domingo, 31 de agosto de 2025

A PRIMEIRA ÁGUA

 No final da manhã, ainda que por pouco tempo, caiu a primeira água de final do Verão aqui no meu Alentejo.

Ainda assim foi o suficiente para libertar o perfume da terra que sempre me lembra Mestre Almada Negreiros na Invenção do Dia Claro, “Depois, o cheiro da terra molhada é que me faz de novo animar.”. É retemperador depois da secura e a terra..

A primeira água anuncia outro ciclo, outra vida, outro verde, outra terra, outro frio lá mais para a frente. Esperemos para ver como será o ano.

Era bom que este recomeço trouxesse algo de novo, mas, lamentavelmente, o meu optimismo anda revisto em baixa.

Tudo parece estar velho e tudo o que nasce, vem velho e assusta.

Lamentavelmente, os dias já começam velhos, velhos como os que neles actuam, velhos como as promessas ou as falas que neles se ouvem, velhos como a desconfiança e a indiferença que nos pesam e a desesperança que nos inquieta.

Pensando nos meus netos e em todos os netos do mundo, precisamos de outros dias, animados com o cheiro da terra molhada.

Dias com futuro, como a chegada da chuva assinala.

sábado, 30 de agosto de 2025

OS TROCA-TINTAS

Há algumas semanas numa reunião com directores escolares o MECI apresentou um conjunto de medidas no âmbito de desenvolvimento do Plano +Aulas+Sucesso.

Entre as medidas apresentadas inscreve-se o aumento do número de mediadores culturais passando para 310 em 25/26 que intervirão em 347 unidades orgânicas o que representa um aumento de 23 face ao ano anterior e a intervenção em mais 28 unidades orgânicas.  O número, definido de acordo com o número de alunos migrantes inscritos em 23/24, continua a ser francamente insuficiente face à realidade das escolas e agrupamentos e aos problemas de alunos de outras nacionalidades em particular no que respeita ao domínio da língua. Parece claro que a presença crescente de alunos estrangeiros nas escolas portuguesas coloca enormes desafios e necessidades. De acordo com dados do MECI, número de estrangeiros no ensino não superior passou de cerca de 53 mil, 5,3% em 18/19 para cerca de 140 mil em 23/24, 13.9% da população escolar. Lê-se ainda no DN que no ano passado o número de alunos estrangeiros nas escolas aumentou 12%, mais 17 000.

No entanto e com alguma surpresa, o MECI divulgou agora, a 15 dias do início do ano lectivo que , afinal, as escolas não podem renovar os contractos e terão que abrir concurso o que, obviamente, compromete a intervenção dos mediadores no início do ano lectivo.

Lamentavelmente, já não me surpreendo. Apenas recordo a avó Leonor, vou tentar explicar.

Nos meus tempos de gaiato, a avó Leonor, uma das mulheres mais extraordinárias que conheci, com a mais-valia de ser minha, a minha avó, quando nós caíamos em alguma asneira e tentávamos as esfarrapadas desculpas que a imaginação, ou a falta dela, ditavam ou ainda, quando as pequenas ou grandes mentiras não saíam bem, tentava compor um ar severo, desmentido por uns olhos claros infinitamente doces, e dizia, “não sejam troca-tintas”.

Não me lembro se alguma vez lhe perguntei se sabia a origem da expressão, mas nestes tempos que vamos vivendo lembrei-me da avó Leonor e dos troca-tintas.

É grande a preocupação, o cansaço e o desânimo que o contexto social e político dos dias que correm provocam. O acompanhamento regular dos discursos e comportamentos de boa parte das lideranças políticas, sociais ou económicas são elucidativos do “troca-tintismo” que os informa, vale tudo sem limites éticos ou o respeito mínimo pela verdade. Insultam-nos com a desconsideração com que somos percebidos. Haverá certamente excepções, mas são isso mesmo, excepções.

É neste “troca-tintismo” que se sustenta e promove a eclosão do ovo da servente, dos ovos da serpente.

Vão feios os tempos.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

EM MUDANÇA, SERÁ MESMO?

 No contexto de mudanças anunciadas para o Ministério da Educação, Ciência e Inovação e do sentido em que deveriam acontecer, merece leitura o texto de Paulo Prudêncio no Público, “Só se desburocratizará quando o poder voltar à sala de aula”.

Parece claro que ninguém duvida da necessidade de mudanças no sistema educativo. No entanto e como sempre, é na sala de aula que tudo ganha sentido, ou não, e sustenta o caminho para o futuro. 

Como tantas vezes aqui digo à moda do meu Alentejo, deixem lá ver. No entanto, confesso e não me orgulho disso que  o meu optimismo anda revisto em baixa.

Sinais dos tempos em que os ventos de mudança têm trazido o mal no ventre.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

NÃO MATEM AS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANIDADES

 A decisão do Governo de promover uma alteração substantiva na área da política científica ao extinguir a Fundação para Ciência e Tecnologia e a Agência Nacional de Inovação substituindo estas instituições por uma Agência para a Investigação e Inovação (AI2), obteve o parecer positivo do Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Trata-se de um órgão de consulta do executivo que reúne instituições públicas da área, investigadores e representantes das empresas.

Em toda a extensa peça do Público sobre esta questão é patente a orientação política em matéria de Ciência e Investigação e reconhecida pelo Conselho, citando “O sucesso das mudanças será avaliado pela “medição do retorno dos investimentos públicos”, seja a “criação de produtos e serviços”, a “geração de spin-offs e startups”, a “comercialização de propriedade intelectual” ou a “criação de emprego qualificado e valorização a médio e longo prazo” que acabe com a actual “desconexão entre ciência fundamental, desenvolvimento tecnológico e comercialização”.

Tal entendimento está em linha com o que Ministro Fernando Alexandre tem defendido. Em 2021, em estudo realizado para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, entendia que para desenvolver o crescimento, o país devia centrar-se em criar produtos com incorporação de ciência e tecnologia.

Este entendimento agora reforçado pela posição do Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação vem aumentar o receio de continuidade num processo que tem vindo a desenvolver-se de há uns anos para cá com subvalorização dos apoios à investigação na área das ciências sociais e das humanidades.

Este caminho de sobrevalorização das áreas STEM não é novo e os tempos que vivemos, como verificamos pela decisão, tomada não auguram alteração da trajectória.

Em 2014, Devon Jensen, professor universitário com trabalho desenvolvido sobre o papel das universidades, a sua relação com os governos e o mundo económico e empresarial, apresentou em Lisboa uma conferência com a estimulante interrogação como título, “Is Higher Education Merely a Servant of the Economy?”.

Em entrevista ao Público Devon Jensen sublinhou a importância do desenvolvimento do ensino superior e da investigação, acentuando o papel nuclear da formação e investigação nos domínios das ciências sociais e das humanidades.

Foi há mais de 10 anos e a trajectória não se inflectiu, pelo contrário, acentuou-se esta desvalorização e continuamos no reforço desta perspectiva nas políticas públicas de investigação.

Tendo estado nas últimas décadas ligado à academia e à área das ciências sociais e humanidades, ouvi e senti com frequência, os discursos de desvalorização mesmo vindo de colegas, sobretudo das áreas STEM. Em termos institucionais as políticas públicas em matéria de ensino superior e investigação têm dado o seu contributo para o cenário actual.

Não é um caminho adequado, antes pelo contrário, sendo óbvia a importância das áreas STEM, o mundo em que vivemos com mudanças significativas em matérias sociais, nos comportamentos, nos valores, na formação dos indivíduos, etc., torna crítica a investigação e a produção de conhecimento nestes domínios e articulação de todo o conhecimento produzido.

A História não vos absolverá.

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

FALTAM E FALTARÃO PROFESSORES, O QUE É QUE NÃO SE PERCEBE?

 Os resultados da 1.ª fase do concurso de acesso ao ensino superior deixaram alguma preocupação a que urge dar atenção. No entanto, existe um dado positivo, os alunos colocados em licenciaturas em Educação Básica aumentaram 20,3% face a 2024 ocupando a totalidade das vagas existentes, novos 1199 estudantes colocados nesta fase, ocupando 100% das vagas disponibilizadas. Nos últimos três anos aumentou 64,9%, o número de colocados em licenciaturas em Educação Básica.

Considerando a questão crítica da falta de docentes é, de facto, um dado importante e significativo em matéria de escolha da profissão docente.

No entanto, creio que quando se refere esta dado se esquece, que, como há dias fazia notar Carlos Ceia no seu espaço no FB, “a licenciatura em Educação Básica só permite o acesso futuro aos cursos de mestrado em ensino de: Educação Pré-Escolar, Ensino do 1.º Ciclo do Ensino Básico (CEB), Educação Pré-Escolar e Ensino do 1.º CEB, Ensino do 1.º CEB e de Português e História e Geografia de Portugal no 2.º CEB e Ensino do 1.º CEB e de Matemática e Ciências Naturais no 2.º CEB. E está por provar que as vagas para esta licenciatura sejam sequer próximas das vagas para estes mestrados...

Todos os outros cursos 29 cursos de mestrado em ensino, que por acaso são onde existe maior falta de professores, não têm esta licenciatura como pré-requisito.”

Donde, o cenário da falta de professores está para durar, não é uma questão conjuntural, mas estrutural.

Assim, seria urgente que nas políticas públicas de educação se assuma a imperiosa necessidade de que as instituições de ensino superior, universidades e politécnicos, tenham recursos que permitam o alargamento da capacidade de resposta dos mestrados de ensino.

Sendo certo que a formação de professores carece de ajustamento, o caminho não pode ser o de aligeiramento ou “deskilling” do processo de formação.

Faltam e faltarão professores, o que é que não se percebe?

terça-feira, 26 de agosto de 2025

OS DIAS DOS PÉS DE BURRO

 A lida por aqui no monte envolve um conjunto de rotinas ao longo ao ano. Por esta altura e até ao início de Setembro, é altura da limpeza dos “pés de burro” das oliveiras, os rebentos que surgem na base do tronco e à sua volta. Com uma enxada, um sacho forte e tesourão o trabalho faz-se.

