Nos últimos dias surgiu uma notícia que merece reflexão. Um grupo de professores do departamento de educação especial de um agrupamento do concelho de Almada solicitou, ao abrigo do quadro legal, escusa de responsabilidade pois entende que as condições em que desenvolve o seu trabalho não permitem o apoio necessário aos alunos que acompanham. São insuficientes os recursos humanos, docentes, técnicos e auxiliares bem como a formação para assegurar a resposta necessária.
A posição foi assumida por doze
dos catorze docentes (os dois restantes estão ausentes por doença) que acompanham
crianças com diagnóstico da perturbação do Espectro do Autismo em unidades de
ensino estruturado.
Nada de novo, a não ser a
apresentação do pedido de escusa que não é muito habitual e tem um significado
acrescido. No fundo, mais uma situação de muitas que mostram o que costumo
referir como lado B da chamada educação inclusiva.
Na notícia do Público são
referidos dados de um inquérito realizado pela Fenprof e divulgado em Janeiro
que também aqui comentei.
O trabalho envolveu 132
agrupamentos e centrou-se na operacionalização da legislação sobre educação
inclusiva.
Sem surpresa, os dados revelam
falta de docentes de educação especial, técnicos especializados, assistentes
operacionais, tarefeiros, espaços físicos “dignos” ou materiais. Nas escolas
abrangidas seriam necessários mais 171 docentes da área da educação inclusiva e
mais 458 assistentes operacionais.
Acresce que entre os mais de 156 mil alunos desses agrupamentos, 8,2%
beneficiam de medidas de suporte à aprendizagem e inclusão. Existem ainda mais
6888 que apenas têm “apoio indirecto do docente de educação especial”, dito de
outra forma, necessitariam de um professor para um melhor acompanhamento.
Em termos globais, 80% dos
agrupamentos inquiridos consideram que não têm os recursos que seriam
necessários e ainda se verifica que em 23% das turmas não se cumpre a
legislação no que respeita ao número de alunos com necessidades especiais,
Nada de novo, mas umas notas que
espero breves.
Muitas vezes aqui tenho abordado
esta questão, é a minha paixão e tem sido a minha vida. Comecei a trabalhar no
universo da educação, em particular da educação para alunos com necessidades
especiais, (à época os alunos com deficiência) em 1976 e aposentei-me
definitivamente em 2024, sempre nesta área, a educação. Como as pessoas ligadas
à educação sabem ou irão saber, de professor e de pai nunca nos reformaremos
por mais longa que seja a nossa vida. Também é curioso que a minha companheira
de estrada tenha sido professora de educação especial no 1.º ciclo durante a
quase totalidade da carreira, achando eu que tive alguma responsabilidade nessa
opção.
Dito isto, comecei no tempo das
escolas especiais organizadas por deficiência (eu ligado à primeira CERCI que
se constituiu), trabalhei no tempo da educação especial, no tempo da integração
e das equipas de professores de ensino especial e, finalmente, no tempo da
inclusão.
Sempre com esperança, acompanhei
a mudança de quadro conceptual e legal que enquadrava este trabalho, ah, já me
esquecia, também acompanhei as mudanças de paradigma, como sabem as coisas só
mudam quando muda o paradigma, passei do paradigma da escola especial, para um
paradigma combinado já com salas de ensino especial (salas de apoio) na escola
regular, passei depois para o paradigma da integração, os alunos passaram a
estar fundamentalmente integrados em turmas de ensino regular com
acompanhamento dos professores de educação especial e, finalmente, o paradigma
da inclusão, os alunos, todos os alunos, estão incluídos, já não são
estigmatizados como alunos com necessidades educativas especiais. Assim, os
alunos que revelavam algum tipo de dificuldade passaram a ser objecto de
medidas educativas arrumadas em três categorias, as medidas “universais”, as
medidas “selectivas” e as medidas “adicionais”. Isto parece que é uma outra
forma de categorizar, mas não é. No paradigma da educação inclusiva é assim que
se faz.
E pronto, chegámos à educação
inclusiva, somos um exemplo para muitos países que se organizam nos velhos
paradigmas, ainda não chegaram à educação inclusiva. Esperemos que lá cheguem,
mas os ventos não vão de feição para os mais vulneráveis.
No entanto, a maldita realidade
nem sempre colabora. Eu reconheço e conheço, aliás, como sempre conheci,
excelentes e inspiradores trabalhos de professores, técnicos, pais, escolas ou
instituições ao longo destas quase cinco décadas de paradigmas diferentes. No
entanto, também importa reconhecer, veja-se os dados acima e outros, por
exemplo de relatórios da IGEC, que propagandear discursos sobre inclusão
assentes em “wishful thinking” ou torturar a realidade para que se mostre
diferente não é assim muito eficaz. Não, muitos alunos não estão incluídos nem
sequer integrados, estão “entregados” com as consequências que professores,
técnicos e pais bem conhecem. E importa considerar que não estou apenas a
referir-me aos alunos “categorizados”, os “Selectivos”, os “Adicionais” ou os
“Universais”.
Desculpar-me-ão a heresia ou
descrença, mas uma escola inclusiva é algo que não existe e, provavelmente, não
existirá nos tempos mais próximos. Os modelos e estilos de vida actuais,
económicos, políticos, sociais, culturais, as assimetrias brutais que se mantêm
não são compatíveis com “uma escola inclusiva”, de todo, são brutalmente
inquietantes os tempos que vivemos. Existem escolas, isso sim, que desenvolvem
excelente trabalho com alguns alunos, o que é diferente de “uma escola
inclusiva”.
Eu sei e gosto de acreditar que a
escola é, também, uma alavanca de mudança, mas a verdade é que a escola, de uma
forma ou de outra, é sobretudo um reflexo da sociedade que serve no tempo
histórico em que vive.
No entanto, em nome dos meus
netos que serão o futuro e das minhas convicções, e como disse acima, acredito
numa escola que possa, quanto possível, tentar promover educação, a relação
diária entre quem está na escola, assente em princípios de educação inclusiva.
E neste sentido em todas escolas existirá educação inclusiva, há sempre quem a
promova mesmo em contextos menos favoráveis.
A designação está tão desgastada
que já nem sabemos bem o que significa. No entanto e de uma forma simples, a
inclusão assenta em cinco dimensões fundamentais, Ser (pessoa com direitos),
Estar (na comunidade a que se pertence da mesma forma que estão todas as outras
pessoas), Participar (envolver-se activamente da forma possível nas actividades
comuns), Aprender (tendo sempre por referência os currículos gerais) e Pertencer
(sentir-se e ser reconhecido como membro da comunidade). A estas cinco
dimensões acrescem os princípios inalienáveis da autodeterminação, autonomia e
independência.
Finalizo voltando ao início, as
políticas públicas são onerosas, a política pública de educação é onerosa, a
suficiência de recursos será sempre uma questão problemática, mas é, também,
por aqui que se avaliam a competência e adequação das… políticas públicas. E,
fazendo bem as contas, a exclusão tem custo bem mais elevados.
Reafirmo que não esqueço o que
positivo se faz, mas conheço tantas práticas e tantos discursos que alimentam
exclusão, mas que são desenvolvidas e enunciados ... em nome da inclusão. Sempre
recordo o Mestre Almada Negreiros na "Cena do Ódio" quando falava da
"Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de
Camões".
Desculpem a extensão do texto.
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