quarta-feira, 30 de junho de 2021

CRIANÇAS E JOVENS EM RISCO - 2020

 Foi ontem apresentado o relatório Anual da Comissão Nacional Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens. Como  se pode verificar no gráfico da peça do Público e numa nota global breve, à excepção da exposição de crianças e jovens a situações de violência doméstica ou mesmo o seu  envolvimento foi a situação que mais se agravou face a 2019, 7,7%. Também se registou um ligeiro aumento nos casos de maus tratos psicológicos, de 284 em 2019 para 288 crianças em 2020.  Todos os outros indicadores desceram.

Quer a subida mais relevante dos casos que envolvem violência doméstica, quer nas descidas também verificadas no número de casos acompanhados pelas CPCJ, menos processos abertos para avaliação, menos medidas excepcionais como as retiradas de urgência e menos comunicações, estarão certamente associadas às circunstâncias determinadas pela pandemia, o confinamento familiar e o encerramento das escolas.  A escola, professores e auxiliares, são muito frequentemente quem se apercebe de situações de mal-estar das crianças, “são os olhos do sistema de protecção”, também estiveram menos próximos das crianças.

Uma reflexão agora mais centrada no aumento significativo da exposição e envolvimento de crianças e adolescentes em situações de violência doméstica. 

Depois de ter chumbado em 2019 uma iniciativa do BE no mesmo sentido, o PS apresentou há pouco tempo uma proposta parlamentar no sentido de reconhecer a crianças e jovens o estatuto de vítimas em situações de exposição a violência doméstica mesmo quando não sejam directamente atingidos. A proposta do PS junta-se a uma do PSD também recentemente apresentada e que difere pelo não estabelecimento de limite de idade.

Acresce que também existe uma petição pública subscrita por mais de 50 mil cidadãos com o objectivo de promover também a aprovação do estatuto de vítima para crianças envolvidas em contextos de violência doméstica.

É de facto um problema relevante. Em Janeiro o Governo lançou um concurso com o objectivo de reforçar o apoio psicológico e psicoterapêutico para crianças e jovens vítimas de violência doméstica atendidas e/ou acolhidas na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.

Segundo informação divulgada na altura estava prevista uma verba de 2,78 milhões de euros destinada a colmatar as “necessidades de serviços de apoio especializado, privilegiando abordagens psicoterapêuticas focadas no trauma, com a designação de Respostas de Apoio Psicológico (RAP) para crianças e jovens vítimas de violência doméstica”.

Nesta iniciativa estão a colaborar a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género e a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) através de um protocolo de colaboração na resposta a construir.

Como disse aquando da divulgação parece-me uma boa notícia, sobretudo num tempo em que escasseiam. Esperemos, no entanto, que se concretize e não seja algo que fica por assim mesmo. Não estranharei, mas era bom que avançasse tal como a aprovação do estatuto de vítima para as crianças e jovens envolvidos.

Importa ainda recordar que entidades como o Instituto de Apoio à Criança e a Ordem dos Advogados defendem a necessidade de maior protecção para crianças em contextos de violência doméstica.

O reforço do dispositivo de apoio anunciado seria, do meu ponto de vista mais eficaz, com outro enquadramento legal mais amigável para as crianças.

De facto, parece importante a necessidade de protecção nestes casos considerando o número de situações e os efeitos destas vivências na vida das crianças e adolescentes.

Para além de sublinhar os danos potenciais que esta exposição pode provocar nas crianças gostava de chamar a atenção para um outro potencial efeito nas crianças que assistem ou estão envolvidas em episódios, por vezes violentos, de violência doméstica, os modelos de relação pessoal que são interiorizados. Aliás, nos últimos anos tem-se verificado que a maioria das queixas de violência doméstica é apresentada por mulheres jovens o que permite pensar em crianças pequenas que assistirão a estes episódios.

Numa avaliação por defeito aos casos participados de violência doméstica estima-se que cerca de metade serão testemunhados por crianças. Se considerarmos que existem muitíssimas situações não reportadas, pode concluir-se que estas testemunhas, por vezes também vítimas, serão em número bem mais elevado.

Este quadro lembra o velho adágio "Filho és, pai serás", ou seja, num processo de modelagem social muitas crianças tenderão a replicar ao longo da sua vida, em adultos também, os comportamentos a que assistiram e que, tal como podem produzir efeitos traumáticos, poderão adquirir aos seus olhos, infelizmente, um estatuto de normalidade.

Não é certamente por acaso que estudos recentes em Portugal evidenciaram números elevadíssimos de violência em casais de jovens namorados universitários, uma população já com níveis de qualificação significativos.

Neste contexto e com o objectivo de contrariar uma espécie de fatalidade em círculo vicioso, os miúdos assistem à violência doméstica, replicam a violência, a sociedade é violenta, quando crescem são violentos em casa, e assim sucessivamente, importa que os processos educativos e de qualificação sublinhem a dimensão, a formação cívica e o quadro de valores.

Não é nada de novo, a afirmação desta necessidade.

Esperemos que as iniciativas divulgadas sejam mais do que promessa e aumentem significativamente os níveis de protecção e apoio a crianças e jovens pois o número de situações de risco é muito grande e está a aumentar.

Como afirma, Benedict Wells em “O fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se sabe quando nos vai atingir”.

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