sábado, 17 de maio de 2025

DIA DE REFLEXÃO

 Manda a liturgia e o quadro legal dos processos eleitorais que o dia anterior à votação seja dedicado à reflexão. Como em outras ocasiões tenho afirmado, não estou muito de acordo com este cenário e enquanto existir aqui me manifesto. Aliás, já se vão conhecendo discursos questionando a sua necessidade considerando também que em muitos países não se reflecte na véspera. Aliás, se a reflexão se realiza na véspera das eleições não parece fazer muito sentido a realização de sondagens.

Do meu ponto de vista e ainda que pareça estranho, a haver um dia de reflexão deveria ser o dia seguinte.

A decisão em matéria de voto não exige um dia de reflexão ainda que, naturalmente, deva ser objecto de reflexão. Aliás, gostaria de saber se existe algum estudo sobre o peso que o dia de reflexão terá na decisão relativa ao voto.

Na verdade, não parece necessário o dia de reflexão antes do acto eleitoral porque não entendo que essa reflexão influencie significativamente os resultados eleitorais pois, se por um lado a abstenção tem crescido, deixando cada vez mais o voto no eleitorado fidelizado, por outro lado, o eleitorado flutuante não decide na véspera, decide, creio, face a contextos e circunstâncias.

Acresce que esta campanha eleitoral, também como é regra, não foi particularmente elucidativa, o que ocupa tempo de campanha tem menos a ver com os problemas reais das pessoas alimentando o partido dos “indecisos”. Exceptuando alguns dos debates, a gritaria, o soundbite, as alterações de discursos como se nada tivesse sido dito, marcaram os últimos dias. O surgimento de uma extrema-direita que insulta, se contradiz e ameaça a democracia servindo-se do que a democracia permite, veio tornar ainda mais necessária a reflexão que não é realizada na véspera.

Em segundo lugar, porque na verdade, em termos de futuro parece ser mais significativo reflectir nos resultados eleitorais que se verificarem. Estas eleições são um claro exemplo disso mesmo, por exemplo a partir da votação que receberá a extrema-direita ou o que indiciarão sobre os acordos que assegurarão a governabilidade.

No entanto e desde já, aproveito o dia de reflexão para deixar um apelo muito sentido.

Apelo vivamente aos senhores integrantes da classe política que a propósito das eleições de amanhã se inibam de elaborar comentários como “queria felicitar o povo português pela forma tranquila como está a decorrer, ou decorreu, o acto eleitoral”, “quero registar a normalidade que o povo português evidencia no cumprimento do seu dever cívico”, “os cidadãos mais uma vez mostram a sua maturidade democrática” ou ainda “o acto eleitoral está a decorrer, ou decorreu, com toda a normalidade em todo o território”. Considero afirmações desta natureza um insulto à esmagadora maioria dos cidadãos eleitores em Portugal. Que diabo pensam de nós, para se surpreenderem com a “normalidade” do nosso comportamento?

Então não é de esperar que participar num acto eleitoral, das diferentes formas possíveis, seja algo de normal e tranquilo?

Lembro-me daqueles pais e professores que ao falarem de miúdos acrescentam de imediato “e até se portam bem”, como se o comportamento adequado seja uma surpresa e a excepção. Como se dizia no PREC, “repudio veementemente tais afirmações”.

Já agora, nós, os cidadãos que votamos, ou não, com normalidade democrática, gostávamos de poder comentar as campanhas dos políticos dizendo que tudo decorreu com a elevação, sentido ético e de esclarecimento normais. Mas não, existem sempre os insultos, a demagogia, a trafulhice nas ideias e nas promessas, a falta de esclarecimento e debate sério, etc. A campanha eleitoral foi particular e inquietantemente elucidativa.

A campanha que ontem terminou constituiu um autêntico manual. Aliás, achei até que um povo que vota com “normalidade democrática” e “maturidade cívica” merecia melhor.

A actividade política das lideranças é que, demasiadas vezes, não decorre com “tranquilidade e maturidade democráticas”, é muito mau o que demasiadas vezes se ouve ou lê.

Não tratem os cidadãos como gente incapaz a quem se saca o voto, mas de quem sempre parece esperar-se o pior.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

A TERRA DOS GÉNIOS

A comunicação social nos seus diversos suportes e ainda o mundo sem fim das redes sociais oferecem-nos diariamente e a qualquer hora acesso a um mundo estimulante e sem fim, o mundo dos génios, isso mesmo, os génios, muitos génios.

De facto, é notável a proliferação e intervenção dos génios. Em todas as áreas que compõem a vida das pessoas existe um grupo de génios com ideias geniais, claro, que sabem sempre como tudo deve acontecer e tudo se deve passar.

Todos os dias, seja qual for o assunto que esteja em discussão, lá aparecem os génios de serviço, nos diferentes meios de comunicação ou nas redes sociais, a explicar, sem margem de dúvida ou hesitação, o que as pessoas devem pensar ou saber sobre a matéria em apreço. Há mesmo génios tão geniais que conseguem ser génios em várias áreas, assumindo então o superior estatuto de tudólogo, os que sabem de tudo, que é verdadeiramente impressionante. E quanto mais complexas são as situações, mais os tudólogos se ouvem, vêem e lêem.

O que é mais curioso, embora naquela terra onde acontecem coisas não faltem aspectos curiosos, por assim dizer, é que pouca gente parece levar a sério os génios, ou seja, para tudo e mais alguma coisa se interpelam os génios, estão sempre presentes, mas depois quase ninguém liga ao que eles dizem o que aliás, parece ser uma prova de inteligência embora fique por perceber a importância atribuída aos génios.

Creio mesmo que eles, os génios, são os únicos que se levam sempre a sério. É vê-los e ouvi-los com um ar absolutamente compenetrado a debitar genialidades a que ninguém liga, mas que lhes concedem espaço e tempo para expressar.

