerando que não correspondem ao universo real de ocorrências, mostram a necessidade de uma séria reflexão e intervenção nos contextos educativos, escolares e familiares, que chegue a todos os alunos e que promova a qualidade e regulação das relações interpessoais, o quadro de valores, a empatia, solidariedade e inteligência emocional, etc.

O cyberbullying parece ser actualmente a variante de bullying mais preocupante. Contrariamente ao bullying presencial o cyberbullying não tem “intervalos”, normalmente os fins-de-semana, pois ocorrem predominantemente nos espaços escolares. Não sendo presencial o(s) agressor(es) não tem, ou não têm, uma percepção clara do nível de sofrimento infringido o que em algumas circunstâncias pode funcionar como “travão” e inibir o comportamento agressivo. Esta situação é potenciada quando se junta a um menor nível de empatia pelo outro o que ficou muito claro no primeiro trabalho citado acima e que merece leitura.

Também por estas razões é fundamental uma atitude ajustada face a este tipo de comportamentos.

Em termos globais e como já referi, a ocorrência de situações de bullying é bem superior ao número de casos que são relatados. Uma das características do fenómeno, nas suas diferentes formas, incluindo o cyberbullying, é justamente o medo e a ameaça de represálias a vítimas e assistentes que, evidentemente, inibem a queixa pelo que ainda mais se justifica a atenção proactiva e preventiva de adultos, pais, professores, técnicos ou funcionários.

Este cenário determinaria, só por si, um empenhado investimento em recursos e dispositivos que procurassem minimizar o volume de incidências, algumas das quais de gravidade severa.

Neste contexto e dada a gravidade e frequência com que ocorrem estes episódios, é imprescindível que lhes dediquemos atenção ajustada a sinais dados por crianças e adolescentes, nem sobrevalorizando, nem tudo é bullying, o que promove insegurança e ansiedade, nem desvalorizando, o que pode negligenciar riscos e sofrimento.

Neste universo e mais uma vez importa considerar dois eixos fundamentais de intervenção por demais conhecidos, a prevenção e a intervenção depois dos problemas ocorrerem. Esta intervenção pode, por sua vez e de forma simplista, assumir uma componente mais de apoio e correcção ou repressão e punição, sendo que podem coexistir. Com alguma demagogia e ligeireza a propósito do bullying, as vozes a clamar por castigo têm do meu ponto de vista falado mais alto que as vozes que reclamam por dispositivos de prevenção, intervenção e apoio para além da óbvia punição, quando for caso disso. Esta utilização mostra a necessidade de dispositivos de apoio e orientação absolutamente fundamentais para que pais, professores e alunos possam obter informação e suporte. Entretanto estão criados vários portais e estão disponíveis alguns canais de denúncia e procura de orientação e suporte dirigido a pais, professores, técnicos e, naturalmente, alunos.

Lamentavelmente, parte significativa das entidades e iniciativas de apoio e suporte é exterior às escolas e ilustra a falta de resposta estruturada e global do sistema educativo, para além das insuficiências de recursos e na formação de técnicos e de professores sobre esta complexa questão, desde logo para o seu reconhecimento e identificação.

A existência de dispositivos de apoio sediados nas escolas, com recursos qualificados e suficientes, designadamente no que respeita aos assistentes operacionais com funções de supervisão dos espaços escolares, é uma tarefa urgente.

Do meu ponto de vista, o argumento custos não é aceitável porque as consequências de não mudar ou não fazer são incomparavelmente mais caras. Depois das ocorrências torna-se sempre mais fácil dizer qualquer coisa, mas é necessário. Muitas crianças e adolescentes evidenciam no seu dia-a-dia sinais de mal-estar e sofrimento a que, por vezes, não damos ou não conseguimos dar atenção, seja em casa, ou na escola.

terça-feira, 14 de outubro de 2025

POBREZA E EDUCAÇÃO

 Foi ontem publicado em DR o Plano de Acção da Estratégia Única dos Direitos das Crianças e Jovens 2025-2030. Lê-se no Público que o eixo central assenta no entendimento de que "não se combate a pobreza se não houver garantia de acesso de todas as crianças aos serviços essenciais de qualidade, nomeadamente na educação e na saúde.”

O Plano define como objectivo retirar 161 mil crianças da situação de pobreza ou exclusão até 2030.

