Há setenta e um anos, no Feijó, localidade no concelho de Almada e agora referência diária nas notícias sobre trânsito para a Ponte 25 de Abril dada a proximidade com uma ponte que baliza o engarrafamento habitual para Lisboa, nasceu um miúdo, primeiro filho de um serralheiro e de uma costureira.
Após a primária e contrariando o
que seria mais provável, os pais entenderam que iria estudar. Logo que
inaugurado frequentou o liceu de Almada, secção do Liceu D. João de Castro em
Lisboa, sem grande apetência e brilho, mas com um certo jeito para o futebol e
para um comportamento, por assim dizer, menos ajustado do que os professores
desejavam, mas que dava alguma popularidade junto dos colegas.
Dada a inexistência de secundário
no Liceu de Almada o jovem foi para o D. João de Castro em Lisboa e num tempo cheio de dúvidas, descobriu nas aulas de Filosofia do Professor José Barata
Moura o seu caminho, a Psicologia. Nessa altura, também emergiu um sentimento de
rejeição aos tempos que vivíamos, o tempo do Estado Novo, e com alguma
adrenalina à mistura se desenvolviam algumas acções que mereceram um aviso
sério ao pai, entretanto chamado à escola.
Naquele tempo, o Instituto Superior
de Psicologia Aplicada era a única escola de Psicologia em Portugal, mas sendo
privada não permitia o adiamento do serviço militar e a mais que provável
participação nas guerras coloniais, algo inaceitável para mim, mas também sair do
país era um passo muito difícil. Entretanto, constou que o ISPA iria ter o
curso reconhecido o que permitia o adiamento militar e logo no ano seguinte, em
1973, o jovem entrou no ensino superior com satisfação da família, mas com
alguma reserva face à escolha da Psicologia.
Ainda no 1º ano do curso acontece
“O dia inicial, inteiro e limpo” em 25 de Abril de 1974 e tudo mudou, podia
continuar a estudar e a escolha da área foi fácil, a Psicologia da Educação, um
mundo que perdurou e no qual, obviamente, tudo começou.
A meio do curso, a partida inesperada
do pai obrigou à busca de trabalho e, sorte a do jovem estudante, a assistência
no ISPA a uma sessão em que se divulgava a criação de uma instituição de apoio
a crianças e jovens com deficiência mental, a CERCI, levou a que no dia
seguinte estava o jovem, eu, a bater à porta e a querer entrar.
Ainda estudante, comecei como
auxiliar de educação e no fim do curso continuei como psicólogo envolvido numa
equipa de gente jovem absolutamente empenhada e todos com uma capacidade de
aprendizagem notável.
Entretanto, dada a colaboração
com o Ministério da Educação, acabei por ser convidado a integrar a Divisão de Ensino
Especial, na altura liderada por uma mulher visionária e empenhada no
cumprimento dos direitos, de todos os direitos das crianças e jovens com
deficiência, a Dra. Ana Maria Bénard da Costa. Foram tempos absolutamente extraordinários,
com trabalho com pais e técnicos em múltiplos locais do país numa luta pela
educação e, falava-se assim, integração de todas as pessoas. Ainda no
Ministério, integrei a Divisão de Orientação Educativa que tinha a tutela dos
Serviços de Psicologia e Orientação, entretanto criados.
Entretanto, dada a experiência na
área, o ISPA convidou-me a leccionar uma disciplina sobre o universo da
educação especial e posteriormente, em 1994, a entrar a tempo inteiro que
aceitei, gostava de dar aulas e também se tinha instalado algum desencanto com
as funções no Ministério.
Era um outro mundo onde me
realizei e passei anos de grande gozo profissional com uma excelente relação
com alunos, colegas extraordinários e funcionários. Foram anos de muito gosto e
trabalho em muitas latitudes, destacando as inesquecíveis viagens a Moçambique
com o Mestre Malangatana e as idas a Porto Alegre no Brasil. Ainda uma nota
para os anos que trabalhei no ISPA – Beja, uma experiência notável e com
alunos, agora colegas, com grande empenho e competência.
A questão é que os anos passam e
em 2020 chegou a aposentação e em 2024 o fim, chamam-lhe a jubilação. Tudo tem um fim.
Durante todo este trajecto, lado
a lado, tem estado a minha companheira de sempre, mesmo de sempre, pois
conhecemo-nos desde muito pequenos, que cumpriu um trajecto de professora do
1.º ciclo e também no âmbito da educação especial como professora
especializada.
Entretanto, apareceu o João que
nos cumpriu como pais e que, mais recentemente com a Rita, nos fez entrar no
mundo mágico da avozice com o nascimento do Simão em 2013 e do Tomás em 2016 e
do qual vou partilhando aqui algumas histórias.
Em 1993 e dando vida a uma paixão já existente e acentuada a partir do primeiro ano de trabalho da minha companheira em Panóias, conseguimos descobrir um pedaço de paraíso no Alentejo e no qual continuamos na
lida enquanto a idade deixar.
Durante muitos anos em todo este
trajecto acreditávamos que estávamos e vivíamos num mundo melhor do que aquele
em que entrámos.
No entanto, acumulam-se nuvens negras,
ouvimos o que não esperávamos ouvir, lemos o que já não esperávamos ler, assistimos
ao que já não esperávamos assistir. O mundo está feio, as lideranças não ajudam
nas soluções, as lideranças são o problema.
Quando olho para os meus netos ou
penso em todos os outros netos sinto-me inquieto, que mundo os espera? Que
amanhã estamos a criar? Que fizemos com o mundo que acreditávamos ter na mão?
Eu vim de longe, de um dia 15 de
Agosto de 1954, há setenta e um anos. Não era isto que eu queria e esperava ver agora.
No tempo que me resta continuarei,
tanto quanto possível e da forma possível, a construir com os netos uma imagem
criadora de futuro e quero muito acreditar que lá chegarão.
2 comentários:
Tive o privilégio de o ouvir várias vezes no Piaget em formações que assistia como educadora orientadora de estágios e posso dizer-lhe que o tempo passava rápido não me "cansava"de o ouvir obrigada por tudo o que aprendi consigo.
Qdo eu encontra nas palavras lidas, vivências, memórias de afetos por pessoas e locais sentidos de forma idênticas, sinto- me agradecida. Foi bom. Estes anos valeram a pena, apesar das nuvens
Enviar um comentário