sábado, 3 de outubro de 2020

DEFINITIVAMENTE, MALTRATAR NÃO É GOSTAR

 

A nossa vida está agora submersa numa preocupação gigantesca e de diferentes dimensões de que dificilmente nos alheamos, mesmo que brevemente. No entanto, parece-me também importante que não esqueçamos outras questões.

Segundo o trabalho “Adolescent Dating Violence: Outcomes, Challenges and Digital Tools" de Ricardo Barroso do Grupo de Investigação em Sexualidade Humana do Centro de Psicologia da Universidade do Porto e de outros colegas, numa população inquirida de 7139 adolescentes e jovens dos 11 aos 21 anos, rapazes e raparigas, 32.9% já tinha agredido o namorado ou namorada pelo menos uma vez no último ano.

A violência física é o comportamento de agressão física é o mais frequente, registando-se também a agressão psicológica e sexual, neste caso tendo os rapazes um comportamento significativamente mais elevado que as raparigas.

Os dados são impressionantes mas, lamentavelmente, não surpreendem.

Acrescento um outro grupo de dados relativos ao estudo sobre a Violência no Namoro 2019, que a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) tem vindo a realizar nos últimos anos tendo como participantes jovens.

O número de jovens, que namoram ou já namoraram que refere ter sofrido pelo menos uma forma de violência por parte do parceiro(a) é de 58% sendo que em 2018 era de 56%. Um dado ainda mais inquietante é manutenção de taxa dramaticamente elevada de jovens que que entendem estas práticas como “normais”, 67% no inquérito deste ano e 68,5% no estudo anterior.

Os comportamentos considerados envolvem difamação, o recurso às redes sociais para chantagear o outro, o hábito de intromissão no telemóvel ou nos bolsos, as agressões físicas e a coacção para práticas sexuais não desejadas, etc.

Um outro trabalho também promovido pela Associação Plano i, “Violência no Namoro em Contexto Universitário: Crenças e Práticas”, envolvendo apenas jovens e jovens adultos com frequência ou formação universitária” confirma os indicadores do trabalho desenvolvido pela UMAR, 54,7% dos jovens em Portugal já sofreram pelo menos um acto de violência no namoro. Sublinho que estamos a falar de estudantes universitários o que torna tudo ainda mais preocupante.

O que ainda me parece mais inquietante é a manutenção sem grandes alterações destes indicadores ao longo dos anos o que talvez ajuda a perceber como a violência doméstica parece indomesticável.

Os dados convergem no indiciar do que está por fazer em matéria de valores e comportamentos sociais. Acresce que como referi e sabemos, boa parte das situações de abuso não são objecto de queixa.

Este conjunto de dados é muito preocupante, gostar não é compatível com maltratar. Os dados sobre violência doméstica em adultos que permanece indomesticável deixam perceber a existência de um trajecto pessoal anterior que suporta os dados destes e de outros trabalhos sobre violência no namoro e que se mantêm inquietantes. Aliás, nos últimos anos a maioria das queixas de violência doméstica registadas pela APAV foram de mulheres jovens embora seja um drama presente em todas as idades.

Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem mais lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores sociais presentes em cada época. De facto, e reportando-nos apenas aos dados mais gerais, é criticamente relevante a percentagem de jovens, incluindo estudantes universitários, que afirmam um entendimento de normalidade face a diferentes comportamentos que evidentemente significam relações de abuso e maus-tratos.

Como todos os comportamentos fortemente ligados à camada mais funda do nosso sistema de valores, crenças e convicções, os nossos padrões sobre o que devem ser as relações interpessoais, mesmo as de natureza mais íntima, são de mudança demorada. Esta circunstância, torna ainda mais necessária a existência de dispositivos ao nível da formação e educação de crianças e jovens; de uma abordagem séria persistente nos meios de comunicação social; de um enquadramento jurídico dos comportamentos e limites numa perspectiva preventiva e punitiva e, finalmente, de dispositivos eficazes de protecção e apoio a eventuais vítimas.

Só uma aposta muito forte na educação, escolar e familiar, pode promover mudanças sustentadas nesta matéria, a violência nas relações amorosas. É uma aposta que urge e tão importante como os conhecimentos curriculares. Percebe-se também por estas questões a importância de abordagem do universo da “Cidadania e Desenvolvimento” nas escolas e para todos os alunos.

Entretanto e enquanto não muda, "só faço isto, porque gosto de ti, acreditas não acreditas?"

Apesar da natureza e gravidade fora do comum dos dias que vivemos e para os quais não estávamos preparados, talvez seja de não esquecer questões como estas que devastam o quotidiano de muita gente.

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