Os génios daquela terra onde acontecem coisas, aqueles que aparecem como génios, são assim uma espécie de adereço, sem qualquer utilidade, mas que sempre compõe o cenário. No entanto, parece que muitos destes génios tornam a sua genialidade muito bem paga. Merecem, são génios, nós não.

Para completar este retrato, é também curioso, para ser simpático, que às pessoas que verdadeiramente sabem do que está a ser abordado também pouca gente parece ligar.

São, também assim, os dias lá naquela terra onde acontecem coisas.


quinta-feira, 15 de maio de 2025

"ELEIÇÕES SEM EDUCAÇÃO"

 Merece leitura o texto de Paulo Prudêncio no Público, “Eleições sem educação”.  Na verdade, é curioso e significativo que, estando a educação e as suas problemáticas quase sempre na agenda de inquietações, as políticas públicas de educação parecem ausentes da actual campanha eleitoral.

As (poucas) referência surgem em torno de questões que, sendo importantes, são mais de natureza conjuntural e não sustentam perspectivas e caminhos para as políticas públicas de educação.

Entendo a necessidade de medidas de natureza conjuntural, por exemplo no caso específico da falta de professores, mas muito mais importantes e necessárias são medidas que tenham impacto em questões estruturais.

É certo que é mais fácil e mais conforme com os ciclos políticas mexer na conjuntura, anunciar mais uns planos, mais uns projectos, mais umas acções de capacitação, mas é mais potente e eficaz analisar e ajustar medidas estruturais.

É claro que mudanças estruturais têm custos pelo que será de considerar, desde logo, a necessidade de investimento sério em educação, 6% do Produto Interno Bruto o que está definido pela UNESCO como meta para 2030.

Lamentavelmente, ainda não será desta que pensamos seriamente no futuro.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

QUAL É A PRESSA?

 Pode parecer estranho, mas a identificação do número de alunos que não têm professor a todas as disciplinas parece uma tarefa impossível.

Como aqui escrevi há pouco, se bem se lembram, em Novembro foram divulgados pelo ME dados errados relativamente aos estudantes que, perto do final do 1.º período, não tinham ainda professor a todas as disciplinas.

Entretanto, foi solicitada, perdão, comprada, uma auditoria externa à consultora KPMG para encontra o mágico número de alunos sem docente a todas as disciplinas.  É ainda relevante que a segunda parte da encomenda à consultora será relativa a “propostas para a melhoria do sistema de apuramento do número de alunos sem aulas para os diferentes momentos do ano lectivo”. Parece até um bocadinho estranho que entre as diferentes estruturas do ME não exista conhecimento e competência para realizar algo que, obviamente, faz parte das suas atribuições. Mas nada de novo, as consultoras também precisam de trabalho e espera-se sempre que o relatório apresentado venha coberto por um manto de isenção.

A divulgação dos resultados reais esteve prevista para Março, depois para Abril, no princípio deste mês aguardava-se para “os próximos dias”.

Ontem, o Ministro da Educação afirmou à TSF que “Não sabemos se vamos ficar a saber” e mais adianta, “Penso que não, a informação que nós temos é que não é possível contabilizar esse número de uma forma rigorosa.”

Dito de outra maneira, 52750 euros depois e no final das aulas deste ano lectivo continua a não existir a informação segura sobre a irrelevante questão de quantos alunos não têm professor a todas as disciplinas.

Talvez valha pena recordar que o MECI tem como estruturas: Secretaria-Geral, Inspecção-Geral da Educação e Ciência, Direcção-Geral da Administração Escolar, Direcção-Geral da Educação, Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, Instituto de Avaliação Educativa, Instituto de Gestão Financeira da Educação, I. P.

Será que nenhuma destas tem capacidade de resposta para esta questão tão fácil de enunciar, “Quantos alunos não têm professor a todas as disciplinas?”

Acresce ainda que, talvez por ignorância minha, é expectável que as direcções de escolas e agrupamentos tenham dados seguros sobre a falta de docentes para os seus alunos. Nem me parece que para agregar estes dados seja necessário um sistema altamente sofisticado.

Também é verdade que, como já escrevi, estamos em plena campanha eleitoral e a divulgação destes dados pode não ser muito “oportuna” e conhecer-se-ão, se tal acontecer, quando causem menos “mossa”.

A verdade é que tudo isto é mau demais, não parece sério e de competência tem nada.

Por outro lado, parece ter tudo de “manhosice” política e de, pior, uma profunda indiferença face ao que talvez seja a questão mais grave do nosso sistema educativo.

Mas, como alguém diria, “qual é a pressa?” 

terça-feira, 13 de maio de 2025

MERECE LEITURA

 É de leitura obrigatória o texto de Tiago Fortuna no Expresso, “Com deficiência, sem morada: onde pertencemos num mundo em estado de guerra?

Trata-se de impressionante testemunho relativo à corrida de obstáculos em que a vida de muitas pessoas com deficiência se transforma.

Começa assim:

Os últimos meses foram de mudança, da casa dos meus pais para a minha. O processo devia ser natural, mas, nas pessoas com deficiência, não é. O percurso que me tinha sido traçado, pela família e pelo imaginário social, era viver com os meus pais até eles morrerem. Depois, ficaria com a minha irmã, com desfecho incerto: ora eu morria, ficando com ela até ao fim, ora, partindo ela primeiro, eu seria institucionalizado.

Percebi que essa não era a minha história.

(…)

segunda-feira, 12 de maio de 2025

A HISTÓRIA DO RAFAEL, O PREGUIÇOSO

 Fugindo aos temas da agenda, deixem que vos traga uma história da escola, o espaço onde todos os futuros se alicerçam.