Depois é carregar e triturar para compostagem ou queimar os sobrantes quando for possível. Quando se gosta a lida fica mais branda e aqui no Monte nunca se acaba, Também acontece que enquanto se trabalha temos um tempinho de alheamento do inquietante desassossego do mundo.

As oliveiras que considero as árvores mais bonitas do nosso património ficam ainda mais bonitas quando limpas e com a vantagem de ser mais fácil estender os panos para colher a azeitona lá mais para a frente consoante o tempo que virá.

Sendo as oliveiras umas árvores tão bonitas, é para mim uma visão triste um olival de oliveiras velhas sem estarem limpas, cheias de “mato” à volta. Mas cada vez é mais difícil cuidar e manter um olival tradicional.

Sempre que olho para as oliveiras, especialmente aquelas com muitos séculos como algumas aqui do Monte admiro a sua generosidade.

Começam por dar as azeitonas que se comem em três variantes, pisadas, retalhadas e de conserva, qual delas a mais saborosa. Toda a gente tem uma arte de as temperar e, claro, nós também já temos os segredos, aprendemos com o Mestre Marrafa.

As azeitonas vão para o lagar e virá o azeite, a alma do comer bom, e como tem alma o azeite do Meu Alentejo.

Para além da azeitona e do azeite, a oliveira ainda é a mais calorosa das árvores, sempre a aquecer-nos. Aquece-nos quando maldosamente lhe batemos, varejamos, para nos dar a azeitona, aquece-nos quando a limpamos de pés de burro e cortamos os ramos e troncos para assegurar a sua renovação, aquece-nos quando rachamos e arrumamos a lenha que nos deu e, finalmente, ainda nos aquece quando nas noites longas e frias do Inverno arde na salamandra ou na lareira.

Como bondade final, esta generosa capacidade de dar vive numa escala incomensurável para nós, dura séculos.

São tão bonitas e generosas as oliveiras.

E são assim os dias do Alentejo.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

ENSINO SUPERIOR? É DEMASIADO CARO PARA MUITAS FAMÍLIAS

 Voltemos à questão dos resultados da colocação 1.ª fase de candidatura ao ensino superior, agora na sua dimensão mais preocupante e que se antecipava pelo abaixamento do número de candidaturas. Foram colocados menos 6064 estudantes colocados, 12,1% abaixo do ano anterior. O ensino politécnico e no interior parece ser mais afectado com quebras de 40% em algumas instituições.

Por outro lado, e ainda mais preocupante, também voltou a baixar o número de alunos colocados oriundos de famílias com baixo rendimento. Foram colocados nesta fase 1548 estudantes do escalão A, dos quais 1123 estudantes vindos do contingente prioritário criado em 2023 para os beneficiários de escalão A de acção social escolar. Em 2024 tinham sido 1655, 1178 através do contingente prioritário.

Face a este cenário, algumas notas em linha com o que escrevi há pouco tempo quase conheceram os dados da candidatura que antecipavam o cenário das colocações.

Não me parece que a razão para o abaixamento deste ano assente de forma significativa no ajustamento do processo de conclusão e exames do secundário assim como as oscilações demográficas também não o explicarão.

Para além de um eventual cenário de desencanto ou ausência em muitos jovens de uma imagem criadora de futuro associada a qualificação de nível superior, creio que os custos de frequência do ensino superior entre propinas, materiais, vida diária e necessidades de deslocação e alojamento difíceis de suportar para muitos jovens e famílias e um dispositivo de bolsas insuficiente um peso significativo neste abaixamento de candidaturas.

Os custos de deslocação e alojamento estarão foram do alcance de muitas famílias. No Correio da Manhã, com base em dados do Observatório de Alojamento Estudantil, lê-se que o custo médio nacional é de 415 euros e no último mês estariam disponíveis no último mês perto de seis mil quartos, mais de metade eram na região de Lisboa, onde haverá cerca de 50 mil estudantes deslocados. Ainda segundo o Observatório um quarto em Lisboa custa, em média, 500 euros por mês, mas pode chegar a 714 euros, o mais elevado do país. No Porto, o custo médio é de 400 euros, em Faro é de 380 euros, no Funchal é 465 euros e em Ponta Delgada, 400 euros. O Governo e algumas instituições de ensino superior têm anunciado a criação de mais camas para estudantes do ensino superior, mas o cenário é muito complicado e dificulta o acesso e frequência do ensino superior.

Aliás, para além deste menor número de alunos a candidatar-se ao superior também se verifica um aumento do abandono de estudantes no final do primeiro ano de frequência.

De acordo com o divulgado no portal Inforcursos  pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, em 23/24, nos cursos técnicos superiores profissionais, CTeSP, 28.1% dos alunos não estavam a frequentar o ensino um ano depois de iniciarem o curso e nas licenciaturas a taxa de abandono é de 11,2%, também superior aos anos anteriores.

A estes indicadores não serão certamente alheios os custos da frequência do ensino superior ou o “desencanto” com a escolha.

Como tantas vezes tenho afirmado, a qualificação é um bem de primeira necessidade e um forte contributo para projectos de vida bem-sucedidos pelo que o elevado abandono é uma questão crítica como crítica será a não candidatura de muitos jovens.

Sabe.se também que se tem verificado um aumento do número de candidatos a bolsa e é também reconhecido que em muitas famílias se tem verificado uma perda de rendimento.

No entanto, apesar destas dimensões poderem constituir alguma justificação a verdade em termos estruturais é estudar no superior é muito caro em Portugal e nem a recente alteração do regulamento de atribuição de bolsas minimizou esta situação.

Volto a um dado já aqui citado. De acordo com o Relatório do CNE, "Estado da Educação 2019", a percentagem de alunos que em Portugal acede a bolsas de estudo para o 1º ciclo do superior está no segundo escalão mais baixo da análise, entre 10 e 24,9%. Para comparação, Irlanda, Países Baixos estão no intervalo entre 25% e 49,9% e a Suécia no superior a 75%. Países como Espanha, França, Reino Unido e muitos outros têm percentagens de alunos com apoio superiores a nós e, sem estranheza, também maior nível de qualificação.

Estudos comparativos internacionais, “Social and Economic Conditions of Student Life in Europe”, por exemplo, também mostram que as famílias portuguesas são das que suportam uma fatia maior dos custos de frequência do superior sendo que ainda se verifica uma forte associação entre a frequência do ensino superior e nível de escolarização e estatuto económico das famílias.

Apesar de um abaixamento do valor as propinas no ensino público, as dificuldades sentidas por muitos estudantes do ensino superior e respectivas famílias, quer no sistema público, quer no sistema privado com valores bem mais altos de propinas, são frequentemente consideradas, do meu ponto de vista, de forma ligeira ou mesmo desvalorizadas. Tal entendimento parece assentar na ideia de que a formação de nível superior é um luxo, um bem supérfluo pelo que ... quem não tem dinheiro não tem vícios.

Não é particularmente animador o que a actual Secretária de Estado do Ensino Superior, Cláudia Sarrico, tenha referido em 2022 que, “as propinas de licenciatura são baixíssimas — muito menos do que se paga pelo infantário dos miúdos”, e que o “ensino superior gratuito, ou quase, tem um efeito regressivo”.

A questão é que a educação e qualificação são a melhor forma de promover desenvolvimento e cidadania de qualidade pelo que as políticas públicas devem enquadrar e sustentar os processos de educação e qualificação dos cidadãos, de todos os cidadãos.

domingo, 24 de agosto de 2025

AGORA NO SUPERIOR, BOA VIAGEM

 Foi divulgada a informação relativa às colocações dos estudantes candidatos ao superior. Para hoje umas notas dirigidas aos alunos colocados. Candidataram-se nesta 1.ª fase 48718 alunos, ficaram colocados 43 899, 63% conseguiram entrar no curso que escolheram em primeiro lugar e mais de 90% ficaram colocados numa das suas três primeiras opções.

Para estes alunos vai iniciar-se um percurso que, certamente, sustentará um projecto de vida bem-sucedido, mas não isento de dificuldades e obstáculos.

A colocação e as escolhas de curso assentam, naturalmente, nas motivações dos candidatos e das suas expectativas face ao futuro e nos constrangimentos e enviesamentos da oferta. Para os alunos não colocados nas primeiras escolhas teremos um risco acrescido de frustração que pode levar à desistência e desmotivação, esperemos que corra bem.

Umas notas breves em linha com o que aqui já tenho escrito.

Sou dos que entendem que cada um de nós deve poder escrever, tanto quanto as circunstâncias o permitirem, a sua narrativa, cumprir o seu sonho. Por outro lado, a vida também nos ensina que é preciso estar atento aos contextos e às condições que os influenciam, sabendo ainda a volatilidade e rapidez com que neste tempo a vida acontece.

Assim, parece-me importante que um jovem, sabendo o que a sua escolha representa, ou pode representar nas actuais, sublinho actuais, condições do mercado de trabalho, faça a sua escolha assente na sua motivação ou no projecto de vida que gostava de viver e, então, informar-se sobre opções, sobre as escolas e respectivos níveis de qualidade.

Por outro lado, é esta questão que quero sublinhar, boa parte da questão da empregabilidade, mesmo em situações de maior constrangimento, relativiza-se à competência, este é o ponto fulcral e não pode, não deve, ser esquecido.

Na verdade, o que frequentemente me inquieta é a ligeireza com que algumas pessoas parecem encarar a sua formação superior, assumindo uma atitude pouco "profissional", cumprem-se os serviços mínimos e depois logo se vê. Têm sido mediatizados casos que elucidam este entendimento, a formação significa a aquisição de um sólido conjunto de saberes e competências, não é um título que se cola ao nome. A experiência faz-me contactar regularmente com atitudes desta natureza.

