quarta-feira, 23 de julho de 2025

PERCEBE-SE PORQUÊ

 É inevitável. Umas notas sobre a decisão do Ministério do Ensino, perdão, da Educação, da Ciência (alguma) e da “I”rradicação, perdão, da Inovação, relativa aos conteúdos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento erradicando a abordagem à saúde sexual e sexualidade.

Andou bem o MECI, vejamos porquê.

Como é reconhecido os estilos devida actuais permitem, felizmente, uma enorme disponibilidade de tempo dos pais para o contacto com os filhos e também sabemos que a generalidade das famílias assume essa disponibilidade evidenciando uma forte e contínua relação e diálogo familiar. Acresce que, apesar de algumas excepções sem significado, são reconhecidamente sólidas as competências educativas da generalidade das famílias.

Na mesma linha sabemos que à família compete a educação e à escola o ensino ainda que, erradamente, se tenha instalado a ideia “woke” que a escola também educa. Não, a escola deve ensinar a ler e escrever o suficiente para entender o o “digitalês” a actual língua de comunicação de boa parte dos mais novos.

A escola deve também ensinar qualquer coisa no âmbito dos números que seja suficiente para que a generalidade dos alunos possa aceder, lá está, aos dispositivos digitais e IA que resolverá os seus problemas.

Assim, a escola não tem que abordar conteúdos como História, Filosofia, Arte ou domínios das áreas das Ciências Sociais porque, obviamente, são áreas que, sendo imprescindíveis à formação das pessoas, pertencem à área da Educação que, como escrevi acima, é da responsabilidade das famílias que, obviamente, estão na sua generalidade em condições e com disponibilidade para o fazer sem o risco dos seus filhos ficarem à mercê de ameaças ideológicas e aceder a competências, autonomia, conhecimento e  análise que lhes podem fazer mal.

Neste sentido também se percebe algum movimento de “deskilling”na formação de professores que se tornará muito mais económica e suficiente par poderem tomar contas das crianças na escola e ensinar qualquer “coisinha” enquanto as crianças esperam pela educação dada em casa.

Uma outra justificação que me parece clara para a decisão do “apagão” dos conteúdos das áreas da Educação Sexual e Sexualidade prende-se com o conhecimento de quem se move nestas áreas e comprovado por múltiplos estudos, que as fontes de conhecimento em matéria de Sexualidade por parte dos mais novos são os colegas e os meios digitais. Lá está a necessidade da proficiência do “digitalês”. Assim sendo não se justificará a intervenção da escola pois os crianças e adolescentes têm como aprender, falam entre si e trocam dúvidas e saberes. É bonita a cooperação no desenvolvimento.

Ainda em relação às fontes, em conversas com pais ouvi com alguma frequência algo como “o meu filho(a) ainda não nos perguntou nada” pelo que, presumem, os filhos não têm dúvidas em matéria de sexualidade.

Uma referência ainda ao que é conhecido sobre movimentos nas redes sociais relativos a bullying de género com maior vitimização das raparigas, da  proliferação vídeos e incentivos a comportamentos disruptivos, o fenómeno dos “incels” que, frequentemente têm consequências devastadoras, mas mostra a eficiência da acção educativa das famílias e, obviamente, o erro de permitir a intervenção da escola nestas áreas.

No mesmo sentido, também se sabe que taxa de violência sexual e abusos sobre menores perpetrada, por vezes por menores e maioritariamente sobre as raparigas é residual em Portugal.

Percebe-se, pois, a decisão tomada pelo MECI, que não terá resistido à pressão.

 

Bom, agora mais a sério porque dada a natureza das questões assim deve ser é absolutamente inaceitável esta decisão como muito bem inúmeras pessoas com saber e experiência em matéria de desenvolvimento, comportamento e bem-estar de crianças e adolescentes têm afirmado, por exemplo, a Professora Margarida Gaspar de Matos.

Neste cantinho retomo o que tenho afirmado aqui e em muitos espaços profissionais envolvendo professores, técnicos e pais sublinhando a questão que sustenta as mudanças decididas pelo MECI, a libertação “das amarras de projectos ideológicos ou de facção”.

A proposta em discussão define oito domínios, direitos humanos, democracia e instituições políticas, desenvolvimento sustentável, literacia financeira e empreendedorismo, saúde, media, risco e segurança rodoviária, pluralismo e diversidade cultural que serão operacionalizados através da definição de aprendizagens essenciais substituem os dezassete temas actualmente definidos para a disciplina.

Sabemos como os estilos de vida actuais têm colocado graves dificuldades às famílias para assegurarem a guarda das crianças em horários não escolares. A resposta tem sido prolongar a estadia dos miúdos nas instituições escolares alimentando o que considero um dos vários equívocos no universo da educação, a afirmação de uma visão de “Escola a Tempo Inteiro” em vez de “Educação a Tempo Inteiro”. O modelo é bem recebido por muitos pais e tolerado por muitos outros por falta de alternativas.

Importa relembrar que para os alunos mais novos e de acordo com o que está definido legalmente, considerando o horário curricular, as Actividades de Enriquecimento Curricular e a Componente de Apoio à Família, a estadia dos alunos na escola pode atingir bem mais de 40 horas semanais se os pais necessitarem. Muitos alunos estão mesmo nas escolas 50h ou mais por semana.

