No Público encontra-se uma peça sobre um universo que continua a ser fonte de forte inquietação, a violência nas relações de namoro.
Nos últimos cinco anos, a PSP
recebeu mais de 9000 denúncias por violência no namoro, em 2024 foram mais de
1400 queixas, e sabemos que muitas situações não são objecto de denúncia. Por
outro lado, é ainda de valorizar os indicadores relativos a um fenómeno de “normalização”
de comportamentos de violência por parte de adolescentes e jovens, associado ao
que nas redes sociais se divulga e fomenta.
De acordo com trabalho produzido
pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
em colaboração com a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género no
âmbito do Projecto “ART’THEMIS+UMAR Jovens e divulgado no início do ano, 66%
(2978) dos jovens que já namoraram referiram ter sofrido, pelo menos, uma das
15 formas de violência definidas e questionadas.
Num outro trabalho realizado pela
UMAR com financiamento da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género
divulgado em 2024 e citado na peça do Público envolvendo 6152 jovens entre o
7.º e o 12.º considerando duas dimensões, legitimação e prevalência dos
indicadores de violência, também se encontram dados inquietantes.
É significativo que 68,1% dos
inquiridos legitimam pelo menos um tipo de violência, sendo que controlo
(54,6%) e violência psicológica (33,5%) são os mais referidos sendo ainda que
27,9% dos jovens consideram normal ser insultado numa discussão.
No que respeita a tipos de
violência a que foram sujeitos, 63% dos jovens referem que já estiveram numa
relação em que passaram pelo menos por um tipo de violência.
Assim, 43% refere a proibição de
estar ou falar com alguma pessoa, 39,9% viveram pelo menos uma forma de
violência psicológica, 20,4% de perseguição, e 18,4% de alguma forma de
violência sexual, nomeadamente serem obrigados a beijar, e 11% sofreram violência
física. É ainda de considerar aforma como também se está a consolidar e
aumentar formas de violência através das redes sociais.
São indicadores suficientes para
que nos sintamos apreensivos, são jovens que nos dizem isto.
O que torna a situação ainda mais
complexa é a manutenção sem grandes alterações destes indicadores ao longo dos
anos, incluindo trabalhos com estudantes do ensino superior, o que talvez ajude
a perceber como a violência doméstica parece indomesticável.
Os dados convergem no indiciar do
que está por fazer em matéria de valores e comportamentos sociais. Acresce que,
como referi, boa parte das situações de abuso não são objecto de queixa.
Este conjunto de dados é
preocupante, gostar não é compatível com maltratar, mas creio que não é
surpreendente, lamentavelmente. Os dados sobre violência doméstica em adultos
que permanece indomesticável deixam perceber a existência de um trajecto pessoal
anterior que suporta os dados muitos trabalhos sobre violência no namoro e que
se mantêm inquietantes. Aliás, nos últimos anos a maioria das queixas de
violência doméstica registadas pela APAV foram de mulheres jovens embora seja
um drama presente em todas as idades.
Os sistemas de valores pessoais
alteram-se a um ritmo bem mais lento do que desejamos e estão, também e
obviamente, ligados aos valores sociais presentes em cada época. De facto, e
reportando-nos apenas aos dados mais gerais, é criticamente relevante a percentagem
de jovens, incluindo estudantes universitários, que afirmam um entendimento de
normalidade face a diferentes comportamentos que evidentemente significam
relações de abuso e maus-tratos.
Como todos os comportamentos
fortemente ligados à camada mais funda do nosso sistema de valores, crenças e
convicções, os nossos padrões sobre o que devem ser as relações interpessoais,
mesmo as de natureza mais íntima, são de mudança demorada. Esta circunstância,
torna ainda mais necessária a existência de dispositivos ao nível da formação e
educação de crianças e jovens; de uma abordagem séria persistente nos meios de
comunicação social; de um enquadramento jurídico dos comportamentos e limites
numa perspectiva preventiva e punitiva e, finalmente, de dispositivos eficazes
de protecção e apoio a eventuais vítimas.
Só uma aposta muito forte na
educação, escolar e familiar, pode promover mudanças sustentadas nesta matéria.
É uma aposta que urge e tão importante e sublinha a necessidade óbvia de
matérias desta natureza serem objecto de abordagem na educação escolar sendo
que não terão de o ser de uma forma “disciplinarizada”. Não me parece que haja
outro caminho.
Entretanto e enquanto não muda,
"só faço isto, porque gosto de ti, acreditas não acreditas?".
Não, não se pode acreditar. “maltratar
não é gostar”.
Retomo como iniciei. Apesar dos
dias inquietantes que vivemos e para os quais não estávamos preparados, talvez
seja de não esquecer questões como estas que devastam o quotidiano de muita
gente.
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