Mesmo em áreas de mais baixa empregabilidade, ou assim entendida, continuo a acreditar que, apesar dos maus exemplos que todos conhecemos, a competência e a qualidade da formação e preparação para o desempenho profissional, são a melhor ferramenta para entrar nesse "longínquo" mercado de trabalho. Dito de outra maneira, maus profissionais terão sempre mais dificuldades, esteja o mercado mais aberto ou mais fechado.

Assim sendo, importa que o investimento, a preocupação com a aprendizagem e a aquisição de conhecimentos, competências e de princípios éticos e deontológicos se estabeleçam como desígnio. Com o avanço extraordinário das tecnologias digitais, sobretudo o universo da IA, as questões de natureza ética e deontológica ganham uma dimensão crítica.

Este entendimento pode e deve coexistir com o desenvolvimento de uma vida académica socialmente rica, divertida e fonte de bem-estar e satisfação. É desejável resistir à tentação do facilitismo, do passar não importa como, da fraude académica que constitui actualmente uma séria preocupação, da competição desenfreada que inibem partilha, cooperação e apoio para momentos menos bons.

O futuro vai começar dentro de momentos.

Boa sorte e boa viagem para todos os que vão iniciar agora esta fase fundamental nas suas vidas.

Amanhã voltaremos aos resultados das candidaturas e algumas questões que me parecem merecer reflexão.

sábado, 23 de agosto de 2025

A HISTÓRIA DAS CONTAS COM TRANSPORTE

 Aqui há tempos numa conversa com o Professor Velho, o que está na biblioteca e fala com os livros, ele contou-me uma história engraçada.

Andava lá na escola uma Menina que experimentava dificuldades nas contas com transporte. Lembram-se? Aquelas do "e vai um" como dizíamos em pequenos e que agora certamente terão uma nova designação. A professora da Menina tinha alguma dificuldade em perceber o que se passava, pois ela parecia perceber a lógica do transporte a partir da ideia de dezena. Tudo parecia entendido, no entanto, quando a Menina experimentava fazer as contas, lá vinha o erro, sendo que se não houvesse necessidade do "transporte" a coisa corria bem.

A Ana, a professora, comentava esta sua dificuldade com uma colega e o Professor Velho que estava por perto sugeriu-lhe que perguntasse à Menina porque não lhe saíam bem as contas com transporte. A Ana achou que o Velho estava a brincar e riu-se, "vou agora perguntar à Menina porque erra, ela não vai saber responder". "Experimenta pedir-lhe para tentar resolver as contas, mas pensando em voz alta o que vai fazendo, vais ver que percebes porque erra".

O engraçado da história é que o Professor Velho tinha razão, quando a Menina tentou fazer as contas em voz alta imediatamente ficou clara a razão do erro.

A Menina fazia as contas da esquerda para a direita, tal como lia e não da direita para a esquerda com as contas pedem.

Quanto melhor percebermos os processos que conduzem aos erros, em melhores condições estaremos de os modificar, os processos e os erros, disse ainda o Velho.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

VELHICE E POBREZA

 No âmbito das políticas sociais é reconhecido que crianças e idosos são os grupos em maior risco de pobreza. Lê-se no Público que o número de pessoas idosas que beneficiam do Complemento solidário para Idosos continua em crescimento significativo. Considerando o mês de Julho, cresceu 57,3% relativamente a 2024, 228827 pessoas, mais 83348 que em Julho do ano anterior. Este apoio abrange as pessoas com um rendimento inferior 630,67€.

Na verdade, em Portugal, a vida de muitos de nós, os velhos, é dura e difícil. Portugal é um dos países da Europa com população mais envelhecida, que vive só e no limiar de pobreza, uma percentagem muito significativa dos idosos tem pensões bem abaixo do salário mínimo

As despesas de estadia nos lares e centros de acolhimento são bastante mais altas que os rendimentos dos velhos, pelo que se torna necessária a comparticipação das famílias para além dos apoios do Estado. Dadas as dificuldades que também afectam as famílias, estas estão a sentir progressiva dificuldade em assegurar essas comparticipações.

Numa altura em que continua na agenda a reforma do estado que, parece, assenta nos cortes das suas funções sociais este cenário exige uma profunda atenção.

A discussão necessária sobre o chamado estado social decorre num contexto particularmente adverso que pode, existe esse sério risco, fazer emergir ameaças sobre a sua sustentabilidade e, naturalmente, sobre a sua matriz conceptual.

Na verdade, pensando sobretudo no quadro actual e futuro próximo, a nossa população mais velha vive de uma forma genérica em condições muito precárias, como também sabemos que a população mais jovem é a mais exposta ao risco de pobreza para além dos velhos. Aliás, como é conhecido a tragédia do desemprego afecta sobretudo os mais novos e os mais velhos.

Os idosos começam por ser desconsiderados pelo sistema de segurança social que com pensões que não suportam um nível de vida básico, transforma os velhos em pobres, dependentes e envolvidos numa luta diária pela sobrevivência.

Continua com um sistema de saúde que deixa muitos milhares de velhos dependentes de medicação e apoio sem médico de família. Em muitas circunstâncias, as famílias, seja pelos valores, seja pelas suas próprias dificuldades, não se constituem como um porto de abrigo, sendo parte significativa do problema e não da solução. Por outro lado, para além dos custos das instituições importa ainda considerar a acessibilidade da oferta e a respectiva qualidade como tem vindo a ser conhecido envolvendo ainda a clandestinidade de algumas das respostas.

Se olharmos para o conjunto de dados que vão sendo disponibilizados sobre este universo, verifica-se que as condições estruturais se mantêm sem alterações, estamos na mesma posição de pobreza há vários anos e, por outro lado, as condições conjunturais, a crise, acentuam a preocupação com a pobreza e com a velhice o que define um cenário altamente inquietante em termos de confiança no futuro e na desejada e necessária qualidade de vida.

Temos vindo a assistir a um acréscimo de dificuldades das organizações de solidariedade social no providenciar de apoios às dificuldades crescentes da população, sobretudo à mais idosa conhecendo-se a situação de “asfixia” de muitas instituições, e retorna a mendicidade ou o bater à porta das instituições, porventura de forma mais envergonhada e a atingir camadas diferentes.

Neste cenário, todas as medidas que de alguma forma atinjam os mais velhos devem ser objecto de uma extrema reflexão no sentido de evitar que se acentuem as dificuldades no (sobre)viver de uma parte significativa da população portuguesa.

Lamentavelmente, boa parte dos velhos, sofreu para chegar a velho e sofre a velhice. Não é um fim bonito para nenhuma narrativa.

Se a este quadro já instalado acresce o envelhecimento progressivo, o futuro exigirá mudanças substantivas e soluções novas, por exemplo, o estudo e desenvolvimento de algumas formas de vida activa uma vez que boa parte das pessoas mais velhas refere o desejo de poder manter algum tipo de actividade após a reforma.

Este país não estando a ser para jovens vai ter de ser para velhos.

quinta-feira, 21 de agosto de 2025

CRIANÇAS, LIVROS E LEITURA

 Sem que se conheçam o que planos ou orientações para um futuro imediato o Ministério da Educação decidiu extinguir o Plano Nacional de Leitura criado em 2006 e a Rede de Bibliotecas Escolares. Releva nesta decisão que não se conhecem dados ou razões que a sustentem.

Também sabemos que “todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”, mas não sabemos que novas qualidades virão no que respeita à questão crítica da relação dos mais novos com os livros e a leitura.

Por lado sabemos que, dados do estudo Evolução das Práticas de Leitura dos Alunos do Ensino Básico e Secundário em Portugal, realizado por investigadores do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (​CIES) do Iscte-IUL para o Plano Nacional de Leitura, cerca de um em cada quatro alunos portugueses dos ensinos básico e secundário tem menos de 20 livros em casa. E que se no início da escolaridade as crianças demonstram maior interesse pela leitura, este vai decaindo ao longo dos anos. Em 2023, 96,8% dos alunos do 1.º ciclo tinham lido pelo menos um livro nos 12 meses anteriores; no secundário, apenas 78,2%.

Sem surpresa, também para os mais velhos os livros não são uma escolha. Segundo os resultados do Inquérito às Competências dos Adultos de 2023, publicado no final do ano passado pela OCDE, 41% dos adultos que apenas conseguem ler textos curtos e listas organizadas e um grupinho de 15% nem sequer isso consegue.

A promoção de hábitos de leitura de crianças e jovens é um eixo crítico na educação escolar e familiar das sociedades actuais.

Recordo que em 2023 doi divulgado o designado Manifesto de Liubliana, subscrito pela Associação Internacional de Editores, Academia Alemã de Língua e Literatura, Federação dos Editores Europeus, EU-READ, Consórcio de organizações europeias de promoção da leitura, PEN Internacional, Federação Internacional das Associações de Bibliotecários e Conselho Internacional dos Livros para Jovens, apresentado na Feira do Livro de Frankfurt que decorre de 18 a 22 de Outubro.

Esta iniciativa destina-se promover os hábitos de leitura entre crianças e jovens designadamente a leitura de livros e textos mais longos. O movimento é sustentado pela importância que para o desenvolvimento global e conhecimento a leitura assume e, naturalmente, motivado pelo abaixamento destes hábitos de leitura que continuam preocupantes.

Como já aqui tenho escrito, os livros e a leitura são bens de primeira necessidade para gente de todas as idades donde a insistência. Recordo sempre Marguerite Yourcenar que em “As Memórias de Adriano” escrevia “A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana.”

São múltiplos os estudos e referências que sublinham o impacto dos livros e da leitura no desenvolvimento e competências escolares no trajecto pessoal. Lamentavelmente, são também muitos os trabalhos que mostram que os hábitos de leitura são pouco consistentes entre as crianças, adolescentes e jovens como, sem surpresa, também o são entre a população em geral. Nos últimos tempos parece estar a despertar um maior interesse pelos livros, sobretudo entre os mais novos, associado a um fenómeno das redes sociais, os booktokers que lêem e divulgam livros no TikToK. Esperemos que se mantenha e fortaleça.

Os livros têm uma concorrência fortíssima com outro tipo de materiais, telemóveis, jogos ou consolas por exemplo, e que nem sempre é fácil levar as crianças, jovens ou adultos a outras opções, designadamente aos livros.