Um destes dias, a Professora Graça, nova na escola e que tem um grupo do primeiro ano, encontrou o Professor Velho, o que está na biblioteca e fala com os livros, na sala de professores. Para não variar estava de volta do chá e, claro, sempre pronto para a conversa.

Posso sentar-me uns minutos?

Claro Graça, que tal achas a escola?

Simpática, bons colegas e com boas condições. Os miúdos arrumadinhos e com vontade de crescer, sabendo. Ainda é um bocadinho cedo, mas convém estar atenta desde o início e o Rafael intriga-me um pouco. Velho, conheces o gaiato? Aqui não usam muito, mas lá no Alentejo é assim que falamos.

Não conheço o Rafael, o gaiato como lhe chamas, ele não estava no Jardim de Infância aqui da escola. Que te intriga?

A qualquer coisa que eu peça ou sugira ao Rafael para fazer, diz de imediato que não sabe ou não é capaz. Dificilmente e só estando muito por perto a incentivar é que faz qualquer coisa, sempre a contragosto. O que acho curioso é que, por vezes, se põe junto dos outros e dá dicas e ajudas para eles fazerem as coisas. Quando lhe peço eu volta ao não sabe ou não é capaz. Sabes o que me faz lembrar? Aquelas pessoas pouco amigas de trabalhar, há muitas assim, que quando vêem alguém a trabalhar na rua juntam-se logo e ficam por perto a assistir e a dar conselhos, palpites. Se lhes pedirem para fazer alguma coisa desaparecem rapidamente.

Como te disse não conheço o Rafael, mas, desculpa por isto, podes estar a ser um pouquinho injusta. Tenho encontrado miúdos como o Rafael que ao responder que não sabem ou não são capazes de fazer o que se lhes pede, estão a mostrar medo de não fazer bem, falta de confiança nas suas capacidades, por isso fogem de fazer. Se estiveram ao lado de colegas, com tarefas que não são suas, não se sentem ameaçados, por assim dizer e até mostram que na verdade são miúdos capazes.

Não tinha pensado nisso. Mas como faço para perceber melhor o Rafael?

Experimenta pedir-lhe que faça a coisa que melhor era capaz de fazer quando estava no Jardim de Infância. Creio que ele não dirá que não, vai fazer algo de bem feito o que te permite mostrar ao Rafael como ele é mesmo capaz de fazer coisas bem feitas. A gente só aprende a partir do que já sabe, não é do que ainda não sabe. De resto, como dizias há pouco, é preciso estar atento e mostrar confiança no "preguiçoso" do Rafael.

Não precisas de te meter comigo, Velho. Até logo. Olha, o teu chá deve estar frio.

domingo, 11 de maio de 2025

QUANTO TEMPO É QUE TE FALTA?

 Lê-se no Público que nos primeiros seis meses de 2025 se aposentaram mais de 1600 professores, perto do que aconteceu em 2024.

Por outro lado, os sindicatos prevêem que no final do ano as aposentações sejam superiores a 4000 o que poderá superar o ano anterior e aproximar-se dos dados de 2013 com 4600 professores aposentados.

É certo que não é um problema exclusivo do nosso sistema educativo, mas como tantas vezes tem sido afirmado, este cenário estava estudado e previsto há já alguns anos, mas as políticas públicas negligentes ou incompetentes seguidas de há uns anos para cá contribuem para o actual quadro.

Embora haja quem assobie para o ar, não esquecemos os discursos sobre “professores a mais” ou as sugestões para emigrar dirigidas a docentes em início de carreira, como também não esquecemos tempos severos de desvalorização dos professores em termos sociais, modelo de carreira e salarial com impacto fortíssimo na atractividade da profissão por gente jovem que a rejuvenescesse e alimentasse.

Aliás, as políticas seguidas em matéria de educação também contribuíram para o cansaço e mal-estar, desencanto e desejo de abandono da profissão que se foi instalando em muitos docentes.

A propósito, relembro que, há já uns anos largos, uma professora, na altura minha aluna de doutoramento, me perguntava, com um ar meio sério, meio a brincar, se podia desenvolver a sua tese a partir de uma questão que considerava a mais ouvida nas salas de professores, quando no meio da burocracia e das actividades ainda havia tempo para passar na sala de professores, “quanto tempo é que te falta?”. A sua ideia não foi para a frente enquanto doutoramento, mas o que lhe está subjacente é bem claro e bem preocupante. O resultado está à vista.

Na verdade, ser professor é uma das funções mais bonitas do mundo, ver e ajudar os miúdos a ser gente, mas é seguramente uma das mais difíceis e que mais valorização nas diferentes dimensões e apoio deveria merecer. Do seu trabalho competente e valorizado depende o nosso futuro, (quase) tudo passa pela educação e pela escola.

Qual é parte que não se percebe?

sábado, 10 de maio de 2025

BRINCAR É UMA QUESTÃO SÉRIA

 Merece leitura atenta a entrevista ao Público de Jenny Gibsond, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge. A extensa entrevista é centrada na importância do brincar no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças sublinhando o impacto em crianças problemáticas específicas também no domínio do desenvolvimento.

Não é novo este entendimento sustentado pela evidência, mas importa insistir na questão, quer no ambiente escolar, quer no contexto familiar.

No mesmo sentido retomo notas que por aqui tenho escrito.

Durante os últimos anos, provavelmente associada às mudanças nos estilos de vida e quadro de valores, foi-se instalando a ideia de que o brincar é supérfluo, é perda de tempo, o foco deve ser em trabalhar, em rendimento e resultados, em nome da competitividade e da produtividade, condição para a realização e felicidade. Felizmente, nos últimos tempos começam a ouvir-se muitas vozes contrariando este entendimento como agora se regista ma entrevista de Jenny Gibsond. Os que por aqui vão passando reconhecerão a frequência com que aqui refiro esta questão e esta não será certamente a última.

