O mundo anda estranho, mesmo estranho. Leio no Público que uma mãe, em 2019 desencadeou um processo judicial que passou por três instâncias e já chegou ao Supremo, à escola particular frequentada pelo seu filho que fracturou uma perna a brincar à apanhada no recreio da escola.
A mãe, com o devido apoio jurídico, reclama na acção judicial uma indemnização de 60 mil euros alegando que o estabelecimento de ensino não cumpriu o seu dever de protecção e segurança dos alunos, apesar de estarem presentes no recreio naquele momento duas funcionárias, lê-se no Público.
Antes de mais registar que, felizmente, a criança recuperou e está bem. De resto parece uma situação da “silly season” ainda que, por assim dizer, os tempos que vivemos tenham muito de “silly”.
Felizmente, os tribunais têm decidido com bom senso nesta questão, a apanhada é uma brincadeira, provavelmente, a esmagadora maioria de nós brincou à apanhada nos átrios da escola ou na rua quando se brincava na rua, e faz parte do desenvolvimento das crianças acomodando o eventual risco que qualquer tipo de actividade possa envolver.
Aliás, na peça encontra-se uma opinião no mesmo sentido do Professor Carlos Neto, uma referência no mundo da infância desde há muitos anos sempre em defesa da importância do brincar, em particular ao ar livre.
Algumas notas.
Somos dos países da Europa em que adultos e crianças menos desenvolvem actividades no exterior contrariamente, por exemplo ao que se verifica nos países nórdicos. É verdade que esses países têm habitualmente climas bastante mais amenos que o nosso, mas, ainda assim, poderíamos ter durante mais tempo crianças e adultos a realizar actividades no exterior. Por princípio e sempre que possível, a área curricular Estudo do Meio, mas não só, poderia ser também Estudo no Meio.
Muitas experiências, incluindo em Portugal, sugerem múltiplos benefícios das actividades de ar livre. As crianças, desenvolvem maior autonomia, maior consciência ambiental e competências em dimensões como bem-estar emocional, a partilha de emoções, a autonomia, a autoconfiança, auto-regulação, a criatividade ou o pensamento crítico para além, naturalmente dos benefícios mais directamente associados a qualquer actividade física.
Embora consciente das questões como risco, segurança e estilos de vida das famílias, creio que seria possível alguma oportunidade de “devolver” aos miúdos o circular e brincar na rua, ter mais algum tempo as crianças fora das paredes de uma casa, escola, centro comercial, automóvel ou ecrã.
Creio que o eixo central da acção educativa, escolar ou familiar, é a autonomia, a auto-regulação, a capacidade e a competência para “tomar conta de si” como fala Almada Negreiros. O brincar, o brincar na rua, a abertura, o espaço, o risco (controlado obviamente), os desafios, os limites, as experiências, são ferramentas fortíssimas de desenvolvimento, de literacia motora e promoção dessa autonomia.
Importa sublinhar a necessidade de controlar um eventual perigo que, ainda assim, é diferente do risco, as crianças também “aprendem” a lidar com o risco.
Talvez, devagarinho e com os perigos e riscos controlados, valesse a pena trazer os miúdos para brincar na rua, mesmo que por pouco tempo e não todos os dias.
No imperdível “O MUNDO, o mundo é a rua da tua infância”, Juan José Millás recorda-nos como a rua, a nossa rua foi o princípio do nosso mundo e nos marca. Quantas histórias e experiências muitos de nós carregam vindas do brincar e andar na rua e que contribuíram de formas diferentes para aquilo que somos e de que gostamos.
É, pois, importante que todos os que lidam com crianças, em particular, os que têm “peso” em matéria de orientação, pediatras, professores, psicólogos, etc. assumam como “guide line” para a sua intervenção a promoção do brincar e do brincar na rua.
É verdade que nas nossas comunidades está muito por fazer no sentido de recuperar a “rua” para as brincadeiras dos miúdos.
Os mais novos vão gostar e faz-lhes bem.
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