Apesar de tudo isto também sabemos que é possível fazer diferente, mesmo que pouco e com mudanças lentas.

Só se aprende a ler lendo e o essencial é criar leitores que, quando o forem, procurarão o que ler, livros por exemplo, em que espaços, biblioteca, casa ou escola e em que suportes, papel ou digital.

Um leitor constrói-se desde o início do processo educativo, escolar e familiar. Desde logo assume especial importância o ambiente de literacia familiar e o envolvimento das famílias neste tipo de situações, através de actividades que desde a educação pré-escolar e 1º ciclo deveriam ser estimuladas, muitas vezes são, e para as quais poderiam ser disponibilizadas aos pais algumas orientações. 

Apesar dos esforços de muitos docentes, a relação de muitas crianças, adolescentes e jovens com os materiais de leitura e escrita assentará, provavelmente de forma excessiva, nos manuais ou na realização de trabalhos através da milagrosa “net” proliferando o apressado “copy, paste” ou resumos disponíveis das obras que são de leitura obrigatória ou recomendada.

 Neste contexto, embora desejasse muito estar enganado, não é fácil construir miúdos ou adolescentes leitores que procurem livros em casa, em bibliotecas escolares ou outras e que usem o "tablet" também para ler e não apenas para uma outra qualquer actividade da oferta sem fim que está disponível. A iniciativa dos booktokers que referi acima pode ser um bom sinal.

 Felizmente e apesar das dificuldades também importa sublinhar que se realizam com regularidade experiências muito interessantes em contextos escolares no âmbito do Plano Nacional de Leitura e da Rede de Bibliotecas Escolares com os professores bibliotecários têm desenvolvido um trabalho essencial, ou em iniciativas mais alargadas a outras entidades como autarquias e instituições culturais. Agora não sabemos o que se seguirá.

Sabemos, isso sim, que Precisamos de criar leitores, eles irão à procura dos livros ou da leitura, mesmo em tempos menos favoráveis.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

FAZER AS COISAS CERTAS, FAZER CERTAS AS COISAS (2)

 Há pouco mais de um mês foi divulgado pelo MEC a alteração das orientações para a regulação da mobilidade estatutária de docentes tendo definido o objectivo de diminuição de cerca de 35% das situações existentes.

A iniciativa pretende combater a escassez de professores nos grupos de recrutamento, quadros de zona pedagógica e escolas deficitárias” e permitirá o regresso às escolas de 248 docentes dado que a “autorização da mobilidade estatutária deve obedecer a critérios rigorosos”.

Como escrevi na altura, dada a latitude das possibilidades de mobilidade estatutária parece positivo um ajustamento nessas possibilidades se pensar sobretudo na colocação de docentes em serviços, mas, também disse que seria necessário que nas modificações introduzidas se inscrevesse a publicitação das situações de mobilidade que não dei conta de que tivesse acontecido.

Tal informação permitiria conhecimento e clareza no que respeita à mobilidade.

Entretanto vai-se conhecendo o impacto que esta medida terá se for posta prática se forma “cega”. Já soubemos que docentes que integram as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens regressarão às escolas e agora que docentes com funções nas Escolas de SegundaOportunidade (E20) estão a ser retirados com sério impacto no seu funcionamento.

Como na altura também escrevi, seria importante que para além de fazer as coisas certas, importa fazer certas as coisas.

Esta decisão coloca em sério risco o funcionamento de duas estruturas críticas para a promoção de apoios e atenção a crianças e jovens em situação de maior vulnerabilidade, as CPCJ e as Escolas de Segunda Oportunidade. Não é aceitável e nem sequer resolve o problema grave da falta de docentes. Aliás, a imprensa de hoje já se refere o arranque do próximo ano lectivo conforme o novo normal, alunos sem professores a todas as disciplinas.

É verdade que a questão é complexa e de difícil resolução imediata e colocar pessoas que não são professores a “dar (vender) aulas” é um risco. Urge o ajustamento nas políticas públicas no sentido da promoção e valorização social e profissional dos professores em diferentes dimensões. A valorização e reconhecimento passam também pela necessidade de ajustamentos na formação, de modelos de carreira e de avaliação justos e transparentes que sustentem, reconheçam e promovam competência, empenho e atracção pela profissão.

Não vejo outro caminho.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

A REVELAÇÃO

 Ia ser hoje, certamente. Depois do que ultimamente tem acontecido entre eles não passaria de hoje a revelação. A sugestão para um encontro naquele bar a que sempre iam quando queriam o tempo só para eles deixava antecipar que naquela noite se começaria a desenhar o seu futuro, melhor, o futuro deles.

Tinham descoberto tanto encontro e tão pouco desencontro em tão pouco tempo. Ela nunca imaginara que pudesse existir alguém de que se sentisse tão próxima e que essa proximidade sempre assim parecia sido e sempre assim parecia ir ser.

Sempre tinha merecido atenção de muitas pessoas e passara por muitas circunstâncias em que pensava ter encontrado quem procurava. Por uma razão ou por outra as coisas acabavam por tomar um rumo diferente, o caminho continuava.

Desta vez sentia que era a sério, mesmo a sério, quando olhava para os olhos dele lia, achava ela, o mesmo. Tinha nascido o encontro na vida deles.

Foi pois sem surpresa, mas como alguma ansiedade que percebeu o pequeno embrulho que ele trazia e que, com certeza, faria parte da revelação.

A conversa daquela noite foi ainda mais bonita e mais envolvente do que sempre era, e, é justo dizer-se, a relação que estavam a construir era muito envolvente. A certa altura, meio embaraçado e com um olhar de bem querer ele estende-lhe o embrulhinho, uma prenda muito bem composta, com papel bonito e laço elegante.

Com a curiosidade dos miúdos pequenos abriu-a com algum nervosismo e ficou nas mãos com um telemóvel de última geração igualzinho ao dele.

Segurando-lhe na mão como se vê nos filmes, ele disse da forma mais apaixonada que ela já alguma vez ouvira, "Está desbloqueado, vamos poder estar sempre juntos".

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

TEMPOS FEIOS, A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA QUE PARECE INDOMESTICÁVEL

 Desculpem a insistência, mas existem matérias que não podem, não devem, sair da agenda de preocupações em termos de cidadania e, obviamente, das prioridades das políticas públicas. A violência doméstica é uma dessas questões.

Uma peça no Público refere com base em dados do Portal da Violência que no primeiro semestre de 2025 a PSP e GNR registaram 18396 denúncias.

O número de detenções tem vindo a subir, 1461 pessoas detidas, 395 em prisões preventiva e 1066 condenadas.

A GNR registou 6951 crimes de violência doméstica e a PSP registou 11.445 crimes no mesmo período. O número de mortes em contextos familiares aumentou 42% nos primeiros seis meses de 2025 face a 2024.

São dados impressionantes e os tempos que vivemos não permitem grande optimismo. Acresce que, para além de sabermos o que a violência doméstica está habitualmente no topo das participações, este mundo é bem mais denso e grave do que a realidade que conhecemos, ou seja, aquilo que se conhece, apesar de recorrentemente termos notícias de casos extremos, é "apenas" a parte que fica visível de um mundo escuro que esconde muitas mais situações que diariamente ocorrem numa casa perto de nós.

Por outro lado, para além da gravidade e frequência com que continuam a acontecer episódios trágicos de violência doméstica e como recorrentemente aqui refiro, é ainda inquietante o facto de que alguns estudos realizados em Portugal evidenciam um elevado índice de violência presente nas relações amorosas entre gente mais nova mesmo quando mais qualificada. Muitos dos intervenientes remetem para um perturbador entendimento de normalidade o recurso a comportamentos que claramente configuram agressividade e abuso ou mesmo violência.

Importa ainda combater de forma mais eficaz o sentimento de impunidade instalado, as condenações são bastante menos que os casos reportados e comprovados, bem como alguma “resignação” ou “tolerância” das vítimas face à situação de dependência que sentem relativamente ao parceiro, à percepção de eventual vazio de alternativas à separação ou a uma falsa ideia de protecção dos filhos que as mantém num espaço de tortura e sofrimento. Felizmente este cenário parece estar em mudança, mas demasiado lentamente. Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem mais lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores sociais presentes em cada época.

Torna-se criticamente necessário que nos processos de educação e formação dos mais novos possamos desenvolver esforços que ajustem quadros de valores, de cultura e de comportamentos nas relações interpessoais que minimizem o cenário negro de violência doméstica em que vivemos. A educação, a cidadania e o desenvolvimento que sustentam constituem a ferramenta de mudança mais potente de que dispomos.

É uma aposta que urge e tão importante como os conhecimentos curriculares. Percebe-se, também por estas questões, a importância da abordagem do universo da “Cidadania e Desenvolvimento” na educação escolar e para todos os alunos. Seria ainda desejável que a ignorância, o pré-conceito e, também, o preconceito não inquinassem a discussão.

Entretanto, torna-se fundamental a existência de dispositivos de avaliação de risco e de apoio como instituições de acolhimento suficientes e acessíveis para casos mais graves, um sistema de protecção e apoio eficiente aos menores envolvidos ou testemunhas destes episódios, e, naturalmente, um sistema de justiça eficaz e célere.

A omissão ou desvalorização destas mudanças é a alimentação de um sistema de valores que ainda “legitima” a violência nas relações amorosas, que a entende como “normal”. Tudo isto tem como efeito a continuidade dos graves episódios de violência que regularmente se conhecem, muitos deles com fim trágico.

Apesar da natureza estranha e complexa dos dias que vivemos, é fundamental não esquecer questões como estas que devastam o quotidiano ou a vida de muita gente. Pode estar a acontecer numa casa ao lado.

Neste contexto, é também de registar a iniciativa há tempo divulgada de criar um primeiro instrumento legal de âmbito europeu para combater a violência doméstica e contra as mulheres.

domingo, 17 de agosto de 2025

DA SÉRIE "METE-ME ESPÉCIE"

 Esta é daquelas notícias que me “mete espécie” para recorrer a um dos mais bonitos e utilizados enunciados da nossa língua.