Uma das medidas previstas é a "cobertura total em 2026 de apoios para alunos beneficiários de acção social escolar para visitas de estudo e refeições, incluindo em períodos não lectivos".

Muitas vezes aqui tenho abordado a questão da pobreza e privação em crianças e jovens e o impacto fortíssimo na educação e desenvolvimento. Vejamos alguns dados relativos a 22/23 considerando os alunos apoiados pela Acção Social Escolar.

Um terço dos alunos, 36%, do pré-escolar ao secundário, beneficiam deste apoio, 405891 alunos, ligeiramente abaixo do ano anterior, 407678.

No entanto, a descida observa-se nos apoios a alunos do secundário, nível de ensino em que subiu o abandono, dito de outra forma, os alunos que mais abandonam pertencem a agregados familiares de menor rendimento o que pode explicar o abaixamento do número de alunos com apoio.

Acresce que na educação pré-escolar o número de alunos com apoio subiu 3% verificando-se o valor mais elevado dos últimos cinco anos. No 1º e 2º ciclo também a subida se verifica com mais de 40% dos alunos a beneficiar de apoio social.

Recordo ainda que dados do INE mostram que a "taxa de risco de pobreza infantil em 2023 foi de 20,7%", correspondendo a um regresso aos valores de 2017, o que coloca as crianças como o "grupo etário que regista a maior taxa de risco de pobreza e também aquele em que se observa uma evolução mais desfavorável deste indicador".

Os dados são inquietantes, está bem estudada a relação entre a situação económica, laboral e nível de literacia familiar no trajecto pessoal sendo que, sem surpresa, são estes alunos que, globalmente, mais dificuldades sentem no desempenho escolar bem-sucedido.

Também sabemos que a pobreza tem claramente uma dimensão estrutural e intergeracional, as crianças de famílias pobres demorarão até cinco gerações a aceder a rendimentos médios, um indicador acima da média europeia.

A escola é certamente uma ferramenta poderosa de promoção de mobilidade social, mas, por si só, dificilmente funciona como elevador social.

O impacto das circunstâncias de vida no bem-estar das crianças e em aspectos mais particulares como o rendimento escolar ou o comportamento é por demais conhecido e essas circunstâncias constituem, aliás, um dos mais potentes preditores de insucesso e abandono quando são particularmente negativas, como é o caso de carências significativas ao nível das necessidades básicas.

É este o desafio que enfrentam as políticas públicas de diferentes sectores. Gostava de me sentir mais optimista, mas aguardemos pelo impacto do Plano de Acção Plano de Acção da Estratégia Única dos Direitos das Crianças e Jovens 2025-2030, agora publicado.

Em nome do futuro, não podemos falhar.

domingo, 12 de outubro de 2025

O QUE SE PASSA NA INFÂNCIA NÃO FICA NA INFÂNCIA

 No Público encontra-se uma peça relativa à iniciativa do Professor João Pedro Gaspar e do Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra Paulo Guerra, pessoas que desde há muito estão ligadas à protecção da infância.

A iniciativa foi a construção de um livro, “O que se passa na infância não fica na infância” que recolhe histórias da infância de cinquenta pessoas de alguma forma ligadas ao mundo da infância, da sua protecção e da promoção dos seus direitos. Tive o privilégio de ser convidado e partilhar memórias da minha infância que certamente sustentaram o que tem sido a minha vida já longa.

Entretanto já foi lançado em Maio um sendo volume com mais 51 testemunhos da infância de pessoas de diversas áreas.

Os proventos dos livros revertem para a PAJE – Plataforma de Apoio a Jovens (Ex)acolhidos, co-fundada por João Pedro Gaspar em 2016.

Como por aqui já tenho escrito, apesar de existirem diferentes dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens e de existir legislação no mesmo sentido sempre assente no incontornável “superior interesse da criança", não possuímos ainda o que me parece mais importante, uma cultura sólida de protecção das crianças e jovens como alguns exemplos regularmente evidenciam.

Retomo a citação de Benedict Wells em “O fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se sabe quando nos vai atingir” com que terminei a minha história para o livro.

Um renovado agradecimento pelo convite a participar e … leiam os dois volumes de “O que se passa na infância não fica na infância”. É duro, é bonito e deixa-nos a pensar no futuro dos miúdos.

