De acordo com o Público a venda de jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa atingiu 3136 milhões de euros em 2023, mais 72 milhões do que em 2022. Dito de outra forma, verificou-se um volume de aposta diárias de quase 8,6 milhões por dia nos jogos da Santa Casa em 2023. A “raspadinha” é o jogo com maior volume de apostas.
É obra. Se considerarmos que
ainda se verifica um volume significativo de gastos noutras formas de jogo,
online sobretudo, percebe-se o impacto significativo que terá nos orçamentos
familiares.
Recordo que em 2023 foi divulgado
um estudo desencadeado pelo Conselho Económico e Social sobre a utilização da
vulgar “raspadinha” realizado com a colaboração de Pedro Morgado e Luís
Aguiar-Conraria da Universidade do Minho.
A raspadinha continua a ser o
jogo mais popular e de estudos anteriores já se conhecia que perto de 80% dos
jogadores pertence às classes mais desfavorecidas, D e E, 61% jogam regular ou
frequentemente e 37.5% dos apostadores estão acima dos 55 anos.
Do estudo do CES infere-se que
cerca de 100 mil pessoas em Portugal podem apresentar problemas de jogo com as
“raspadinhas”, 1,21% da população. Deste universo 30000 cidadãos terão “quase
de certeza doença instalada, ou seja, “perturbação de jogo patológico”, de
acordo com Pedro Morgado.
No que respeita ao perfil dos
“utilizadores”, um cidadão com rendimento até 664 euros têm três vezes mais
probabilidade de jogar frequentemente que um cidadão com rendimento superior a
1500 €. Um cidadão com o ensino básico terá quase seis vezes mais probabilidades
que de ser um jogador frequente que alguém com mestrado ou doutoramento.
Uma outra variável importante e
estudada é a idade. Os cidadãos com 66 ou mais revelam o dobro da probabilidade
de serem jogadores frequentes de "raspadinha", se comparados com a
franja populacional entre os 18 e os 36.
Os dados são relevantes, mas não
surpreendem, recordo um outro trabalho desenvolvido por Pedro Morgado (um dos
responsáveis do estudo CES) e Daniela Vilaverde da Escola de Medicina da
Universidade do Minho, divulgado em 2020 na The Lancet Psychiatry que mostra
como a relação de muitos apostadores portugueses com a vulgar “Raspadinha” tem
vindo configurar um comportamento aditivo, indutor de sofrimento e mal-estar
social e familiar. Dados de 2018 já mostravam mostram que os gastos nestas
apostas foram de 1594 milhões de euros, 160€ por ano em média por apostador o
que é superior ao que se verifica em muitos países, 14€ em Espanha, por
exemplo.
A verdade é que para além do caso
particular da Raspadinha tem aumentado de forma geral o investimento dos
portugueses nos “jogos sociais” da Santa Casa e nas apostas online. De facto, o
Totobola e depois o Euromilhões, o Totoloto, posteriormente a Raspadinha,
fortemente apelativa pela possibilidade de retorno imediato e grande
acessibilidade, e mais recentemente as apostas online estabeleceram-se
firmemente na vida de muitos de nós e criaram mesmo uma imagem criadora de
futuro que nos move. Provavelmente e para muitas pessoas, será a única imagem
criadora de futuro.
Importa reconhecer que as imagens
criadoras de futuro são imprescindíveis, tanto mais quando atravessamos tempos
duros em que a esperança também tem sido revista em baixa e dificilmente
vislumbramos a recuperação.
Creio que esta perspectiva é
parte importante desta equação e apesar de sabermos que a decisão de apostar é
sempre de natureza individual, o contexto em que muita gente vive, os estilos
de vida e quadro de valores são variáveis que também devem ser consideradas,
como, aliás, o estudo sublinha.
Por outro lado e em termos
culturais, também encontramos algumas pistas para entendimento. Julgo poder
afirmar-se que em muitos lares portugueses e em muitas conversas e talvez mais
do que nunca, uma das frases mais ouvidas é “nunca mais me sai o Euromilhões,
(ou a raspadinha) para deixar de trabalhar”. Muito provavelmente, cada um de
nós já ouviu, pensou ou disse esta expressão alguma vez ou vezes e que não será
usada apenas pelos cidadãos com maiores dificuldades.
Acho curiosa a sua utilização.
Entendo, naturalmente, a ideia subjacente à primeira parte. Um prémio de valor
substantivo representaria, seguramente, a hipótese de acesso a um patamar
superior de bem-estar económico, desejado, naturalmente, por toda a gente. O
que de facto me parece mais interessante é o complemento “para deixar de
trabalhar”. É certo que nem todas as expressões devem ser entendidas no seu
valor “facial”, mas é também verdade que a recorrente afirmação deste desejo
acaba por ilustrar a relação que muitos de nós estabelecemos com o lado
profissional da nossa vida, isto é, “quero livrar-me dele o mais depressa
possível”. Não será grave, mas é um indicador que possibilita várias leituras.
Neste contexto e cultura sabem
qual é a minha inquietação para além dos riscos associados a comportamentos
aditivos? É se os miúdos, considerando a agitação que vai pelo seu mundo
“laboral” e os discursos dos adultos, desatam a pedir, se puderem, um aumento
de mesada que lhes permita jogar nas “raspadinhas” ou apostar no Euromilhões
para … deixar de ir à escola.
Já estivemos mais longe. Talvez,
também por questões desta natureza, a abordagem deste tipo de questões nos
contextos educativos num quadro desenvolvimento e cidadania faça sentido sem
que daqui resulte, evidentemente, mais uma disciplina ou mais um projecto.
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