Neste ano de avaliação digital nos exames do 9.º ano o ME decidiu criar um dispositivo de regulação no processo de classificação.  Quando a classificação final da disciplina, após a realização da prova, é inferior à classificação interna final ou a nota obtida na prova é muito superior à classificação interna do aluno, a prova é reavaliada.

Assim, de acordo com os dados disponibilizados pelo ME foram reavaliadas 13.690 provas e mais de metade, 7420, teve a sua nota alterada, subindo ou descendo. Por disciplinas, das 5488 provas de Português reavaliadas, em 3162 a classificação subiu e em 1317 desceu. Considerando a Matemática foram revistas 7708 provas e 1447 alunos tiveram um aumento da nota e em 1127 baixou a classificação.

Na verdade, este significativo volume de alterações, para além de “meter espécie, levanta dúvidas quanto às razões que esperemos vir a conhecer. Algumas hipóteses podem ser consideradas.

A Associação dos Professores de Português refere o facto de ser o primeiro ano de provas digitais e a literacia digital dos alunos pode “contaminar” o desempenho. A Associação dos Professores de Matemática refere a importância do dispositivo de regulação criado pelo ME com vista a melhorar o processo de avaliação, mas não refere a eventual razão para tantos casos de alteração da nota.

Dada a importância crítica da fiabilidade do dispositivo de avaliação externa, ficamos a aguardar alguma explicação por parte do IAVE considerando aspectos como o processo de digitalização, as metodologias ou a eficiência da logística da classificação.

No entanto e “cá para mim”, nos tempos que correm “acho” que “anda aqui mãozinha” dos Srs. Algoritmos que, por alguma deriva ideológica, decidiram criar “ruído” num processo que, como é reconhecido, tinha todas as condições para correr bem, com eficiência e competência.

Deixem lá ver, como por cá no Alentejo dizemos.

sábado, 16 de agosto de 2025

CHEGOU O INFERNO

 Nada de novo, o Verão nem estava a correr muito mal, mas parece inevitável. Chegou o inferno e chega com a força brutal que já conhecemos e que não conseguimos minimizar de forma significativa. Este ano e após um Inverno e Primavera chuvosos que deixaram os terrenos com imenso combustível e agora com secura do tempo estavam reunidas as condições para o desastre.

Todos os anos surgem as campanhas, avisos e apelos. Anunciam-se novas estruturas de resposta rápida e meios de combate, somos informados de melhorias nos dispositivos de prevenção e combate, no aumento de meios à disposição, na racionalização da gestão dos recursos, etc. etc.

No entanto, o que é estrutural, a ordenação do território, políticas florestais adequadas e limpeza de terrenos continua por acontecer de forma eficiente e significativa.

E sem surpresa, quando chegam os grandes incêndios, as ondas de calor trazem-nos no ventre, tudo recomeça.

Desde logo a comunicação social, sobretudo a televisiva, de forma frequentemente sem pudor, respeito e competência, a mostrar o "terreno", o "cenário dantesco", a ouvir "moradores que passaram uma noite em branco", a ouvir o "senhor comandante dos bombeiros", a referir os "meios aéreos, dois Canadairs e um Kamov ou a falta deles", a ouvir os "responsáveis locais ou regionais da protecção civil", a gravar despudoradamente imagens de dor, sofrimento e perda de gente anónima que tendo quase nada, vê arder o quase tudo. Um filme sempre visto e sem surpresas.

É evidente que temperaturas muito altas e vento que nos caracterizam durante os meses de Verão são condições desfavoráveis, mas, apesar de alguns progressos, a falta de prevenção, a negligência, a delinquência e a incompetência nas políticas públicas continuam a dar um contributo fortíssimo ao inferno que sobressalta cada Verão.

Sem nenhuma espécie de conhecimento destas matérias, para além do interesse e preocupação de um cidadão minimamente atento e preocupado com os custos enormes destes cenários de destruição, tenho alguma dificuldade, considerando a dimensão do nosso país, em compreender a inevitabilidade e, sobretudo, a dimensão destes cenários. Os espanhóis têm por uso afirmar que os incêndios se combatem no Inverno, nós combatemo-los no inferno.

Trata-se de um destino que não pode ser evitado? Trata-se de uma área de negócios, a fileira do fogo, que, pelos muitos milhões que envolve, importa manter e fazer funcionar sazonalmente? Trata-se "só" de incompetência na decisão política e técnica em termos de resposta e prevenção? Trata-se da falta de recursos? Trata-se da falência de modelos de desenvolvimento facilitadores de desertificação e abandono, designadamente das áreas rurais?

O poeta falava de um fogo que arde sem se ver, é bonita a imagem. Mas quando um fogo arde e se vêem os seus efeitos devastadores e dramáticos para tantas pessoas, dói e não se perdoa.

Parece sina, passamos o ano inteiro a tentar apagar fogos.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

UMA VIAGEM NO TEMPO

 Há setenta e um anos, no Feijó, localidade no concelho de Almada e agora referência diária nas notícias sobre trânsito para a Ponte 25 de Abril dada a proximidade com uma ponte que baliza o engarrafamento habitual para Lisboa, nasceu um miúdo, primeiro filho de um serralheiro e de uma costureira.

Após a primária e contrariando o que seria mais provável, os pais entenderam que iria estudar. Logo que inaugurado frequentou o liceu de Almada, secção do Liceu D. João de Castro em Lisboa, sem grande apetência e brilho, mas com um certo jeito para o futebol e para um comportamento, por assim dizer, menos ajustado do que os professores desejavam, mas que dava alguma popularidade junto dos colegas.

Dada a inexistência de secundário no Liceu de Almada o jovem foi para o D. João de Castro em Lisboa e num tempo cheio de dúvidas, descobriu nas aulas de Filosofia do Professor José Barata Moura o seu caminho, a Psicologia. Nessa altura, também emergiu um sentimento de rejeição aos tempos que vivíamos, o tempo do Estado Novo, e com alguma adrenalina à mistura se desenvolviam algumas acções que mereceram um aviso sério ao pai, entretanto chamado à escola.

Naquele tempo, o Instituto Superior de Psicologia Aplicada era a única escola de Psicologia em Portugal, mas sendo privada não permitia o adiamento do serviço militar e a mais que provável participação nas guerras coloniais, algo inaceitável para mim, mas também sair do país era um passo muito difícil. Entretanto, constou que o ISPA iria ter o curso reconhecido o que permitia o adiamento militar e logo no ano seguinte, em 1973, o jovem entrou no ensino superior com satisfação da família, mas com alguma reserva face à escolha da Psicologia.

Ainda no 1º ano do curso acontece “O dia inicial, inteiro e limpo” em 25 de Abril de 1974 e tudo mudou, podia continuar a estudar e a escolha da área foi fácil, a Psicologia da Educação, um mundo que perdurou e no qual, obviamente, tudo começou.

A meio do curso, a partida inesperada do pai obrigou à busca de trabalho e, sorte a do jovem estudante, a assistência no ISPA a uma sessão em que se divulgava a criação de uma instituição de apoio a crianças e jovens com deficiência mental, a CERCI, levou a que no dia seguinte estava o jovem, eu, a bater à porta e a querer entrar.

Ainda estudante, comecei como auxiliar de educação e no fim do curso continuei como psicólogo envolvido numa equipa de gente jovem absolutamente empenhada e todos com uma capacidade de aprendizagem notável.

Entretanto, dada a colaboração com o Ministério da Educação, acabei por ser convidado a integrar a Divisão de Ensino Especial, na altura liderada por uma mulher visionária e empenhada no cumprimento dos direitos, de todos os direitos das crianças e jovens com deficiência, a Dra. Ana Maria Bénard da Costa. Foram tempos absolutamente extraordinários, com trabalho com pais e técnicos em múltiplos locais do país numa luta pela educação e, falava-se assim, integração de todas as pessoas. Ainda no Ministério, integrei a Divisão de Orientação Educativa que tinha a tutela dos Serviços de Psicologia e Orientação, entretanto criados.

Entretanto, dada a experiência na área, o ISPA convidou-me a leccionar uma disciplina sobre o universo da educação especial e posteriormente, em 1994, a entrar a tempo inteiro que aceitei, gostava de dar aulas e também se tinha instalado algum desencanto com as funções no Ministério.

Era um outro mundo onde me realizei e passei anos de grande gozo profissional com uma excelente relação com alunos, colegas extraordinários e funcionários. Foram anos de muito gosto e trabalho em muitas latitudes, destacando as inesquecíveis viagens a Moçambique com o Mestre Malangatana e as idas a Porto Alegre no Brasil. Ainda uma nota para os anos que trabalhei no ISPA – Beja, uma experiência notável e com alunos, agora colegas, com grande empenho e competência.

A questão é que os anos passam e em 2020 chegou a aposentação e em 2024 o fim, chamam-lhe a jubilação. Tudo tem um fim.

Durante todo este trajecto, lado a lado, tem estado a minha companheira de sempre, mesmo de sempre, pois conhecemo-nos desde muito pequenos, que cumpriu um trajecto de professora do 1.º ciclo e também no âmbito da educação especial como professora especializada.

Entretanto, apareceu o João que nos cumpriu como pais e que, mais recentemente com a Rita, nos fez entrar no mundo mágico da avozice com o nascimento do Simão em 2013 e do Tomás em 2016 e do qual vou partilhando aqui algumas histórias.

Em 1993 e dando vida a uma paixão já existente e acentuada a partir do primeiro ano de trabalho da minha companheira em Panóias, conseguimos descobrir um pedaço de paraíso no Alentejo e no qual continuamos na lida enquanto a idade deixar.

Durante muitos anos em todo este trajecto acreditávamos que estávamos e vivíamos num mundo melhor do que aquele em que entrámos.