 É já amanhã.




sábado, 11 de outubro de 2025

A LER "DUAS CADEIRAS VAZIAS". A PROPÓSITO, "UMA HISTÓRIA DE VULCÕES"

 Merece leitura e reflexão o texto de João Massano no Expresso, “Duas cadeiras vazias”. O autor reflecte sobre a tragédia do suicídio de dois jovens num curto espaço de tempo numa comunidade educativa na região de Viseu.

Na altura também aqui deixei umas notas de que retiro um excerto e acrescento uma história, “Uma história de vulcões”.

Corremos então o risco de alguns adolescentes, sobretudo em períodos mais crispados do ponto de vista social, como estamos a viver, entre “muros”, nas mais das vezes invisíveis, que apertam de mais e são difíceis de “saltar”. Vejamos alguns exemplos, se alguém os inquirir sobre o que pensam ser o seu futuro, o seu projecto de vida, muito provavelmente obterá uma resposta vazia, ou seja, não têm projecto de vida, não têm ideia de futuro, trata-se assim de viver o presente e apenas o presente. A adolescência é uma fase fundamental na construção da identidade. Certo, que identidades estão muitos destes jovens a construir? Revêem-se nelas? Ou sentem-se meio perdidos num mundo em que não sentem caber e encostam-se aos que estão tão perdidos quanto eles. Que referências sustentam muitos destes jovens? Os modelos adequados, o que quer que isto seja? Ou os modelos fornecidos por quem, como eles, vive o presente à pressa cheio de medo do futuro, procurando chegar a tudo antes que se acabe a oportunidade?

Por vezes lembro-me de Brecht, “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Esta ideia não tem como objectivo branquear ou desculpar os comportamentos socialmente inadequados de adolescentes, dirigidos a outros ou mesmo a si próprio, mas a verdade é que muitos vivem com margens demasiado estreitas.”

E agora “Uma história de vulcões”

Há uns dias, numa escola lá daquela terra onde acontecem coisas e onde vive o Professor Velho, aquele que está na biblioteca e fala com os livros, um dos gaiatos, o Marco, desencadeou uma cena complicada de gerir. Sem razão aparente e de forma súbita tornou-se muito reactivo, com uma atitude e uma linguagem muito agressivas. Os colegas, um pouco perplexos, afastaram-se, um funcionário tentou intervir, mas não foi bem recebido e apenas o aproximar de mansinho e a fala cativante da Professora Joana pareceram começar a tranquilizar o Marco.

O episódio foi, naturalmente, objecto de conversa, até porque nos últimos tempos já tinham acontecido outras situações da mesma natureza que alimentam o que a escola chama de onda de indisciplina.

Num grupo em que, de volta de um chá na sala de professores, se comentava o assunto o Professor Velho opinou daquela forma tranquila que talvez se tratasse de um problema de vulcões, poderia não ser essencialmente um problema de indisciplina. Face à estranheza que a afirmação provocou o Velho começou a falar de como se tem vindo a instalar em muitos miúdos um mal-estar que, quase sem darmos por isso, os vai preenchendo por dentro. Uns resistem e com alguma ajuda que lhes possamos dar, quando estamos atentos, vão acomodando defesas e ajudas e reorganizam-se, sobrevivendo. Outros, mais vulneráveis e a que não conseguimos estar atentos, acabam roídos por esse mal-estar entranhado e pode acontecer que se afundem, implodam, se deprimam e desistam de si e de lutar pela vida ou, foi o caso do Marco, que a pressão do mal-estar dentro deles se torne tão grande e insustentável que provoque a explosão, entrem em erupção descontrolada que liberte aquela mágoa que lhes rói o sentir. Depois dessas erupções podem entrar em período de acalmia até à próxima explosão.

É agora que teremos de ir à procura do Marco.”

 Nas escolas encontram-se imensos vulcões, uns em actividade, outros adormecidos e outros ainda em gestação. Os vulcanólogos, também conhecidos por professores, andam preocupados, falta-lhes tempo e apoios e um clima mais amigável. Como é reconhecido, as alterações climáticas têm efeitos negativos e o clima das escolas anda alterado.

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

A "CHUPETOTERAPIA"

 Ontem, na passagem de olhos pela imprensa tropecei com uma peça no JN absolutamente extraordinária e estimulante.

Ao que parece, com a prestimosa colaboração do TikTok e outras redes sociais, estará a emergir uma extraordinária abordagem para que possamos gerir situações de ansiedade, stresse ou desconforto.

