segunda-feira, 2 de março de 2020

AS CRIANÇAS-AGENDA


No DN está um trabalho interessante sobre uma matéria que respeita a muitíssimas famílias com custos de diferente natureza para pais e filhos, as inúmeras actividades que esperam muitas crianças depois da escola. Neste espaço e em trabalho com pais e encarregados de educação também a tenho abordado com alguma frequência.
Com o arranque do ano escolar as crianças e adolescentes retomam as suas rotinas, os trabalhos, um grupo mais pequeno, os do 1º ano, estão a iniciá-las. Com as alterações nos estilos de vida muitas famílias sentem um problema importante, a guarda das crianças nos períodos laborais, o sistema educativo tem procurado resolvê-lo da pior da maneira, prolongando inaceitavelmente a estadia das crianças na escola. Creio que nem toda a gente tem consciência de que, de acordo com a lei, uma criança, por exemplo do 5º ano, pode passar 11 horas por dia na escola, ou seja, 55 horas por semana. Relatório recente da Rede Eurydice voltava a mostrar que os alunos portugueses são do que passam mais tempo na escola, designadamente no 1º ciclo.
Esta overdose de estadia institucional na escola, com o tempo muitas vezes preenchido com actividades de duvidosa qualidade apesar de também existirem muito boas práticas, não pode deixar de ter consequências na relação que os miúdos estabelecem com a escola e com as actividades da escola.
Por outro lado, muitos pais recorrem ao envolvimento dos filhos em múltiplas actividades transformando-as numa espécie de crianças-agenda. Todas estas actividades, a oferta é variadíssima, são percebidas como imprescindíveis à excelência, os miúdos devem ser educados para ser excelentes. Promovem níveis fantásticos de desenvolvimento intelectual e da linguagem, desenvolvimento motor, maturidade emocional, criatividade, interacção social, autonomia e certamente de mais alguns aspectos que agora não recordo. Assim, as crianças e adolescentes estão sempre envolvidos em qualquer actividade, a quase todas as horas pois delas se espera não menos que a excelência. 
Nada disto belisca a importância que, de facto, podem ter algumas actividades, mas apenas sublinhar alguns riscos no excesso.
Os pais, alguns pais, seduzidos pela sofisticação desta oferta, pressionados por estilos de vida que não conseguem ou podem ajustar e com a culpa que carregam pela falta de tempo para os filhos e sem vislumbrar alternativas aceitam que os trabalhos dos miúdos se desenvolvam para além do que seria desejável, eu diria saudável.
Vamos ter que repensar os trabalhos dos miúdos, de muitos miúdos. O consumo excessivo, mesmo de actividades fantásticas ou de actividades escolares, tem riscos.
Recordo que em 2018 a Academia Americana de Pediatria recomendou aos pediatras que na sua prática clínica prescrevam “tempo para brincar”, um bem de primeira necessidade para o bem-estar dos mais novos com impacto em diferentes dimensões.
Insistem e insisto que não se trata de uma ideia “frívola” e os actuais estilos de vida de muitas famílias, por diferentes razões, tornam ainda mais importante que se reafirme a importância de brincar.
Mais uma vez, brincar é a actividade mais séria que os miúdos realizam, em que põem tudo o que são, sendo ainda a base de tudo o que virão a ser e a saber.

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