Importa também acentuar que fora dos contextos escolares, o padrão relacional entre adultos, de todas as condições, exprime também com demasiada frequência descontrolo e conflitualidade. O comportamento agressivo, verbal, físico, psicológico, etc., tornou-se quase, um novo normal em múltiplos contextos. Temos elevadas taxas de violência no namoro, são preocupantes os indicadores relativos a abusos e violência sexual sobre menores e entre menores como são inquietantes o volume de casos de violência a través das redes sociais e a problemática em crescimento dos designados “incels”.

Sabemos também que a ideia de que a “família educa e a escola instrói” já não colhe e espera-se que a escola não forme “apenas” técnicos, mas cidadãos, pessoas, com qualificações ao nível dos conhecimentos em múltiplas áreas.

Um sistema público de educação com qualidade, desde há muito de frequência obrigatória e progressivamente mais extenso, é uma ferramenta fundamental para a promoção de igualdade de oportunidades, de equidade e de inclusão. Uma educação global de qualidade é de uma importância crítica para minimizar o impacto de condições sociais, económicas e familiares mais vulneráveis que, evidentemente, não constituem as famílias que ficaram muito inquietas com a abordagem realizada em algumas escolas no âmbito da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, embora, naturalmente, muitos aspectos possam ser discutidos.

Neste contexto parece-me claro a que a abordagem de matérias relativas à Saúde Sexual e Sexualidade associadas aos outros domínios são fundamentais ao longo do processo de formação de crianças, jovens e adultos.

No entanto e como já tenho referido também entendo que a abordagem a estas matérias não tem necessariamente de ser “disciplinarizada”, mas esta é ainda uma outra questão.

Nas sociedades contemporâneas um sistema público de educação com qualidade, desde há muito de frequência obrigatória e progressivamente mais extenso, é uma ferramenta fundamental para a promoção de igualdade de oportunidades, de equidade e de inclusão. É através de uma educação global de qualidade que se minimiza o impacto de condições sociais, económicas e familiares mais vulneráveis.

Ainda uma nota sobre a razão da mudança as “amarras ideológicas. Acho sempre curiosas as discussões em torno das “questões ideológicas” designadamente no universo da educação. Tenho para mim que não existem políticas públicas de educação, ou de outra área, que sejam neutras, assépticas, imunes, etc. em matéria de valores sociais ou ideologia, seja tudo isto o que for.

Como há poucos dias escrevi, ao defender, por exemplo, princípios de educação inclusiva, já me tem acontecido ser “acusado” de produzir um discurso ideológico. Muito provavelmente, os meus interlocutores esperariam que me procurasse “defender” através da evidência científica. No entanto, a minha resposta começa habitualmente com algo como, “ainda bem que fui claro, o meu discurso corresponde a uma visão de sociedade, de educação e de escola. Agora vamos à evidência científica que a sustenta". Provavelmente, nas mais das vezes, ficamos na mesma, cada qual com a sua visão ideológica, pois claro.

Acontece ainda que, com frequência se confunde ideologia com partidarismo. Como já afirmei, tenho uma visão ideológica do mundo que me rodeia, mas não consigo encaixar-me numa visão partidária o que, naturalmente, será uma limitação da minha parte.

A verdade é que já cansa a forma habilidosa como muitas questões são abordadas em função da “ideologia” o que se tem escrito sobre esta mudança é esclarecedor.

Boa parte das pessoas que contestam o que afirmam constituir uma visão ideológica entende que o que defendem não tem carga ideológica, é asséptico, sendo que as ideias contrárias, essas sim, são sustentadas pela ideologia e devem ser combatidas. Os exemplos são múltiplos.

Tantas e tantas vezes tropeço com este entendimento que envolve uma outra dimensão menos explicitada, a ética. Tantos interlocutores me dizem com a maior tranquilidade que quando os estudos ou a experiência não vão ao encontro das suas ideias, certas e pragmáticas, os estudos são mal feios e contaminados pela ideologia ou que a experiência não serve de argumento. Quando discordo, o meu discurso é ideológico e o do interlocutor é correcto, asséptico do ponto de vista ideológico, obviamente, suportado com a evidência científica que ao meu é negado porque os estudos … são ideológicos. Sim, como disse, o que penso tem uma carga ideológica, é assim que entendo o mundo.

Na verdade, não acredito em visões de sociedade sem arquitectura ideológica, ética ou moral. Isso não existe, só por desonestidade intelectual se pode afirmar tal. O actual clima e discursos políticos todos os dias nos mostram exemplos, alguns bem preocupantes em termos de democracia e direitos humanos.

Como disse e reafirmo, há décadas que não tenho qualquer espécie de filiação partidária, não me orgulho nem me queixo, é assim que penso. No entanto, tenho posições que são de natureza ideológica sobre o que me rodeia e o que respeita à vida da gente.

Não as entendo como únicas, imutáveis ou exclusivas, aliás, gosto mais de discutir e aprender com alguém que também assim se posiciona, sem manha, sem a falsidade do “não tenho ideologia” como se isso fosse uma fonte de autoridade. Finalmente e considerando o que já tenho ouvido do actual Ministro, creio que não resistiu à pressão de uma direita não democrática, ignorante e retrógrada. Lamento.

Desculpem a extensão.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ri-me com a parte do "deskilling" — hilariante e tão certeiro ao mesmo tempo. Obrigado por mais um texto com mira afinada.