Nada de recorrer a receitas tão prosaicas como “fumar um cigarro, mascar uma chiclete, roer as unhas, respirar fundo, dar uma caminhada”, nada disso.

A grande descoberta para o bem-estar e a auto-regulação estará no uso, pelos adultos, da velha chupeta de borracha que a todos acompanhou em pequenos, isso mesmo a chupeta de borracha.

Como sempre na vanguarda da investigação e inovação, a “chupetoterapia” terá sido em países asiáticos, designadamente, na China, mas, obviamente nos Estados Unidos e no Brasil, o recurso à chupeta está em grande expansão com múltiplos “vídeos de adultos com chupeta a alegar os benefícios”. Julgo até que com a Presidência de Trump, o recurso à chupeta para minimizar stresse ou ansiedade será uma espécie de epidemia.

Ao que parece e dado o conservadorismo dos europeus a chupeta ainda não anda na boca dos adultos por estas bandas. Lá chegaremos, certamente, também não gostamos de ficar para trás em matéria de inovação e bem-estar.

Talvez até não fosse má ideia uma experiência de investigação relativa à gestão de comportamentos desajustados por ansiedade e stresse verificados na Assembleia da República por parte de muitos dos Senhores Deputados.

Na peça, uma psicóloga, apesar de estranhar este recurso comportamental, por assim dizer, diz-nos que “Sabemos que o movimento repetitivo e de sucção, de chuchar uma chupeta, apazigua os bebés, é quase uma primeira sensação de controlo. Enquanto adultos diria que não é a sucção propriamente dita que nos faz ficar calmos, mas é o propósito que colocamos nessa ação. É a ideia de estarmos a controlar a ação”

Considerando os tempos que atravessamos e o que vamos vendo, ouvido e lendo, estou a pensar seriamente na hipótese de recorrer a esta nova abordagem, a "chupetoterapia" para “acalmar os nervos”.

O mundo ensandeceu de vez. Talvez seja de recordar que hoje se assinala o Dia Mundial da Saúde Mental.

PS – Foi mesmo só para fugir à agenda e ao stresse que causa.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

FILHOS - POUCOS, CAROS, MAS UM BEM DE PRIMEIRA NECESSIDADE

 A Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) recebeu em 2024 mais de duas mil comunicações de empresas referindo que não iriam renovar um contrato de trabalho a termo ou pretendiam despedir mulheres grávidas, puérperas, lactantes, pessoas em gozo de licença parental ou cuidadoras. Estas comunicações estão determinadas por lei para protecção de direitos das mulheres. O número é o mais elevado desde 2020, ano muito marcado pela pandemia, e tem estado sempre em subida.

É sabido que a situação portuguesa no que respeita aos nascimentos e renovação geracional continua a agravar-se e estes dados são indiciadores dados obstáculos à maternidade e contribuem para o agravamento da dificuldade de renovação demográfica.

Como aqui escrevia há algum tempo, Portugal integra o grupo com menores apoios sociais para que os pais fiquem mais tempo em casa com filhos pequenos sendo que sobretudo nas zonas mais urbanas, (o interior desertifica-se o que também contribui para a baixa natalidade), a oferta de estruturas formais de acolhimento de bebés e crianças é ainda insuficiente. Acresce que Portugal tem um dos mais elevados custos de equipamentos e serviços para crianças.

O emprego jovem e a sua estabilidade e rendimento torna muito difícil assumir o encargo dos filhos agravado por, como se verifica pela notícia, obstáculos à maternidade de mulheres empregadas.

Importa ainda não esquecer a discriminação salarial de que muitas mulheres, sobretudo em áreas de menor qualificação, são ainda alvo e a forma como a legislação laboral e a sua “flexibilização” as deixam mais desprotegidas. São conhecidas muitas histórias sobre casos de entrevistas de selecção em que se inquirirem as mulheres sobre a intenção de ter filhos, sobre casos de implicações laborais negativas por gravidez e maternidade, sobre situações em que as mulheres são pressionadas para não usarem a licença de maternidade até ao limite, etc. Existem empresas que exigem às mulheres um compromisso de que não irão engravidar nos próximos 5 anos. Não adianta argumentar com o quadro legal existente ou que venha a existir. Em Portugal a lei tem mais um carácter indicativo que imperativo.