No entanto, acumulam-se nuvens negras, ouvimos o que não esperávamos ouvir, lemos o que já não esperávamos ler, assistimos ao que já não esperávamos assistir. O mundo está feio, as lideranças não ajudam nas soluções, as lideranças são o problema.

Quando olho para os meus netos ou penso em todos os outros netos sinto-me inquieto, que mundo os espera? Que amanhã estamos a criar? Que fizemos com o mundo que acreditávamos ter na mão?

Eu vim de longe, de um dia 15 de Agosto de 1954, há setenta e um anos. Não era isto que eu queria e esperava ver agora.

No tempo que me resta continuarei, tanto quanto possível e da forma possível, a construir com os netos uma imagem criadora de futuro e quero muito acreditar que lá chegarão.

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

SERVIÇOS DE PSICOLOGIA NAS ESCOLAS

Não é com a frequência que gostaríamos que se encontram boas notícias no universo da educação, mas registamos quando tal acontece.

O MECI divulgou hoje a a autorização para vinculação de 830 psicólogos nos quadros de agrupamentos e escolas tal como de 576 técnicos especializados, como terapeutas da fala, assistentes sociais ou técnicos de informática.

Ainda de acordo com o MECI, passarão a estar nas escolas 1655 psicólogos com vínculo permanente permitindo que todas tenha pelo menos um profissional nos seus quadros. Neste contexto, o rácio médio de psicólogo por número de alunos passará 1472 para cada profissional para 711 alunos. Recordo que as orientações nacionais e internacionais definem como desejável um rácio de um para 500 alunos que, aliás, também já foi definido como objectivo pelo Ministério na Lei n.º 54/2025 de 10 de Abril deste ano. Esta lei alterou o velhinho Decreto-Lei n.º 190/91, de 17 de Maio de 1991.

Importa recordar que muitos destes profissionais têm desempenhado durante anos funções nas escolas com contratos a termos.

Umas notas para insistir na relevância dos Serviços de Psicologia criados em 1991 por legislação agora alterada e que nessa altura acompanhei durante algum tempo enquanto estive nos Serviços do ME que os tutelava, a Divisão de Orientação Educativa.

Considerando o Referencial para a Intervenção dos Psicólogos em Contexto Escolar, o estado da arte em matéria de psicologia da educação e do desenvolvimento e de contextos de intervenção carregados de constrangimentos, o empenhamento e a competência dos profissionais pode dar um contributo sólido para a qualidade dos processos educativos de todos os alunos.

Para além do trabalho com alunos é crítica a colaboração e intervenção com professores, funcionários, direcções e pais e encarregados de educação, para além de outras respostas na comunidade dirigidas à população em idade escolar.

No entanto, como tantas vezes tenho escrito e afirmado, desde 1991 a presença dos psicólogos em contextos educativos tem vivido entre as declarações dos vários actores, incluindo a tutela, sobre a sua necessidade e importância e a lentidão, insuficiência e precariedade no sentido da sua concretização.

Tem sido recorrente a afirmação por parte de sucessivas equipas do ME da prioridade em promover o alargamento do número de técnicos e a estabilidade da sua presença nas comunidades educativa, mas é algo que, como se percebe, tarda em concretizar-se e insisto em notas já por aqui escritas e marcadas pelo óbvio envolvimento pessoal, quer na formação, quer na intervenção ao longo de algumas décadas.

No entanto, para além da precariedade, o número de psicólogos a desempenhar funções no sistema educativo público tem estado longe do rácio aconselhado para um trabalho mais eficiente.

Não têm sido raras as situações em que existe um psicólogo para um agrupamento com várias escolas e que envolve um universo com mais de 1500 alunos e a deslocação permanente entre várias escolas numa espécie de psicologia em trânsito. Não será uma resposta, é um fingimento de resposta que não serve adequadamente os destinatários, a comunidade educativa, como também, evidentemente, compromete os próprios profissionais.

Temos também inúmeras escolas onde os psicólogos não passam ou têm “meio psicólogo” ou menos e ainda a prestação de apoios especializados de psicologia em “outsourcing” e com a duração de meia hora semanal uma situação inaceitável e que é um atentado científico e profissional e, naturalmente, condenado ao fracasso de que o técnico independentemente do seu esforço e competência será responsabilizado. No entanto, dir-se-á sempre que existe apoio de um profissional de psicologia. O Referencial orientador da intervenção dos psicólogos nos contextos escolares é um documento positivo, mas corre o risco ser inaplicável em muitas situações face ao alargado espectro de funções e actividades previstas associado ao universo de destinatários.

Neste cenário, a intervenção dos profissionais, apesar do esforço e competência, tem um potencial de impacto aquém do desejável e necessário. Áreas de intervenção como dificuldades ou problemas nas aprendizagens, questões ligadas aos comportamentos nas suas múltiplas variantes, alunos com necessidades especiais, trabalho com professores e pais, trabalho ao nível da prevenção de problemas, etc., exigem recursos e tempo que não estão habitualmente disponíveis.

Acresce que o recurso ao modelo de “outsourcing” ou a descontinuidade do trabalho é um erro em absoluto, é ineficaz, independentemente do esforço e competência dos profissionais envolvidos.

Como é que se pode esperar que alguém de fora da escola, fora da equipa, técnica e docente, fora dos circuitos e processos de envolvimento, planeamento e intervenção desenvolva um trabalho consistente, integrado e bem-sucedido com os alunos e demais elementos da escola?

Das duas uma, ou se entende que os psicólogos sobretudo, mas não só, os que possuem formação na área da psicologia da educação podem ser úteis nas escolas como suporte a dificuldades de alunos, professores e pais em diversos áreas, não substituindo ninguém, mas providenciando contributos específicos para os processos educativos e, portanto, devem fazer parte das equipas das escolas, base evidentemente necessária ao sucesso da sua intervenção, ou então, é uma outra visão, os psicólogos não servem para coisa alguma, só atrapalham e, portanto, não são necessários.

A situação que tem existido parece, no mínimo, um enorme equívoco que além de correr sérios riscos de eficácia e ser um, mais um, desperdício (apesar do empenho e competência que os técnicos possam emprestar à sua intervenção), tem ainda o efeito colateral de alimentar uma percepção errada do trabalho dos psicólogos nas escolas.

Há um ano que cheguei ao fim de uma carreira de 46 anos ligada à psicologia da educação e ainda aguardo que a importância e prioridade sempre atribuídas ao trabalho dos psicólogos em contextos educativos se concretizem de forma suficiente e estável.

Será agora? 

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

DAS BIRRAS

 No Público e a propósito do seu livro “Filhos, Haja Quem os Entenda” encontra-se uma entrevista a Catarina Perpétuo que parece interessante e útil. Entre as matérias abordadas falou-se de birras, uma das eternas questões do universo da educação familiar. Ao longo de décadas de lida profissional, tantas e tantas vezes, a questão das birras foi objecto de diálogo com pais, individualmente ou em grupo e de intervenções na imprensa.

Não resisto à tentação de retomar umas notas, tanto mais que estamos num tempo de férias em que se espera existir mais disponibilidade para a educação familiar e, naturalmente, para mais … umas birras.

Na verdade, a frequência com que as birras são abordadas é proporcional à preocupação e receio que causam nos adultos. As crianças desencadeiam as birras ao longo das diferentes situações do seu quotidiano e, por vezes, “decidem” também apresentar uma birra em espaços públicos, restaurantes por exemplo, ou quando estão em casa adultos amigos dos pais. Nestes contextos a coisa fica particularmente embaraçante para os pais e, não raras vezes, perturbador para outras pessoas. Aliás, já começam a surgir espaços, hotelaria e restauração, interditos a crianças justamente pela “má vizinhança” que fazem.

Esta preocupação com as birras tem levado a que se multiplique a oferta de aconselhamento e orientação, como livro referido acima. Como sabem, contrariando directrizes legais, as crianças constituem o único “produto” que é disponibilizado aos pais sem estar acompanhado de manual de instruções em várias línguas em que informe como lidar com as birras dos mais novos prevenindo o seu aparecimento ou apressando o seu fim.

Esta oferta alargada começa a ser especializada em diferentes contextos de ocorrência de birras, à mesa ou ao deitar só para citar exemplos mais correntes. Não ficará por aqui.

Algumas notas simples. Em primeiro lugar referir que o comportamento a que chamamos birra cumpre na maioria das situações um papel no desenvolvimento de crianças e adolescentes associado à construção e testagem de limites e regras, imposições ou orientações dos adultos e consolidação de auto-regulação e resiliência face à frustração, ou seja, como lidar com a não realização do que apetece ou não ter o que se quer no momento.

Quero sublinhar que não estou a desculpar ou minimizar as birras, estou apenas a tentar mostrar por que razão acontecem.

Como sempre defendo, quanto melhor entendermos os processos que levam aos comportamentos, em melhores condições estaremos de evitar que aconteçam ou minimizar o seu impacto.

Aliás, num pequeno parêntesis, deixem-me recordar que as birras não são um exclusivo dos mais novos, quantos de nós fazemos regularmente algumas pequenas “birras” que nos trazem dividendos que levam a que … as tornemos a repetir.

Neste contexto, o que julgo relevante não é centrarmo-nos no comportamento de birra das crianças, mas nos nossos comportamentos. Somos nós e a nossa acção que poderão minimizar, intencionalmente não escrevo eliminar, o risco das birras e, ou do grau de “espectacularidade” que por vezes assumem.

Desde logo é fundamental que saibamos usar o “não”, o “não” é um bem de primeira necessidade na vida dos miúdos que, como disse, nos testam continuamente. Por várias razões, muitos de nós, adultos, somos capazes de providenciar os imprescindíveis mimos e afectos, mas, com alguma regularidade, expressamos dificuldades em estabelecer regras e limites de que as crianças precisam tanto como de respirar ou alimentar-se.

Para além de alguma insegurança que os pais possam sentir face aos desafios da parentalidade, estas dificuldades estão com alguma frequência associadas aos estilos de vida das famílias que não permitindo a disponibilidade do tempo desejado para estar com as crianças instalam algum desconforto (culpa) que pode levar a que alguns pais no momento em que precisam de dizer “não”, “agora” ou afirmar outra qualquer decisão hesitem e deixem cair o “não” em nome de um “não estragar” o pouco tempo que estão juntos.