Progressivamente foi-se retirando aos miúdos o tempo e o espaço que muitos de nós na sua idade tínhamos e empregam-nos horas sem fim nas fábricas de pessoas, escolas, chamam-lhes. Aí os miúdos trabalham a sério, a tempo inteiro, dizem, pois só assim serão grandes a sério, dizem também.

Às vezes, alguns miúdos ainda brincam de forma escondida, é que brincar passou a uma actividade quase clandestina que só pais ou professores “românticos”, “facilitistas”, “eduqueses” ou “incompetentes” acham importante.

Muitos outros miúdos vão para umas coisas a que chamam “tempos livres” e que, com frequência, de livres têm pouco, onde, frequentemente, se confunde brincar com entreter e, outras vezes, acontece a continuação do trabalho que se faz na fábrica de pessoas, a escola.

Numa história que já aqui contei ouvi uma mãe que se mostrava muito aborrecida com o Atelier de Tempos Livres em que o filho, gaiato de uns 10 anos, passa boa parte das férias, porque os técnicos responsáveis "dão poucas actividades às crianças e depois elas põem-se a brincar umas com as outras".

Também são encaixados em dezenas de actividades fantásticas, com nomes fantásticos, que promovem competências fantásticas e fazem um bem fantástico a tudo e mais alguma coisa.

É inquietante perceber alguma visão que, de mansinho, se foi instalando também em muitos pais.

O brincar da infância vai-se encurtando, algum dia os miúdos vão nascer crescidos para já não precisarem de brincar. Importa ainda lembrar que também existem crianças, muitas, em que a infância é encurtada, diria roubada, porque são mão-de-obra barata e coisificada.

Era bom escutar os miúdos. Se lhes perguntarem, (das diferentes formas de fazer perguntas e ouvir respostas), vão ficar a saber que brincar é a actividade mais séria que realizam, em que põem tudo o que são, sendo ainda a base de tudo o que virão a ser e a saber.

Em 2018 a Academia Americana de Pediatria recomendou aos pediatras que na sua prática clínica prescrevam “tempo para brincar”, um bem de primeira necessidade para o bem-estar dos mais novos com impacto em diferentes dimensões.

Insistem que não se trata de uma ideia “frívola” e os actuais estilos de vida de muitas famílias, por diferentes razões, tornam ainda mais importante que se reafirme a importância de brincar.

No caso mais particular, mas também essencial do brincar na rua sabemos que as questões da segurança e, sobretudo dos estilos de vida e a mudança verificada nos valores e nos equipamentos, brinquedos e actividades dos miúdos, o brincar na rua começa a ser raro.

Embora consciente das questões como risco, segurança e estilos de vida das famílias, creio que seria possível alguma oportunidade de “devolver” aos miúdos o circular e brincar na rua, talvez com a supervisão de velhos que estão sozinhos, as comunidades e as famílias conseguissem alguns tempos e formas de ter as crianças por algum tempo fora das paredes de uma casa, escola, centro comercial, automóvel ou ecrã.

Como muitas vezes tenho escrito e afirmado, o eixo central da acção educativa, escolar ou familiar, é a autonomia, a capacidade e a competência para “tomar conta de si” como fala Almada Negreiros. A brincadeira, a rua, a abertura, o espaço, o risco (controlado obviamente, os desafios, os limites, as experiências, são ferramentas fortíssimas de desenvolvimento e promoção dessa autonomia.

Curiosamente, se olharmos às nossas condições climatéricas, Portugal é um dos países com valores mais baixos no tempo dedicado a actividades de ar livre, situação com implicações menos positivas na qualidade de vida, nas suas várias dimensões, de miúdos e crescidos.

Talvez, devagarinho e com os riscos controlados, valesse a pena trazer os miúdos para a rua, mesmo que por pouco tempo e não todos os dias.

É, pois, importante que todos os que lidam com crianças, em particular, os que têm “peso” em matéria de orientação, pediatras, professores, psicólogos, etc. assumam o brincar como uma das “guide lines” para a sua intervenção.

Os mais novos vão gostar e faz-lhes bem.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

NÃO TRATAR A ÁRVORE DO DESENVOLVIMENTO

 Sem surpresa, veja-se o que se passa nos Estados Unidos, os ventos não sopram favoráveis ao trabalho de investigação científica. Os critérios de financiamento às estruturas de investigação científicas portuguesas foram profundamente alterados.

Em consequência, as entidades que na avaliação tiveram “Muito Bom” vão sofrer um corte orçamental da ordem dos 68% o que, obviamente, compromete o trabalho em curso.

O ministro argumenta que o objectivo é “premiar o mérito” criando um fosso gigante entre as estruturas que obtiveram “Excelente” e as com “Muito Bom” levando a que as primeiras tenha um financiamento quatro vezes superior. A carta aberta subscrita por 78 estruturas de investigação é elucidativa a situação

Parece-me estranho que o Ministro, com experiência de ensino superior afirme o objectivo de “premiar” o mérito. O apoio à investigação não é um “prémio” é um eixo crítico no desenvolvimento das instituições das comunidades e do país. Compreende-se alguma diferença face à avaliação do trabalho das unidades e centros de investigação, já não se compreende que a diferença seja tão significativa e, mesmo, ameaçadora da continuidade dos trabalhos desses centros. Um corte de 68% terá certamente um impacto brutal.

Recordando uma afirmação já antiga do Professor Carlos Fiolhais, o ME “está a matar a árvore do desenvolvimento”.

Na verdade, está estudada e reconhecida de há muito a associação fortíssima entre o investimento em educação e investigação e o desenvolvimento das comunidades, seja por via directa, qualificação e produção de conhecimento, seja por via indirecta, condições económicas, qualidade de vida e condições de saúde, por exemplo.