O fluxo de emigração jovem nos últimos anos é elevado e é pouco provável que se verifique o retorno da maioria que emigrou.

Por outro lado, em tempos altamente competitivos com a proletarização do trabalho com salários baixos e e nas prestações sociais insuficientes, as pessoas hipotecam os projectos de vida em troca das migalhas que permitam a sobrevivência o que lhes retira margem negocial ou liberdade de escolha.

A fiscalização e regulação são insuficientes, uso e abuso de estágios não remunerados ou miseravelmente pagos e que não asseguram continuidade, condições de trabalho degradantes cuja não aceitação implica a perda do lugar em troca por alguém ainda mais necessitado e, portanto, calado.

A promoção de projectos de vida familiar que incluam filhos implica, necessariamente, intervir nas políticas de emprego e protecção do emprego e da parentalidade, na discriminação e combate eficaz a abusos e a precariedade ilegal, na inversão do trajecto de proletarização com salários que não chegam para satisfazer as necessidades de uma família com filhos e custos elevados na educação apesar de uma escolaridade dita gratuita, na fiscalidade, por exemplo. A questão é que a política que tem vindo a ser seguida não permite acreditar que existam alterações.

É ainda urgente que se promova a estabilidade de emprego a acessibilidade real (na distância e nos custos) aos equipamentos e serviços para a infância com o alargamento da resposta pública de creche e educação pré-escolar, cuja oferta está abaixo da meta estabelecida.

É uma questão de futuro.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

O QUE É QUE NÃO SE PERCEBE?

 Foi actualizado e divulgado ontem o Estudo de Diagnóstico de Necessidades Docentes realizado pelo Centro de Economia da Educação da Nova SB e os dados, sem surpresa, são preocupantes.

De acordo com as projecções, no período de 2025 a 2034, 37% dos cerca de 122 000 professores actualmente no sistema educativo aposentar-se-ão, qualquer coisa como 46 000 docentes.

Não se estranha, apenas preocupa, de acordo o “"Perfil do Docente", relativo ao quadro de professores de 2023/2024 em Portugal Continental elaborado pela DGEEC e há dias conhecido, no 3.ºciclo e ensino secundário, a idade média dos professores é de 52 anos, seis em cada dez, 62%, têm 50 anos ou mais. É também preocupante o baixo número de jovens professores. Considerando o grupo mais numeroso, 3.º ciclo e secundário, por cada grupo de 100 professores com menos de 35 anos, havia 1189 com 50 ou mais. Se for analisado por grupos disciplinares temos grupos em que a diferença é bem maior.

Também sabido que actual capacidade de formação de docentes é claramente insuficiente face às necessidades embora se tenham estabelecido contractos programa com instituições do ensino superior para incrementar a capacidade de formação. Acresce que, tal como noutras áreas a falta de professores não se verifica da mesma forma no país inteiro o que coloca um outro problema a necessidade de deslocação com as questões que este processo envolve.

Estamos perante uma espécie de tempestade perfeita, os docentes não chegam, vamos aumentar a capacidade de formação que continuará insuficiente num futuro próximo, a dispersão demográfica complica as colocações e …

Muitas vezes aqui tenho escrito, a falta de docentes estava escrita nas estrelas e sucessivas equipas ministeriais, para além de más políticas públicas que afastaram milhares de professores das escolas negavam a evidência, ouvia-se o mantra dos “professores a mais”.

O universo da educação tem estado exposto nas últimas décadas, criando instabilidade e ruído permanente sem que se perceba um rumo, um desígnio que potencie o trabalho de alunos, pais e professores. Acresce que sucessivas equipas ministeriais têm empreendido um empenhado processo de desvalorização profissional dos professores com impacto evidente no clima das escolas e nas relações que a comunidade estabelece com estes profissionais. Este cenário baixou drasticamente a atractividade da carreira docente e, como sempre, sucessivos responsáveis por estes cenários, esquecem-se do que produziram e ignoram responsabilidades, perorando sobre o que fazer e que não fizeram.

Não podemos esperar mais. A formação de professores, sem o risco da “desprofissionalização”, ou seja, o abaixamento da qualidade da formação, é a prioridade das prioridades a par de potenciar a atracção pela função docente através de ajustamentos ao nível da carreira, modelo e avaliação, do estatuto salarial, do excesso asfixiante de burocracia, entre outros aspectos . O que é que não se percebe?

terça-feira, 7 de outubro de 2025

PROFESSORES - TALIS 2024 - (DES)VALORIZAÇÃO

 

Foram divulgados os dados do Teaching and Learning International Survey 2024 (TALIS), realizado regularmente pela OCDE.

