No DN encontrei um texto de
opinião de Elisabete Ferreira “Da palmada educativa à criminalização dos
castigos corporais” em que a autora reflecte sobre o enquadramento jurídico dos
“castigos corporais” no Código Penal Português que desde 2007 estabelece no
Artº 152 a proibição dos “castigos corporais”.
A autora embora, expressando reservas
evidentes face aos castigos corporais escreve: “hesitamos quanto ao
enquadramento jurídico a dar à aplicação de uma singular palmada educativa. Ou,
pelo menos, duvidamos da razoabilidade da prossecução de um processo penal
contra este progenitor e da eficácia de uma eventual condenação em pena de
prisão, ainda que suspensa na sua execução, como modo de prevenir a reincidência.”
Não tenho competência nem é o meu
objectivo discutir a questão jurídica embora tenha apreciado a inclusão do artº52
no Código Penal, mas sim esta velha ideia da palmada educativa. Algumas notas.
Deixem-me recordar que em 2015 o
Conselho da Europa pressionava o Governo Francês para adoptar legislação que expressamente proibisse bater nas crianças. A então Secretária de Estado da Família não pretendia alterar a lei pois uma parte da população seria favorável aos
castigos corporais e não queria "dividir o país em dois campos: os que são
pela palmada e os que são contra.”
A mesma responsável afirmava
ainda que "persiste uma tolerância baseada no costume, a do direito de
correcção, que é aceite desde que seja ligeira e tenha um fim educativo".
Ao que na altura li ninguém interrogou a Secretária de Estado sobre como
avaliar a intensidade da palmada para que não passe de ligeira.
Já muitas vezes aqui tenho afirmado,
a questão do recurso aos castigos físicos ou às agressões verbais e humilhação
como forma de educar é recorrente e está sempre presente na agenda de qualquer
encontro ou conversa entre e com pais sendo, aliás, frequentes os discursos de
legitimação destas “estratégias educativas”.
Se estivermos atentos reparamos
que quando na imprensa generalista se abordam questões relativas a
comportamentos menos positivos de crianças ou adolescentes são inúmeros os
comentários e discursos sobre a alegada falência das famílias na definição de
regras e limites nos comportamentos de crianças e adolescentes. Muitos destes
discursos e comentários são normalmente acompanhados de referências ao facto de
não se recorrer a umas “palmadas”, à “pedagogia do chinelo”, “uma boa palmada
dada a horas” ou outras variações no mesmo tom, com uns “tabefes” a coisa
resolvia-se.
As alusões às dificuldades das
famílias ou da escola na regulação dos comportamentos de crianças e
adolescentes podem ser justificáveis, mas a ideia de lidar com estas
dificuldades através do bater e dos castigos severos continua a ser preocupante
quando, também são conhecidos muitos trabalhos que sublinha a ineficácia deste
tipo de abordagens. Ninguém pode garantir que foram ou que são as “tareias” que
constroem pessoas de bem.
É de recordar que em 2018 a
Academia Americana de Pediatria produziu novas orientações sobre a
parentalidade afirmando veementemente que bater nas crianças, insultá-las,
humilhá-las ou envergonhá-las são comportamentos a banir. Os efeitos positivos
são nulos e os negativos estão bem demonstrados. Esta posição é, aliás, recuperada
na peça do Público
Uma outra referência a um trabalho desenvolvido pela Universidade
de Pittsburgh nos EUA divulgado na Child Development em 2017 que considerando
diferentes variáveis seguiu 1482 alunos durante nove anos e evidenciou uma
relação sólida entre o que foi considerado “parentalidade severa” (recorrer com
regularidade ao gritar, bater ou outro tipo de comportamento coercivo, além de
ameaças físicas e verbais como forma de punição) e baixo rendimento escolar e
problemas de comportamento nas crianças envolvidas nesse “modelo” de educação
familiar.
Dados divulgados em 2019
relativos ao Projecto Geração XXI, do Instituto de Saúde Pública da Universidade
do Porto, que acompanha desde o nascimento um número muito significativo de
crianças na área metropolitana do Porto.
Cerca de 75% das crianças com 7
anos serão vítimas de agressão psicológica ou castigos corporais em contexto de
educação familiar. Cerca de 10% sofreram agressões graves (como bater com cinto
ou objecto contundente ou queimar) com frequência.
As avaliações mostram que que
impacto na saúde é significativo, 58% apresentam valores de inflamação
elevados, quase o dobro das que não são vítimas de maus-tratos.
Sugerem ainda que mães com
história de violência doméstica desenvolvem mais comportamentos de agressão aos
filhos do que as mães que não reportam um passado de maus tratos. Considerando
a variável escolarização e nível económico, sem surpresa, níveis mais elevados
parecem mais associados a agressão psicológica e castigos corporais e níveis
menos qualificados associados a formas de violência mais graves,
Um trabalho mais recente de Liz
Gershoff divulgado em 2021 é também elucidativo sobre a mesma questão.
Sabemos e não esquecemos que os
“castigos corporais” podem ir da mais ligeira palmada à mais pesada tareia e
também sabemos que bater é um tipo de comportamento inscrito na prática de
muitas famílias na sua relação educativa com os filhos.
Na verdade, os castigos corporais
ainda são uma "ferramenta" educativa em muitas famílias e, é
conhecido, também em instituições que acolhem crianças sendo que mesmo que no
âmbito da justiça a questão é complexa como algumas decisões judiciais
ilustram.
A ver se nos entendemos, bater ou
castigar severamente as crianças não é uma actividade educativa, gritar ou
agredir verbalmente de forma regular não é uma actividade educativa. O
comportamento gera comportamento e adultos que não se auto-regulam dificilmente
ajudam crianças a ser auto-reguladas. Aliás, também se sabe que crianças que
foram batidas tornam-se frequentemente pais que batem.
No entanto e dito tudo isto,
também entendo que pontuais comportamentos inadequados ou incompetentes não
significam necessariamente que estejamos perante pessoas, pais, más ou
incompetentes.
Todos nós, alguma vez, agimos de
uma forma menos ajustada ou adequada com os nossos filhos e isso não nos
transforma em pessoas más, significa que somos apenas pessoas, que não somos perfeitos
como perfeitos não são os nossos filhos e que nada destes matérias é feito
seguindo escrupulosamente um qualquer "manual de instruções" dos
muitos que agora aparecem.
Assim sendo, creio que devemos
ser cautelosos, quer na defesa da "estalada educadora" ou “palmada
educativa”, quer na diabolização definitiva de pais que numa situação
eventualmente esporádica e de tensão assumem um comportamento de que podem ser
os primeiros a arrepender-se.
Esta nota, não branqueadora ou
desculpabilizante de nada, pode não ser particularmente simpática, mas estou
cansado, tanto de discursos de legitimação do efeito "educativo" da
violência física ou verbal dirigida a crianças, como de discursos demagógicos
e, por vezes hipócritas, que clamam pelo "crucificação" cega de uma
pessoa, o outro que bate, mas são produzidos por gente desatenta ou mesmo
autora ou apoiante doutros comportamentos dirigidos a miúdos tão indignos
quanto a "estalada" ainda que menos visíveis.
Finalizando, embora saiba que a
legislação mesmo quando é imperativa é entendida como indicativa e, portanto,
desrespeitada como temos tantos exemplos em várias matérias, é bom não esquecer
que estamos a falar de direitos, não de opiniões.