A verificar-se o desinvestimento fortíssimo e a inviabilização de boa parte dos centros e estruturas de investigação corremos o sério risco de ver ameaçados e destruídos os excelentes resultados que os centros, laboratórios e unidades de investigação e as instituições de ensino superior têm vindo a alcançar e que atestam o esforço e a competência da comunidade científica portuguesa e o trabalho realizado no âmbito do ensino superior e investigação, traduzidos no reconhecimento internacional das nossas instituições.

Opções políticas desta natureza poderão ter consequências sérias em termos de desenvolvimento científico e económico para além, evidentemente, do impacto nas carreiras pessoais assim ameaçadas de muitas que investigam, criam conhecimento, promovem desenvolvimento e que, provavelmente, desistem ou emigram.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

O(A) MELHOR PROFESSOR(A) DO ...

 Leio no Público que para a edição deste ano do Global Teacher Prize Portugal, o número de candidaturas é o maior de sempre.

Como já tenho escrito tenho algumas reservas face a este tipo de iniciativas, mas creio que podem ter algum significado, sobretudo como valor simbólico de valorização e reconhecimento do trabalho dos professores num tempo em que tal reconhecimento e valorização são dramaticamente necessários. Os tempos que temos vivido recentemente tornaram ainda mais evidente a importância do seu trabalho.

No entanto, não acredito muito na ideia do melhor professor de …

A esmagadora maioria dos professores é competente e empenhada no seu trabalho, procurando desenvolvê-lo com qualidade, rigor e eficácia, sem facilitismos, contrariamente ao que tantas vezes se afirma de forma ignorante.

Todos os dias, em todas as escolas muitos professores fazem trabalhos de notável qualidade e empenho que, com alguma frequência, apenas são valorizados e conhecidos … pelos seus alunos. Com demasiada frequência esse trabalho é dificultado por muitas decisões, dimensões e discursos das políticas públicas de educação que, mais do que contributos para soluções nas escolas, associam-se a boa parte das dificuldades de professores, técnicos, alunos, ao clima de muitas escolas, etc.

Como tantas vezes refiro, quando qualquer de nós faz um esforço para recuperar lembranças positivas sobre os professores, poucos ou muitos, com que nos cruzámos durante o nosso trajecto escolar, creio que quase todos nos lembramos de professores que continuam na nossa lembrança não só pelos saberes escolares que nos ajudaram a adquirir, mas, sobretudo, por aquilo que representaram e foram para nós, ou seja, pela forma como nos marcaram. Cada um desses professores é, certamente, o melhor professor que conhecemos.

Por isso, cada vez mais estou convicto de que os professores, tanto quanto ensinar o que sabem, ensinam o que são, ou seja, existem muitos que nos ensinam, ensinaram, saberes, o que é bom e indispensável, mas nem todos permanecem com a gente.

Parece-me sempre oportuno, mas nestes tempos mais que nunca, acentuar a importância desta dimensão mais ética e afectiva do ensino. Deve ser valorizada e promovida para que os miúdos possam, posteriormente, falar dos professores que os marcaram e que, por essa razão, continuaram com eles.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

VIAGEM

 A nossa viagem é uma caminhada que vai deixando marcos, uns de alegria e realização, outros de tristeza e sofrimento.

É olhando e pensando nesses marcos que caminhamos construindo outros, tantos mais quanto a vida se cumpre e alonga.

Hoje, não sendo, provavelmente, matéria que por aqui faça muito sentido, eu e a minha companheira de estrada assinalamos um marco, casámos há 46 anos a que acrescem mais cinco de namoro, naquele tempo era habitual, enquanto se finalizava a nossa formação, psicologia no meu caso e a docência no 1.º ciclo e posteriormente na educação especial no caso da Manuela, desculpem a linguagem, eventualmente, pouco “inclusiva”.

Esta viagem começou lá para os idos de 70, ainda antes de um outro marco Grande, o de Abril de 74. Cumpriu-se do ponto de vista profissional com um trajecto nos satisfez, deixando outros marcos, e tem-se cumprido na família, com o filho João a quem se juntou a Rita, e os dois netos, o Simão e o Tomás, e novos marcos vai a estrada ganhando.

Assim há-de continuar por mais algum tempo, esperamos.

Falando em viagem, para que estas notas se alarguem, deixo  a história de um outro Viajante.

 Era uma vez um rapaz chamado Viajante. A todo o tempo contava as inúmeras viagens que, dizia ele, realizava com frequência. Era frequente os colegas ficarem atentos a ouvir o Viajante constar as suas andanças. Contava coisas extraordinárias e mirabolantes sobre os sítios e terras para e por onde as viagens o levavam. Explicava com muitos pormenores as pessoas estranhas que encontrava. Tinham, por exemplo, uma linguagem diferente que muitas vezes não percebia e também, às vezes, se comportavam de forma que ele e os colegas não estavam habituados.

Passava por terras que não eram nada parecidas com a terra onde viviam e o Viajante descrevia de forma minuciosa e ilustrada como eram essas terras.

Tinha quase sempre viagens novas para relatar e os colegas até sentiam uma pontinha de inveja por tantas viagens que o Viajante fazia.

Curiosamente, não percebiam que a quase totalidade das viagens que o Viajante lhes contava eram realizadas quando estava sentado na sala de aula a olhar para a janela. Distraído ou na Lua, como diziam os professores que não apreciavam viagens

terça-feira, 6 de maio de 2025

"É A PORRA DA POLÍTICA, PÁ". SERÁ?

 O ME continua a aguardar a primeira parte da auditoria externa solicitada, perdão, comprada, à consultora KPMG para conhecer com rigor o número de alunos sem professor a todas as disciplinas. Também ainda falta bastante tempo para terminarem as aulas deste ano lectivo, qual é a pressa?