Porque me parece que a valorização percebida face à profissão que se desempenha tem papel crítico no bem-estar pessoal e profissional e nível de realização uma primeira reflexão relativa a esta questão. Assim, umas notas sobre esta matéria, a valorização dos professores.

O relatório, no que respeita a Portugal, foi elaborado com base em entrevistas a cerca de 7300 docentes do 3.º ciclo e secundário e a quase 430 directores).

Releva que 98% dos professores portugueses 'concordam' ou 'concordam totalmente' que os alunos e os professores geralmente se dão bem uns com os outros o que está acima da média da OCDE de 96%. Por outro lado, 62% dos inquiridos entendem que, na sua escola, os professores são valorizados pelos alunos, sendo que a média da da OCDE é de 71%.

No que respeita a pais e encarregados de educação, apenas metade dos nossos professores se sente valorizado por pais e encarregados de educação e só 16% dizem que com eles colaboram para enriquecer as actividades de aprendizagem dos alunos pelo menos uma vez por mês, a média da OCDE atinge os 25%.

Alargando o universo, só 9% dos professores portugueses se sentem valorizados pela sociedade apenas 4% sente que as suas opiniões são valorizadas responsáveis pelas políticas públicas, a média na OCDE é de 16%.

Sendo sempre relevante, numa profissão como a de professor a valorização profissional e social tem uma importância crítica como ainda há pouco, a propósito do Dia Mundial do Professor, aqui escrevi.

As políticas públicas dos últimos anos e da responsabilidade de sucessivas equipas governativas deram suporte a crescente percepção de desvalorização da docência. Urgem ajustamentos ao nível da carreira docente, modelo e avaliação, do estatuto salarial, da formação inicial, do modelo de governança das escolas, do excesso asfixiante de burocracia, entre outros aspectos.

Para além das múltiplas acções e decisões políticas em sentido errado, também alguma imprensa e "opinion makers" têm contribuído para degradar a sua função, fragilizar a sua imagem social e comprometer o clima e a qualidade do trabalho desenvolvido nas escolas apesar dos professores continuarem a ser uma das classes profissionais em que os portugueses mais confiam.

Finalmente, é muito importante e para alguns surpreendente que 94% dos professores inquiridos dizem estar satisfeitos com a profissão, sendo a 89% a média da OCDE. É este “gosto pela profissão” que sustenta os professores num atribulado clima organizacional e com políticas publicas pouco amigáveis.

Deste quadro releva a urgência de passos seguros e rápidos num trajecto de valorização profissional e social  e da capacidade de atracção da mais bonita das profissões, Professor.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

ADOLESCÊNCIA E MAL-ESTAR - SMS - SOSSEGA, MEDO SENTIDO

 São recorrentes as notícias e os estudos que referem ou evidenciam um mal-estar crescente entre os adolescentes e jovens.

De acordo com dados divulgados pelo Programa Mais Contigo, 41% dos adolescentes inquiridos revelaram sintomas de depressão, tristeza persistente, baixa auto-estima, perda de interesse ou de prazer e pensamentos negativos. Também 12% dos inquiridos estarão em risco de comportamentos suicidários.

Também foi recentemente conhecida a situação extrema do suicídio num espaço curto de tempo de dois jovens da comunidade escolar de Castro Daire.

Vivemos tempos muito complicados e sombrios que muitas vezes incubam mal-estar entre os mais novos que a família e a comunidade escolar muitas vezes não conseguem, primeiro, perceber e, segundo, desenvolver alguma acção preventiva ou remediativa.

Umas notas em torna do contexto familiar.

Sabemos da importância protectora que a família tem na resposta aos desafios da adolescência. Em inúmeras conversas que realizei com pais estes “desafios” estavam quase sempre na agenda. Normalmente começava por recordar e acentuar que crescer e ser, desde que se nasce é sempre um desafio, mas, evidentemente, percebo as inquietações associadas a estas idades e, mais recentemente, a um clima pouco amigável, por assim dizer, que se foi instalando.