As crianças percebem que muitas vezes o “não” é um sim a prazo, demora menos tempo se a birra for forte e, de preferência, com assistência, sejam os amigos dos pais lá em casa, ou outras pessoas num restaurante ou no centro comercial.

Crescendo com esta falta do “não” algumas crianças transformam-se, de facto, em pequenos ditadores que assumem um comportamento desregulado e despótico que é pouco saudável para toda a gente a começar por si próprios.

Como já aqui escrevi, é nestas circunstâncias que se torna frequente ouvir algo como “tem mimos a mais” que me incomoda seriamente pois acho que encerra um enorme equívoco. As crianças não têm mimo mais, têm “nãos” a menos, têm mau mimo e é por isso que faz mal, não é por ser muito.

Precisamos de não nos esquecermos que as crianças são inteligentes, entendem com muita clareza quando o “não” com algum “trabalho” da sua parte se torna um “sim” em variantes como, “vá lá, pronto”, “só mais um bocadinho” ou ”podes mexer, mas não estragues”, etc. E também porque são inteligentes compreendem com alguma tranquilidade, se também a usarmos, o estabelecimento de regras e limites de que, creiam, também sentem precisar mesmo quando aparentemente as rejeitam. A sua ausência é que é o grande risco e a sua solidez atenua a repetição dos comportamentos não desejados.

Assim sendo, seria positivo que sem grandes receitas ou esquemas os pais se sentissem confiantes e seguros para oferecer o “não” no tempo adequado e oportuno ainda que de forma flexível.

Seria também desejável que os pais não temessem as birras ou eventuais olhares reprovadores da assistência. Para as crianças mais pequenas o disponibilizar ao mesmo tempo que um “não” um “sim” a algo aceitável pode ser uma ajuda para drenar a frustração e recuperar a serenidade. Para as mais velhas, o diálogo discreto e firme pode também ser uma ajuda pois, como disse, as crianças são inteligentes e sabem “ler” muito bem os nossos comportamentos.

E a verdade é que se sentem melhor em ambientes educativos regulados e serenos apesar de, desculpem a aparente contradição, as crianças saudáveis também o serem porque de vez em quando lá vem uma birra como “prova de vida” e tarefa de desenvolvimento.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

A HISTÓRIA DO ARTESÃO

 Uma vez conheci um Artesão como não há muitos, era um homem de uma sabedoria e de um amor à sua arte que impressionava.

Desde miúdo que sonhava dedicar-se à arte que viria a ser a sua. Preparou-se bem e mesmo já a trabalhar sempre procurou compreender mais, falando com outros mestres e outras pessoas que o Artesão entendia que o podiam ajudar a ser melhor.

Mesmo sendo um Artesão muito experiente e trabalhando sempre com a mesma matéria, quando começava cada trabalho estudava e pensava em cada peça que iniciava. Muitas vezes fazia o mesmo tipo de trabalho, mas sabia que os materiais nunca são exactamente iguais e por isso não podem ser sempre trabalhados da mesma maneira. O Artesão dizia muitas vezes que temos de respeitar as diferenças nos materiais, só assim conseguiremos que eles acabem por se transformar em peças valiosas e, na verdade, as peças que saíam das mãos do Artesão eram peças valiosas, muito valiosas.

O Artesão referia frequentemente que algumas das peças se tornavam muito fáceis de produzir, tinham características próprias que lhe facilitavam o trabalho, outras, como ele dizia, davam luta, resistiam ao trabalho, às vezes nem corria bem, mas, quase sempre conseguia algo de interessante e bonito.

Este Artesão tinha uma outra qualidade que o tornou conhecido, não guardava a sua arte só para si, gostava de falar dela, de ajudar os mestres que estavam a começar e que também apreciavam o seu trabalho e a sua ajuda.

Coisa estranha, agora que estou a acabar a história do Artesão reparei que não referi a arte a que se dedicava. Era Professor.

A sério.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

DA PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS

 As mudanças orgânicas no Ministério da educação e as alterações na questão da mobilidade implicam que muitos docentes que integram as Comissões de Protecção e Crianças e Jovens voltarão às escolas com o impacto negativo que parece óbvio e mais significativo se atentarmos que se trata de Protecção de crianças e jovens.

Para sublinhar a relevância do trabalho destes docentes cujo trabalho fui acompanhando durante muito tempo através da colaboração em diversas iniciativas de muitas Comissões, recordo o Relatório de Actividade da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e da Protecção das Crianças e Jovens relativo a 2024. Vejamos alguns indicadores.

No ano anterior foram recebidos pelas Comissões de Protecção e Crianças e Jovens 89008 processos de Promoção e Protecção de crianças e jovens em risco. Este valor traduz um aumento de 5,5% relativamente a 2023.

A negligência é a situação de risco mais denunciado, 19 107 casos, 30,4% do total, depois surge a violência doméstica, 17295 casos, um abaixamento ligeiro comparando a 2023. Em terceiro lugar estão os comportamentos de perigo na infância e juventude com 11795 situações, 18,8% do total e uma subida de 1425 situações face a 2023.

 As Comissões de Protecção identificaram 13.373 crianças e jovens com diagnóstico de necessidade de aplicação de medida de promoção e protecção. A maior prevalência verifica-se na faixa etária dos 15 aos 17, 26,9% do total, com 3599 jovens, 1562 do sexo feminino e 2037 do sexo masculino.

As forças de segurança comunicaram 425 das situações e as escolas 18, 8%.

Verificou-se, naturalmente, um maior volume de actividade das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens.

De há muito e a propósito de várias questões afirmo que em Portugal, apesar de existirem diferentes dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens e de existir legislação no mesmo sentido sempre assente no incontornável “superior interesse da criança", não possuímos ainda o que me parece mais importante, uma cultura sólida de protecção das crianças e jovens como alguns exemplos regularmente evidenciam.

Por outro lado, as condições de funcionamento as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens que procuram fazer um trabalho eficaz estão ainda longe de ser as mais adequadas e operam em circunstâncias difíceis. Na sua grande maioria, as Comissões têm responsabilidades sobre um número de situações de risco ou comprovadas que transcendem a sua capacidade de resposta.

A parte mais operacional das Comissões, a designada Comissão restrita, é composta por muitos técnicos em tempo parcial. Tal dificuldade repercute-se, como é óbvio, na eficácia e qualidade do trabalho desenvolvido, independentemente do esforço e empenho dos profissionais que as integram. A anunciada saída de professores que as integram agrava de forma substantiva a insuficiência de recursos.

Muitas vezes tenho aqui referido a necessidade maior investimento e eficiência no âmbito do sistema de protecção de menores. Para além do reforço dos recursos das CPCJ seria desejável uma melhor integração e oportunidade das respostas a situações detectadas, uma adequação às mudanças e novas realidades na área dos Tribunais de Família e Menores, etc. Os serviços de apoio às comunidades, ainda que regulados e escrutinados, deverão ser suficientes e adequados em recursos e procedimentos.

Este cenário permite que ocorram situações, frequentemente com contornos dramáticos, envolvendo crianças e jovens que sendo conhecida a sua condição de vulnerabilidade não tinham, ou não tiveram, o apoio ou os procedimentos necessários. É então provável que, depois de se conhecerem episódios mais graves, possamos ouvir expressão que me deixa particularmente incomodado, a criança estava “sinalizada” ou “referenciada”, mas dessa "sinalização" não decorreu a adequada intervenção.

Sinalizamos e referenciamos com relativa facilidade, a grande dificuldade é minimizar ou resolver os problemas das crianças referenciadas ou sinalizadas. Importa ainda não esquecer as que passam mal em diferentes aspectos sem que estejam sinalizadas ou referenciadas. Nos tempos que atravessamos os riscos serão maiores.

Por isso, sendo importante registar uma aparente menor tolerância da comunidade aos maus tratos aos miúdos, também será fundamental que desenvolva a sua intolerância face à ausência de respostas que más opções em matéria de políticas públicas sustentam.

As crianças são resilientes, mas família, afecto, contextos educativos de qualidade, são bens de primeira necessidade.

Como afirma, Benedict Wells em “O fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se sabe quando nos vai atingir”.

domingo, 10 de agosto de 2025

FARDOS

 Quando estamos por aqui no Monte qualquer tarefa ou circunstância nos faz lembrar o nosso querido Mestre Zé Marrafa. Hoje, num dia de abafura áspera, lembrei-me de uma conversa tida num dia de muito calor sentados à sombra da alfarrobeira depois de apanharmos a cebola e com uma “mini” a refrescar a garganta. Sempre que lhe perguntava se queria uma “mini” respondia “e não fará mal?”. Não Mestre Zé, não faz mal e sabia sempre muito bem acomapanhada das lérias.

Voltando à conversa e comentando que o calor torna a lida mais dura, o Mestre Zé foi buscar uma história, ele gostava de contar histórias como todos nós, os velhos. Quando ainda tinha casado há pouco tempo, ele a mulher e o sogro envolveram-se numa empreitada, o dinheiro não era muito e procurava "jogar-se" ao que podia para fazer uns amanhos na casita.

O trabalho era carregar fardos de palha que estavam numa herdade lá para os lados de Torre dos Coelheiros. A herdade tão tinha tractor que içasse os fardos para cima da "rolota" (o atrelado de carga do tractor) e o Velho Marrafa tomou conta da empreitada de carregar os fardos todos para serem armazenados. A mulher e o sogro estavam em cima da "rolota" e iam arrumando os fardos que o Velho Marrafa levantava do chão com um forcado, uma forquilha de duas pontas, para cima do atrelado.

Esta empreitada veio à conversa porque sendo pagos ao fardo, que tinha por volta de 50 kg cada, saíam de casa ainda de noite e trabalhavam até ficar escuro. Faziam umas quatro carradas de 200 fardos cada. Acresce que este trabalho se fez, foi essa a lembrança, com um calor que até no Alentejo se estranhava ou, como dizia o Velho Marrafa, estava mesmo áspero.