Se bem se lembram, em Novembro foram divulgados pelo ME dados errados relativamente aos estudantes que, perto do final do 1.º período, não tinham ainda professor a todas as disciplinas. É ainda relevante que a segunda parte da encomenda à consultora será relativa a “propostas para a melhoria do sistema de apuramento do número de alunos sem aulas para os diferentes momentos do ano lectivo”. Parece até um bocadinho estranho que entre as diferentes estruturas do ME não exista conhecimento e competência para realizar algo que, obviamente, faz parte das suas atribuições. Mas nada de novo, as consultoras também precisam de trabalho e espera-se sempre que o relatório apresentado venha coberto por um manto de isenção.

A divulgação dos resultados reais esteve prevista para Março, depois para Abril e agora aguarda-se para “os próximos dias”.

No entanto, existe um pequeno problema. Estamos em plena campanha para as legislativas e os resultados podem não ser, por assim dizer, muito simpáticos para quem está com o poder e, naturalmente, quer continuar como, aliás, o Ministro afirmou.

Assim, ou torturam-se os dados para que confessem uma “realidade” pouco real ou protela-se a sua divulgação para tempos mais tranquilos e eleições passadas. O pequeno pormenor de que as aulas deste ano lectivo estão perto do fim, não passa disso mesmo, um pormenor.

Como diria um amigo meu lá do Alentejo, é “a porra da política, pá”.

Eu não acredito é claro.  

segunda-feira, 5 de maio de 2025

VIDA INDEPENDENTE

 Hoje assinala-se o Dia Europeu da Vida Independente. No sábado realizaram-se manifestações em oito cidades portuguesas com o objectivo de "chamar a atenção para um conjunto de questões que continuam por resolver no que diz respeito aos direitos das pessoas com deficiência, concretamente em Portugal".

Na verdade, muitas vezes aqui o tenho afirmado, a vida de muitas pessoas com deficiência é uma constante e infindável prova de obstáculos, muitas vezes intransponíveis, que ampliam de forma inaceitável a limitação na mobilidade que a sua condição, só por si, pode implicar. No entanto, muitos dos obstáculos não têm a ver com barreiras físicas, remetem para a falta de senso, incompetência ou negligência com que gente responsável(?) lida com estas questões.

Muitos destes obstáculos estão associados ao que as comunidades e as suas lideranças, políticas por exemplo, entendem ser os direitos, o bem comum e o bem-estar das pessoas, de todas as pessoas.

Como é evidente, existem muitas outras áreas de dificuldades colocadas às pessoas com deficiência, designadamente apoios sociais, educação, qualificação profissional e emprego, habitação, em que a vulnerabilidade e os riscos de exclusão e pobreza são elevados traduzido em taxas de desemprego entre pessoas com deficiência muitíssimo superiores à verificada com a população sem deficiência.

Umas questões críticas também consideradas prende-se comos apoios à vida independente, designadamente o apoio para as pessoas tenham acesso a assistente pessoal, "A vida independente, para ser possível, é preciso ter o direito à habitação, é preciso ter acesso à habitação, aos transportes, à educação inclusiva, ao trabalho, mas há uma ferramenta que é fundamental, que é a assistência pessoal".

Existiu desde há cinco anos um projecto que apoiou cerca de mil pessoas, parou há um ano e existirão, pelo menos, três mil pessoas que aguardam o acesso a assistente pessoal.

Como tantas vezes tenho afirmado escrito, a inclusão assenta em cinco dimensões fundamentais, Ser (pessoa com direitos), Estar (na comunidade a que se pertence da mesma forma que estão todas as outras pessoas), Participar (envolver-se activamente da forma possível nas actividades comuns), Aprender (tendo sempre por referência os currículos gerais) e Pertencer (sentir-se e ser reconhecido como membro da comunidade). A estas cinco dimensões acrescem dois princípios inalienáveis, autodeterminação e autonomia e independência.

As pessoas com deficiência não precisam de tolerância, não precisam de privilégios, não precisam de caridade, precisam só de ver os seus direitos considerados. Os direitos não são de geometria variável cumprindo-se apenas quando é possível.

Este é o caderno de encargos que nos convoca a todos.

domingo, 4 de maio de 2025

MÃES

 Repetindo-me.

Hoje assinala-se o Dia da Mãe. Muitas mães recebem uma prendinha que os mais novos trazem da escola ou algo feito ou comprado com a ajuda do pai ou de alguém. Mas, há sempre um mas, existem muitas vidas, de mulher, de mãe. Algumas palavras.

Uma palavra para as mulheres que não conseguem cumprir, por diferentes razões, incluindo económicas, o sonho da maternidade.

Uma palavra para as mulheres que tragicamente perderam filhos ficando na dramática condição de mães órfãs de filhos.

Uma palavra para as mães que por mais longe que tenham os filhos não deixam de ser mães, não vão de férias e nunca se reformam.

Uma palavra para as crianças que têm mães que não desejavam sê-lo e que, portanto, nunca aprenderam a gostar de ser mães, adoptando os seus filhos.

Uma palavra para as muitas crianças institucionalizadas sem mãe na sua vida.

Uma palavra para as mulheres sós ou em má companhia que em situações muitas vezes difíceis constroem o bem-estar dos seus filhos.

Uma palavra para as mães que por razões profissionais e por pressões de necessidade económica mal têm o tempo de que uma mãe os filhos precisam.

Uma palavra ainda para todas as mulheres a quem a vida e a pobreza fazem correr mundo à procura de um sonho, ajudar a cres(ser)os filhos que lá longe ficaram e a esperam ... se ela conseguir voltar.

Uma palava cantada para todas as mães.



