sexta-feira, 15 de agosto de 2025

UMA VIAGEM NO TEMPO

 Há setenta e um anos, no Feijó, localidade no concelho de Almada e agora referência diária nas notícias sobre trânsito para a Ponte 25 de Abril dada a proximidade com uma ponte que baliza o engarrafamento habitual para Lisboa, nasceu um miúdo, primeiro filho de um serralheiro e de uma costureira.

Após a primária e contrariando o que seria mais provável, os pais entenderam que iria estudar. Logo que inaugurado frequentou o liceu de Almada, secção do Liceu D. João de Castro em Lisboa, sem grande apetência e brilho, mas com um certo jeito para o futebol e para um comportamento, por assim dizer, menos ajustado do que os professores desejavam, mas que dava alguma popularidade junto dos colegas.

Dada a inexistência de secundário no Liceu de Almada o jovem foi para o D. João de Castro em Lisboa e num tempo cheio de dúvidas, descobriu nas aulas de Filosofia do Professor José Barata Moura o seu caminho, a Psicologia. Nessa altura, também emergiu um sentimento de rejeição aos tempos que vivíamos, o tempo do Estado Novo, e com alguma adrenalina à mistura se desenvolviam algumas acções que mereceram um aviso sério ao pai, entretanto chamado à escola.

Naquele tempo, o Instituto Superior de Psicologia Aplicada era a única escola de Psicologia em Portugal, mas sendo privada não permitia o adiamento do serviço militar e a mais que provável participação nas guerras coloniais, algo inaceitável para mim, mas também sair do país era um passo muito difícil. Entretanto, constou que o ISPA iria ter o curso reconhecido o que permitia o adiamento militar e logo no ano seguinte, em 1973, o jovem entrou no ensino superior com satisfação da família, mas com alguma reserva face à escolha da Psicologia.

Ainda no 1º ano do curso acontece “O dia inicial, inteiro e limpo” em 25 de Abril de 1974 e tudo mudou, podia continuar a estudar e a escolha da área foi fácil, a Psicologia da Educação, um mundo que perdurou e no qual, obviamente, tudo começou.

A meio do curso, a partida inesperada do pai obrigou à busca de trabalho e, sorte a do jovem estudante, a assistência no ISPA a uma sessão em que se divulgava a criação de uma instituição de apoio a crianças e jovens com deficiência mental, a CERCI, levou a que no dia seguinte estava o jovem, eu, a bater à porta e a querer entrar.

Ainda estudante, comecei como auxiliar de educação e no fim do curso continuei como psicólogo envolvido numa equipa de gente jovem absolutamente empenhada e todos com uma capacidade de aprendizagem notável.

Entretanto, dada a colaboração com o Ministério da Educação, acabei por ser convidado a integrar a Divisão de Ensino Especial, na altura liderada por uma mulher visionária e empenhada no cumprimento dos direitos, de todos os direitos das crianças e jovens com deficiência, a Dra. Ana Maria Bénard da Costa. Foram tempos absolutamente extraordinários, com trabalho com pais e técnicos em múltiplos locais do país numa luta pela educação e, falava-se assim, integração de todas as pessoas. Ainda no Ministério, integrei a Divisão de Orientação Educativa que tinha a tutela dos Serviços de Psicologia e Orientação, entretanto criados.

Entretanto, dada a experiência na área, o ISPA convidou-me a leccionar uma disciplina sobre o universo da educação especial e posteriormente, em 1994, a entrar a tempo inteiro que aceitei, gostava de dar aulas e também se tinha instalado algum desencanto com as funções no Ministério.

Era um outro mundo onde me realizei e passei anos de grande gozo profissional com uma excelente relação com alunos, colegas extraordinários e funcionários. Foram anos de muito gosto e trabalho em muitas latitudes, destacando as inesquecíveis viagens a Moçambique com o Mestre Malangatana e as idas a Porto Alegre no Brasil. Ainda uma nota para os anos que trabalhei no ISPA – Beja, uma experiência notável e com alunos, agora colegas, com grande empenho e competência.

A questão é que os anos passam e em 2020 chegou a aposentação e em 2024 o fim, chamam-lhe a jubilação. Tudo tem um fim.

Durante todo este trajecto, lado a lado, tem estado a minha companheira de sempre, mesmo de sempre, pois conhecemo-nos desde muito pequenos, que cumpriu um trajecto de professora do 1.º ciclo e também no âmbito da educação especial como professora especializada.

Entretanto, apareceu o João que nos cumpriu como pais e que, mais recentemente com a Rita, nos fez entrar no mundo mágico da avozice com o nascimento do Simão em 2013 e do Tomás em 2016 e do qual vou partilhando aqui algumas histórias.

Em 1993 e dando vida a uma paixão já existente e acentuada a partir do primeiro ano de trabalho da minha companheira em Panóias, conseguimos descobrir um pedaço de paraíso no Alentejo e no qual continuamos na lida enquanto a idade deixar.

Durante muitos anos em todo este trajecto acreditávamos que estávamos e vivíamos num mundo melhor do que aquele em que entrámos.

No entanto, acumulam-se nuvens negras, ouvimos o que não esperávamos ouvir, lemos o que já não esperávamos ler, assistimos ao que já não esperávamos assistir. O mundo está feio, as lideranças não ajudam nas soluções, as lideranças são o problema.

Quando olho para os meus netos ou penso em todos os outros netos sinto-me inquieto, que mundo os espera? Que amanhã estamos a criar? Que fizemos com o mundo que acreditávamos ter na mão?

Eu vim de longe, de um dia 15 de Agosto de 1954, há setenta e um anos. Não era isto que eu queria e esperava ver agora.

No tempo que me resta continuarei, tanto quanto possível e da forma possível, a construir com os netos uma imagem criadora de futuro e quero muito acreditar que lá chegarão.

2 comentários:

Anónimo disse...

Tive o privilégio de o ouvir várias vezes no Piaget em formações que assistia como educadora orientadora de estágios e posso dizer-lhe que o tempo passava rápido não me "cansava"de o ouvir obrigada por tudo o que aprendi consigo.

Anónimo disse...

Qdo eu encontra nas palavras lidas, vivências, memórias de afetos por pessoas e locais sentidos de forma idênticas, sinto- me agradecida. Foi bom. Estes anos valeram a pena, apesar das nuvens