quinta-feira, 28 de outubro de 2021

AS CRIANÇAS-AGENDA

 

No DN encontra-se um texto de Rute Agulhas, “Já viram a agenda das nossas crianças?” chamando a atenção para o volume de horas de actividade em que muitas crianças se envolvem

Já muitas vezes aqui tenho abordado esta questão referindo-me às crianças-agenda, as crianças, demasiadas crianças que têm um dia muito comprido e carregado de actividades. Também em intervenções com grupo de pais e na comunicação social tenho reflectido sobre esta matéria que julgo necessitar de ponderação como sugere Rute Agulhas.

Com o retorno a alguma normalidade da vida quotidiana e considerando as características dos estilos de vida de muitas famílias volta também uma questão que de há uns anos se faz sentir,  a guarda das crianças nos períodos laborais.

Reconhecendo que é um problema sério, também entendo que não pode, não deve, ser resolvido prolongando até ao “infinito” a estadia dos alunos na escola, com base no equívoco de confundir “Escola a Tempo Inteiro” com “Educação a Tempo Inteiro”. A “overdose” é sempre algo de pouco saudável.

Creio que nem toda a gente tem consciência de que, de acordo com a lei e considerando as necessidades das famíilias, uma criança, por exemplo do 1º ciclo, pode chegar a 50 horas por semana na escola, considerando horário curricular, AEC, ATL e Componente de Apoio à Família. Aliás, no que respeita aos tempos escolares já sabíamos, como referi acima, que os alunos portugueses, sobretudo no início da escolaridade, têm umas das mais elevadas cargas horárias conforme relatórios da Rede Eurydice ou da OCDE.

Esta overdose de estadia institucional na escola, com o tempo muitas vezes preenchido com actividades de duvidosa qualidade apesar de também existirem muito boas práticas, não pode deixar de ter algum impacto na relação que os miúdos estabelecem com a escola e com as actividades da escola.

Por outro lado, muitos pais recorrem ao envolvimento dos filhos em múltiplas actividades transformando-as numa espécie de crianças-agenda. Todas estas actividades, a oferta é variadíssima, são percebidas como imprescindíveis à excelência, os miúdos devem ser educados para ser excelentes. Promovem níveis fantásticos de desenvolvimento intelectual e da linguagem, desenvolvimento motor, maturidade emocional, criatividade, interacção social, autonomia e certamente de mais alguns aspectos que agora não recordo. Assim, as crianças e adolescentes estão sempre envolvidos em qualquer actividade, a quase todas as horas pois delas se espera não menos que a excelência.

Nada disto belisca a importância que, de facto, podem ter algumas actividades, mas apenas sublinhar alguns riscos no excesso e que poderiam, aqui sim com apoios das autarquias e potenciando equipamentos e recursos comunitários proporcionar experiências menos pesadas às crianças.

Os pais, alguns pais, sobretudo como melhor estatuto económico, seduzidos pela sofisticação desta oferta, pressionados por estilos de vida que não conseguem ou podem ajustar e com a culpa que carregam pela falta de tempo para os filhos e sem vislumbrar alternativas aceitam que os trabalhos dos miúdos se desenvolvam para além do que seria desejável, eu diria saudável.

Vamos ter que repensar os trabalhos dos miúdos, de muitos miúdos. O consumo excessivo, mesmo de actividades fantásticas ou de actividades escolares, tem riscos.

Recordo que em 2018 a Academia Americana de Pediatria recomendou aos pediatras que na sua prática clínica prescrevam “tempo para brincar”, um bem de primeira necessidade para o bem-estar dos mais novos com impacto em diferentes dimensões.

Insistem e insisto que não se trata de uma ideia “frívola” e os actuais estilos de vida de muitas famílias, por diferentes razões, tornam ainda mais importante que se reafirme a importância de brincar.

Mais uma vez, brincar é a actividade mais séria que os miúdos realizam, em que põem tudo o que são, sendo ainda a base de tudo o que virão a ser e a saber.

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