(QUASE) TODOS BATEM NOS PROFESSORES (Take 2)

 Há poucas semanas comecei desta forma e incomodado por ter de assim escrever, todos batem nos professores, até os professores que estão como directores. Os directores não são directores, insisto, são professores que estão alguns anos, demais para alguns, como directores. Uma parte preferiria, certamente, eternizar-se como directores, mas, por enquanto, ainda não é assim, embora o trânsito para o agrupamento do lado após o cumprimento dos mandatos seja uma forte ajuda.

O texto de que retomo algumas notas referia as situações denunciadas numa reportagem do canal NOW envolvendo seis docentes em situação diversa de problemas de saúde que se revelavam absolutamente inquietantes considerando o desrespeito pelas circunstâncias de saúde, pelo incumprimento de recomendações relativamente ao horário atribuído ou à distribuição de serviço. Eram referidas situações de assédio moral num contexto de sofrimento de pessoas que apenas querem continuar a fazer o seu trabalho de uma forma minimamente compatível com as suas condições de saúde e com um quadro legal que o permite.

Apenas a mediocridade humana, ética e profissional de alguns directores sustenta a incompetência do seu comportamento.

Agora no Público retoma-se a questão mostrando um cenário ainda mais grave bastante mais amplo. Desde o início do ano lectivo a Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares registou 234 queixas, pedidos de informação ou de esclarecimentos por parte de professores e de directores escolares relacionadas com o acesso ou falta e acesso à Medicina do Trabalho, bem como desrespeito pelo conteúdo da Ficha de Aptidão para o Trabalho. Entretanto, o ME afirma ter em desenvolvimento um dispositivo facilitador da contratação para aquisição de serviços médicos para realização de juntas médicas e de serviços de segurança e saúde no trabalho para os estabelecimentos públicos de educação.

 No entanto, de acordo com Sofia Neves, vice-presidente da Associação Jurídica Pelos Direitos Fundamentais, “Muitos directores de todo o país estão a substituir-se aos médicos do trabalho, fazendo eles a avaliação das condições de trabalho após a análise da FAT”, prossegue. Muitos professores são "empurrados" para baixas.” Afirma ainda que algumas direcções recusam marcar a consulta de Medicina do Trabalho solicitada pelos professores.

Como já escrevi, parece claro que esta gente medíocre que assim lidera uma escola ou agrupamento e trata os seus colegas dormirá de consciência tranquila. Não sabem ou esqueceram o que significa consciência ou perderam-na embriagados pela volúpia do poder para o qual lhes falta competência, estrutura ética e moral para exercer.

Uma nota final. Ao longo de quase cinco décadas e considerando, sobretudo, o período após o estabelecimento da direcção unipessoal de escolas e agrupamentos, cruzei-me com professores extraordinários que estavam na função de directores, mas não esqueciam a sua pertença. Esses, por estes dias devem sentir-se profundamente incomodados com o que se vai sabendo.

sábado, 3 de maio de 2025

O MISTÉRIO DO TELEMÓVEL PERDIDO

 Deixem-me partilhar uma história de hoje. Fomos às compras à vila e quando voltámos ao monte a minha companheira de estrada deu por falta do telemóvel. Retornámos e nos locais onde estivemos, o mercado, a papelaria e a drogaria o aparelho não foi visto e tentando estabelecer ligação também não se ouvia a tocar, nem era atendido.

Dando o telemóvel por perdido decidimos ligar ao João para nos ajudar a cancelar, se possível, o acesso. Como sabem, os filhos são bens de primeira necessidade e ajuda, e o João, para nossa surpresa, os velhos não são muito proficientes nas tecnologias, disse-nos que ia ver onde estava e já nos dizia.

Pouco tempo depois envia-me as coordenadas exactas, estava numa casa isolada à beira da estrada, um quilómetro fora da vila.

Bom, com algum constrangimento para lá nos dirigimos, parámos num espaço à frente da casa e depois de uma buzinadela surgiu um casal já entrado na vida. Depois do cumprimento perguntei se tinham encontrado um telemóvel com capa castanha, mas não, não tinham. Como é que poderiam ter um telemóvel nosso se não saíram de casa?

Tentei explicar que tinha a indicação segura de que estaria ali, mas nada.

De repente, a minha mulher reparou num carro ali parado e disse que o tinha visto estacionado ao lado do nosso na drogaria da vila.

O senhor ainda disse que nem tinha saído, mas insistimos, o telemóvel está aqui, terá caído perto do seu carro e acabou por viajar, por engano, no carro errado. O senhor negava e estávamos assim numa espécie de beco sem saída e sem telemóvel.

No entanto, um tempinho depois e com alguma hesitação, o senhor volta-se para trás e diz à mulher, “traz lá o telemóvel” o que a senhoa fez com um ar estranhamente embaraçado

A verdade é que, com grande contentamento de (quase) toda a gente, o aparelho voltou feliz às mãos da sua dona que, obviamente, também ficou feliz e agradecida por tanta generosidade.

É assim que devem acabar as histórias.

E são também assim os dias do Alentejo.

PS – Posteriormente descobrimos que o telemóvel vinha com umas fotos da senhora tiradas antes de o desligar. Ficam de recordação, é sempre bom a assinalar a seriedade das pessoas.


sexta-feira, 2 de maio de 2025

DA SÉRIE "METE-ME ESPÉCIE" - O BOTÃO DE "OFF"

 Mais umas notas da série “mete-me espécie”, um enunciado que nos é caro e está sempre em alta.

Desta vez sobre o apagão de segunda-feira. Foram visíveis e bem sentidas as implicações e dificuldades em múltiplas áreas do nosso funcionamento e das instituições da comunidade.

