quinta-feira, 20 de julho de 2017

AINDA A BALEIA AZUL

Depois do impacto mediático dos primeiros casos, as referências ao fenómeno que dá pelo nome de “Baleia Azul” retorna à imprensa merecendo primeira página no JN. Segundo a peça, nos últimos dois meses as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens registaram uma subida do número de situações com forte probabilidade de se relacionarem com aquele “desafio”. Foram reencaminhados para o Departamento Central de Investigação e Acção Penal 34 casos, o triplo dos registos até Maio.
Continuo convencido que esta situação é apenas uma ponta do "iceberg" de mal-estar que atinge muitos adolescentes e jovens como se evidencia no trabalho da Visão de hoje sobre o suicídio de três jovens alunos de uma escola de Lisboa.
Assim, importa insistir na atenção que merece. Nesse sentido, retomo umas notas que escrevi também para a Visão há algumas semanas.
“Agora trata-se de algo que é conhecido por Baleia Azul e que recuso firmemente designar por jogo. Logo depois, já se conhecem outras referências, surgirá outro fenómeno da mesma natureza.
Muita coisa já foi divulgada a este propósito, sobre a forma como se desenrola, sobre os riscos das redes sociais e cuidados a ter por pais e educadores, sobre a intervenção das autoridades que já transformou o episódio também num caso de polícia, etc.
Assim e neste contexto, não me parece necessário insistir na referência ao episódio Baleia Azul, parece-me essencial, isso sim, reflectir sobre o conjunto de razões pelas quais adolescentes e jovens se envolvem em situações desta natureza com riscos graves, incluindo automutilação e suicídio e que atingem dimensões verdadeiramente preocupantes.
Segundo os últimos dados do estudo “A Saúde dos adolescentes Portugueses”, divulgado no ano passado e que integra o estudo internacional Health Behaviour in School-aged Children, da responsabilidade da OMS, um em cada cinco alunos (20,3%), entre os 13 e os 15 anos já se magoou a si próprio, de propósito, nos últimos 12 meses, sobretudo cortando-se nos braços, nas pernas, na barriga... Referiram que se sentiam “tristes”, “fartos”, “desiludidos” quando o fizeram.
Este indicador, preocupante como é evidente, é-o tanto mais quando representa um aumento de quase cinco pontos percentuais do grupo dos que fazem mal a si próprios considerando o Relatório anterior.
Na verdade, os comportamentos de automutilação em adolescentes são mais frequentes e graves do que muitas vezes pensamos e devem ser encarados com preocupação. E os casos que vão sendo conhecidos são apenas isso, os conhecidos, a ponta do iceberg.
É justamente por esta dimensão e as suas potenciais consequências que me parece fundamental entender tudo isto como um sinal muito forte do mal-estar que muitos adolescentes e jovens sentem e a verdade é que em muitas situações não conseguimos estar suficientemente atentos. Este mal-estar e o que daí pode emergir decorrem de situações de sofrimento com as mais diversas origens, relações entre colegas, bullying por exemplo nas suas diferentes formas ou relações degradadas na família que facilitam a instalação de sentimentos de rejeição, ausência de suporte social que serão indutoras de comportamentos autodestrutivos.
Começa também a surgir como causa deste mal-estar a dificuldade que algumas crianças e adolescentes sentem em lidar com situações de insucesso escolar. Estas dificuldades são frequentemente potenciadas pela pressão das famílias e pelo nível de competição que por vezes se instala.
Os tempos estão difíceis e crispados para muitos adultos e também para os miúdos a estrada não está fácil de percorrer.
Como disse, alguns vivem, sobrevivem, em ambientes familiares disfuncionais que comprometem o aconchego do porto de abrigo, afinal o que se espera de uma família.
Alguns percebem, sentem, que o mundo deles não parece deste reino, o mundo deles é um espaço, nem sempre um espaço físico, insustentável que, conforme as circunstâncias, é o inferno onde vivem ou o paraíso onde se acolhem e se sentem protegidos mas perdidos.
Alguns sentem que o amanhã está longe de mais e que um projecto para a vida é apenas mantê-la ou que nem isso vale a pena.
Alguns convencem-se ou sentem que a escola não está feita para que nela caibam e onde podem ser vitimizados.
Alguns sentem que podem fazer o que quiserem porque não têm nada a perder e muito menos acreditam no que têm a ganhar fazendo diferente.
Alguns transportam diariamente um fardo excessivamente pesado e que os torna vulneráveis.
Depois das ocorrências torna-se sempre mais fácil dizer qualquer coisa mas é necessário pois muitos destes adolescentes e jovens terão evidenciado no seu dia-a-dia sinais de mal-estar a que, por vezes, não damos atenção, seja em casa ou na escola, espaço onde passam boa parte do seu tempo. Aliás, alguns testemunhos ouvidos no âmbito dos recentes e mediatizados casos mostram isso mesmo.
De facto, em muitos casos, designadamente, em comportamentos de automutilação ou estados mais persistentes de tristeza e isolamento, pode ser possível perceber sinais e comportamentos indiciadores de mal-estar. Estes sinais não podem, não devem, ser ignorados ou desvalorizados. É também importante que pais e professores atentos não hesitem nos pedidos de ajuda ou apoio para lidar com este tipo de situações.
O sofrimento e mal-estar induzem uma espiral de comportamentos em que os adolescentes causam sofrimento a si próprios o que promove mais sofrimento num ciclo insuportável e com níveis de perplexidade, impotência e sofrimento para as famílias também extraordinariamente significativos.
Não, não tenho nenhuma visão idealizada dos mais novos nem acho que tudo lhes deve ser permitido ou desculpado. Também sei que alguns fazem coisas inaceitáveis e, portanto, não toleráveis. Só estou a dizer que muitas vezes a alma dói tanto que a cabeça e o corpo se perdem e fogem para a frente atrás do nada que se esconde na adrenalina dos limites.
Alguns destes miúdos carregam diariamente uma dor de alma que sentem mas nem sempre entendem ou têm medo de entender.
Espreitem a alma dos miúdos, sem medo, com vontade de perceber porque dói e surpreender-se-ão com a fragilidade e vulnerabilidade de alguns que se mascaram de heróis para uns ou bandidos para outros, procurando todos os dias enganar a dor da alma.
Eles não sabem, eu também não, o que é a alma. Um adolescente dizia-me uma vez, “dói-me aqui dentro, não sei onde”.
Muitos pais, mostra-me a experiência, sentem-se de tal forma assustados que inibem um pedido de ajuda por se sentirem impotentes e perplexos.
O resultado de tudo isto pode ser trágico e obriga-nos a uma atenção redobrada aos discursos e comportamentos dos adolescentes e dos jovens."
Desculpem a repetição mas é preciso insistir.

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