Parece-me também importante reafirmar, faço-o convictamente, que na maioria das situações, com mais ou menos sobressaltos … a coisa corre bem.

Também sei que quando emerge algum mal-estar a situação pode ser bem complicada para adolescentes e pais e uma ajuda exterior pode fazer a diferença. Dito isto, também entendo que é necessária prudência para evitar um excesso de “psicologização” da vida educativa das famílias e esperar que existe algures um manual de instruções que tudo conserta.

A família, recorrendo às palavras de Paul Bowles que inspirou Bertoluci num filme notável, deveria ser sempre percebida como “The sheltering sky”, um céu protector na vida de todos os seus membros, designadamente, nos que pela idade ou pelas circunstâncias enfrentam “desafios”.

Parece-me ainda claro que este céu protector só pode ser construído com base na comunicação, na escuta, na disponibilidade (não estou a falar de tempo embora também), de percepção do que se passa com o outro e do que ele sente.

Os estilos de vida, as alterações dos quadros de valores e de prioridades nem sempre serão muito amigáveis para a construção deste céu protector. Como sabemos as alterações climáticas são uma realidade e também neste céu familiar se verificam alterações de clima a que importa estar atento e prevenir … comunicando.

As famílias, nas suas diferentes tipologias não podem ser um grupo de pessoas com a chave da mesma casa na qual se cruzam, pouco falam e se escondem num ecrã. Tornam-se tóxicas e degradam-se.

Corremos então o risco de alguns adolescentes, sobretudo em períodos mais crispados do ponto de vista social, como estamos a viver, entre “muros”, nas mais das vezes invisíveis, que apertam de mais e são difíceis de “saltar”. Vejamos alguns exemplos, se alguém os inquirir sobre o que pensam ser o seu futuro, o seu projecto de vida, muito provavelmente obterá uma resposta vazia, ou seja, não têm projecto de vida, não têm ideia de futuro, trata-se assim de viver o presente e apenas o presente. A adolescência é uma fase fundamental na construção da identidade. Certo, que identidades estão muitos destes jovens a construir? Revêem-se nelas? Ou sentem-se meio perdidos num mundo em que não sentem caber e encostam-se aos que estão tão perdidos quanto eles. Que referências sustentam muitos destes jovens, o lado positivo? Os modelos adequados, o que quer que isto seja? Ou os modelos fornecidos por quem, como eles, vive o presente à pressa cheio de medo do futuro, procurando chegar a tudo antes que se acabe a oportunidade?

Por vezes lembro-me de Brecht, “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Esta ideia não tem como objectivo branquear ou desculpar os comportamentos socialmente inadequados de adolescentes, dirigidos a outros ou mesmo a si próprio, mas a verdade é que muitos vivem com margens demasiado estreitas.

Educar, em casa ou na escola, pode traduzir-se em ajudar alguém a tomar conta de si próprio. Assim, a autonomia é o fio estruturante da acção educativa e começa no berço. Quanto mais autónomos mais autodeterminados e auto-regulados as crianças e jovens serão, menos será necessário "tomar conta deles", eles saberão tomar conta de si de forma adequada.

O afecto é imprescindível, não existe "afecto a mais" ou, noutra versão, "mimos a mais". Existe mau afecto e mau mimo e mau porque é tóxico, faz mal e não por ser muito.

As regras e os limites são bens de primeira necessidade. Tal como com os afectos, nenhuma dieta educativa pode prescindir de regras e limites.

Finalmente e insistindo, a educação, escolar ou familiar, assenta na relação que tem como ferramenta essencial a comunicação. A comunicação é essencial, em qualquer idade.

A propósito.

SMS - Sossega, Medo Sentido

Sossega, medo sentido.

Vêem-me só e avisam,

cuidado com as companhias.

Porquê

são as companhias que me cuidam.

Não entendem.

Queixam-se do meu silêncio.

Porquê

todos falam de mim e ninguém fala comigo.

Não entendem.

Parecem com medo de mim.

Porquê

o meu medo é ainda maior.

Escondo-me com os fones no máximo

para não o ouvir,

o medo sentido.

Não entendem.

Dizem que me porto mal.

Porquê

só procuro um porto bom.

Não entendem.

É preciso pensar no futuro, dizem.

Porquê

o meu amanhã,

vai ser igual ao hoje,

igual ao nada.

Não entendem.

Sossega, medo sentido.

(2007)