Por outro lado, “mete-me espécie” o aparecimento em alguma imprensa e nas redes sociais de inúmeros discursos sublinhando uma deslumbrada redescoberta das virtudes do apagão, o silêncio devolvido pela inoperacionalidade das comunicações incluindo os telemóveis pessoais, a ausência das redes sociais, e a conversa em casa e com a vizinhança, a beleza e calmaria da noite escura e céu estrelado, etc., etc.

Não consigo entender. A maioria de nós será gente autodeterminada que é capaz, se o quiser, de desligar o querido aparelhinho, de não se ligar às redes sociais, de conversar mais tempo em família ou socialmente, de apagar a luz de casa e entrar em meditação, de desligar o ecrã gigante onde passam as séries da moda e é o farol da casa. Que é isto gente?!

Onde é que está a beleza da dependência que nos faz vibrar com um apagão que faz andar para trás, causa enorme perturbações e transtorno significativo nas áreas de funcionamento das comunidades e afectou o trabalho de tanta gente?

Precisamos de (re)descobrir o botão de “off” e decidirmos pela sua utilização de forma autónoma e determinada, auto-regulada. Não precisamos que um apagão o faça por nós … ou precisamos?

quinta-feira, 1 de maio de 2025

O 1º DE MAIO E A ESCOLA A TEMPO INTEIRO

 O título pode parecer estranho, mas vou tentar clarificar. O feriado de hoje, 1 de Maio, Dia do Trabalhador, foi estabelecido para homenagear os trabalhadores de Chicago, nos Estados Unidos, que em 1886 começaram uma greve para reivindicar o dia de trabalho com oito horas, semana de trabalho de 40 h, constituída como regra em muitos países. Sabemos ainda em vários grupos profissionais o número de horas de trabalho é já menor e que parece desenhar-se uma perspectiva de encurtamento assim como se equaciona a redução dos dias de trabalho.

No entanto, para os alunos mais novos e de acordo com o que está definido legalmente, considerando o horário curricular, as Actividades de Enriquecimento Curricular e a Componente de Apoio à Família, a estadia dos alunos na escola pode atingir bem mais de 40 horas semanais se os pais necessitarem. Muitos alunos estão mesmo nas escolas 50h ou mais por semana.

Esta situação acontece âmbito de uma iniciativa, a “Escola a Tempo Inteiro”. 

Sabemos como os estilos de vida actuais têm colocado graves dificuldades às famílias para assegurarem a guarda das crianças em horários não escolares. A resposta tem sido prolongar a estadia dos miúdos nas instituições escolares alimentando o que considero um dos vários equívocos no universo da educação, a afirmação de uma visão de “Escola a Tempo Inteiro” em vez de “Educação a Tempo Inteiro”. O modelo é bem recebido por muitos pais e tolerado por muitos outros por falta de alternativas. No entanto e tal como o faço desde 2006, algumas notas a pensar, sobretudo, nos miúdos e nas respostas.

Para além da reflexão sobre o que acontece nesse tempo de permanência na escola e tal como se verifica noutros países, seria imperioso que se alterassem aspectos como a organização do trabalho, verificada em muitos países, que minimizassem as reais dificuldades das famílias recorrendo, por exemplo e quando possível, a teletrabalho ou à diferenciação nos horários de trabalho que em alguns sectores e profissões é possível.

É preciso um esforço enorme, equipamentos e recursos humanos suficientes e qualificados para que não se corra o risco de transformar a escola numa “overdose” pouco amigável para muitos miúdos. As dúvidas relativamente a esta questão são muitas.

É verdade que existem boas práticas neste universo, mas também todos conhecemos situações em que existe a dificuldade óbvia e esperada de encontrar recursos humanos com experiência e formação em trabalho não curricular. Acresce que boa parte das escolas, como é natural, têm os seus espaços estruturados (e por vezes saturados) sobretudo para salas de aula. Espaços para prática de actividades desportivas ou de ar livre, expressivas, biblioteca, auditórios, etc., etc., a existirem, dificilmente poderão ser suficientes para uma ocupação da população escolar alternativa à sala de aula.

Esta questão é também relevante no que respeita à qualidade e adequação da resposta a alunos com necessidades especiais.

Este obstáculo acaba por resultar com demasiada frequência na réplica de actividades de natureza escolar com baixo ou nulo benefício e um risco a prazo de desmotivação, no mínimo.

Por outro lado, tanto quanto o tempo excessivo de estadia na escola merece reflexão o risco e as implicações da natureza muitas vezes “disciplinarizada” desse trabalho, ou seja, organizado por tempos, de forma rígida próxima do currículo escolar.

A enorme latitude de práticas que se encontra actualmente, desde o muito bom ao muito mau, sustenta que também neste aspecto os dispositivos de regulação devam ser robustos e eficientes. Recordo que em muitas circunstâncias as AEC são desenvolvidas por entidades externas à escola pelo que importa assegurar a competência e responsabilidade da escola bem como a sua autonomia.

Na verdade, embora compreendendo a necessidade da resposta seria desejável que, tanto quanto possível se minimizasse o risco de em vez de tentarmos estruturar um espaço que seja educativo a tempo inteiro com qualidade, preenchido na escola ou em espaços e equipamentos da comunidade, e aqui sim, importante o envolvimento das autarquias, assistirmos à definição de uma pesada agenda de actividades que pode motivar situações de relação turbulenta e reactiva com a escola.

Ao escrever estas notas lembrei-me que em 2007 participei num debate sobre as AEC na Vidigueira em que uma professora presente referiu um episódio elucidativo. Nesse ano e na sua escola tinha sido preparado um espaço para as crianças jogarem futebol. Um dos seus alunos fez a seguinte observação. “Quando eu tinha tempo para brincar não tinha um campo. Agora tenho um campo e não tenho tempo para jogar”.

Os miúdos andavam mal-habituados é o que é. Então a escola é sítio para jogar à bola mesmo havendo campo? Não, a escola é para trabalhar.