No fim, da história e da cerveja, o Velho Marrafa, com o ar de sempre dizia, "Sr. Zé, sem trabalho nada se faz, nada se tem. Amanhei a casa, sem a empreitada dos fardos não conseguia".

Mas esta é uma história antiga, do tempo em que os fardos eram mais pesados de carregar.

Depois de tanta lida, o Mestre Zé não merecia o último fardo que a vida lhe trouxe.

sábado, 9 de agosto de 2025

MUROS

 Deixem-me insistir. Muitas das reacções à decisão do Tribunal Constitucional e do veto do Presidente da República à proposta de lei dos Estrangeiros sublinham o sobressalto causado por discursos produzidos na imprensa e nas redes sociais, obviamente, o aumento de episódios de agressão verbal e física "apenas" pela razão do outro ser diferente ou percebido como diferente e como se sustentam os muros atrás dos quais ficam as “pessoas de bem”, uma figura de definição impossível. Mais do que questões de natureza ideológica, trata-se de uma questão política naturalmente, mas sobretudo de natureza ética, cívica e … decência.

Como há pouco aqui escrevi, existem linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas e estão a ser ultrapassadas e de forma cada vez mais inquietante ignorando o quadro de valores que regula, ou deve regular, o discurso e comportamento social e, naturalmente o quadro constitucional em vigor.

Do que se tem ouvido, lido e conhecido, comentar o quê? Como?

Para um tipo que em jovem adulto passou pela mudança verificada em Abril de 74 e conheceu o tempo antes e o tempo depois interroga-se e inquieta-se, porque falhámos, que mundo estamos a construir? O que esperam os meus netos e todas as crianças que têm a vida na sua frente?

Estamos num tempo de perplexidade e dúvida face ao crescimento de discursos populistas e demagógico, apelando à intolerância, ao xenofobismo e a valores de direita radical muitos deles atentatórios de direitos humanos básicos. Os exemplos são muitos, primeiro lá por fora e agora também por cá vão-se multiplicando réplicas deste caminho que nos deixa inquietos face ao futuro e criando ambientes de onde eclodem os ovos da serpente.

Milhões de excluídos e pobres e de jovens sem presente e sem futuro são um alvo fácil para discursos populistas e radicais.

As sementes de mal-estar que que estes milhões de pessoas carregam, muitos deles desde criança são muito facilmente capitalizadas e mobilizadas.

Talvez a relativa tranquilidade com que se assiste à construção de muros e barreiras de natureza diversa acabe por não ser estranha.

Eles vão sendo construídos nas nossas vidas conduzindo no limite à construção de "condomínios de um homem só" rodeado de muros para que ninguém entre.

Estes muros são menos visíveis, mas não perdem eficácia.

Como aqui há dias escrevia, a mediocridade da generalidade das lideranças e o que lhes permitimos fazer criaram, por exemplo, um mundo de desigualdade e exclusão. É aqui, insisto, que nasce o que nos assusta.

É esta a batalha que não podemos perder e estou cheio de dúvidas se a estamos a ganhar. Também passa pela educação, pela escola, pela formação cívica e pela cidadania.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

UM HOMEM E UMA MULHER CHAMADOS PAIS

 Era uma vez um homem e uma mulher que se chamavam Pais. Tinham um filho pequeno que era o mundo deles. De tão desejado, quando chegou entrou o tudo naquela casa.

Gostavam tanto dele que não se afastavam um minuto, nunca. Um deles, Pais, estava sempre ao pé do filho.

Acompanhavam-no para todo o lado. Quando não era possível ficar bem junto, ficavam o mais perto possível para estarem atentos e vigilantes. Isto tanto acontecia quando o filho ia para a escola, como quando, mais raramente, brincava no parque, sempre com poucos amigos, mas com os Pais bem pertinho.

O filho foi crescendo sempre à sombra de Pais, tão próximos estavam, nem um solzinho lhe dava cor à pele. Uma noite, já o filho era mais velho, ouviu-se um barulho que sobressaltou Pais, numa das raríssimas ocasiões em que ambos dormiam. Assustados, correram a ver do filho, claro.

Encontraram a caixa onde o guardavam destapada e, ao lado da tampa, um bilhete, “Pais, preciso de aprender a respirar. Voltarei um dia, não se zanguem”.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

A MATEMÁTICA É UMA COISA MUITO DIFÍCIL

 Os resultados dos exames de Matemática na 2.ª fase dos exames no 9.º ano acentuam a preocupação com o nível genérico de conhecimento dos alunos na disciplina de Matemática, área de conhecimento nuclear e que alimenta outras áreas do saber.

Urge um entendimento sobre como inverter este caminho. No entanto, nem entre os docentes da disciplina parece existir consenso sobre o que se torna necessário.

A Sociedade Portuguesa de Matemática sobrevaloriza a questão da alteração curricular, a passagem das “metas curriculares” para as “aprendizagens essenciais” e a Associação dos Professores de Matemática considera os resultados são ainda consequência das “metas curriculares” e as “aprendizagens essenciais” terão um efeito positivo alertando para risco de agravamento no curto prazo com, por exemplo, os efeitos da falta de docentes.

Não sou especialista em questões curriculares, mas parece-me curioso que a Sociedade Portuguesa de Matemática e a Associação dos Professores de Matemática, não sei com que dimensão representativa dos professores de matemática têm habitualmente entendimentos diferentes com um argumentário que em alguns aspectos que me são mais familiares, o funcionamento dos alunos por exemplo, me levantam dúvidas e, por vezes, me parecem fruto de agendas para além da Matemática.

Lembro-me, por exemplo, de Nuno Crato, de há muito ligado à SPM e sempre com “base na evidência” ter, enquanto ministro, proclamado a existência de professores a mais e a “inevitabilidade da redução”. Sabemos o que se tem verificado.

Continuo a entender que estruturas curriculares demasiado extensas, normativas e prescritivas são pouco amigáveis para o bom desempenho da generalidade dos alunos, pouco amigáveis para acomodar a diversidade.

Por outro lado, e como aqui tenho escrito, o desempenho a Matemática pode ainda ser influenciado, não numa relação de causa-efeito, por múltiplas variáveis como número de alunos por turma, tipologia das turmas e das escolas e dos contextos, dispositivos de apoio às dificuldades de alunos e professores ou questões de natureza didáctica e pedagógica.

Acresce a esta complexidade um conjunto de outras variáveis menos consideradas por vezes, mas que a experiência e a evidência mostram ter também algum impacto.

São variáveis de natureza mais psicológica como a percepção que os alunos têm de si próprios como capazes de ter sucesso associada a contextos familiares de natureza diversa, por exemplo.

É também conhecido e os resultados do PISA sublinham, que os pais com mais qualificação e de mais elevado estatuto económico têm expectativas mais elevadas sobre o desempenho escolar dos filhos o que se repercute na acção educativa e nos resultados escolares e, naturalmente, mais facilmente mobilizam formas de ajuda para eventuais dificuldades, seja nos TPC, seja através de ajuda externa.

Finalmente uma outra variável neste âmbito, a representação sobre a própria Matemática. Creio que ainda hoje existe uma percepção passada nos discursos de muita gente com diferentes níveis de qualificação de que a Matemática é uma “coisa difícil” e ainda de que só os mais “inteligentes” têm “jeito” para a Matemática. Esta ideia é tão presente que não é raro ouvir figuras públicas afirmar sem qualquer sobressalto e até com bonomia que “nunca tiveram jeito para a Matemática, para os números”. É claro que ninguém se atreve a confessar uma eventual “falta de jeito” para a Língua Portuguesa e, por vezes, bem que parece. A mudança deste cenário é uma tarefa para todos nós e não apenas para os professores e seria importante que acontecesse.

 

De facto, este tipo de discursos não pode deixar de contaminar os alunos logo desde o 1º ciclo convencendo-se alguns de que a Matemática vai ser difícil, não vão conseguir ser “bons” e a desmotivar-se.

Não fica fácil a tarefa dos professores, mas no limite e como sempre será a escola, o braço operacional da comunidade, a fazer a diferença.

Parece ainda claro e é uma questão central que para promover mais e melhor sucesso e não empurrar os alunos para os anos seguintes sem nenhuma melhoria nas suas competências ou saberes é essencial, como referia acima, criar e tornar acessíveis a alunos, professores e famílias apoios e recursos adequados e competentes de forma a evitar a última e genericamente ineficaz medida do chumbo.

Sabemos também que a escola pode e deve fazer a diferença, em muitas escolas isso acontece. Mas para que isto seja consistente e não localizado também sabemos que o sucesso se constrói identificando e prevenindo dificuldades de forma precoce, com a definição de currículos adequados, com a estruturação de dispositivos de apoio eficazes, competentes e suficientes a alunos e professores, com a definição de políticas educativas que sustentem um quadro normativo simples e coerente e modelos adequados e reais de autonomia, organização e funcionamento desburocratizado das escolas, com a definição de objectivos de curto e médio prazo, com a valorização do trabalho dos professores, com práticas de diferenciação que não sejam "grelhodependentes", com expectativas positivas face ao trabalho e face aos alunos, com melhores níveis de trabalho cooperativo e tutorial, quer para professores quer para alunos, etc.

Uma nota final para a importância da avaliação externa como forma imprescindível de regulação. No entanto, não entendo que só por existirem e serem muitos, os exames finais, só por si, insisto, só por si, melhorem a qualidade. É como esperar que só por medir muitas vezes a febre irá baixar. A qualidade é promovida considerando o que escrevi em cima e regulada em termos globais pela avaliação externa que permite análises necessárias, nacionais ou internacionais como, por exemplo, o TIMSS.

É com a escola, por dentro da escola e integrado em sólidos projectos de autonomia e responsabilidade e com recursos adequados que o caminho se constrói.

Sabemos tudo isto. Nada é novo. Só falta um pequeno passo.