No Público encontra-se uma referência a um trabalho realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em que, com base em dezenas de estudos internacionais, se encontra uma significativa relação entre a exposição às redes sociais e o aumento do risco de comportamentos autolesivos em crianças e adolescentes ainda que, naturalmente, não se estabeleçam relações de causa e efeito.
Os comportamentos autolesivos observados em crianças,
adolescentes e jovens é uma das questões mais inquietantes para quem por
qualquer razão está ligado ao universo dos mais novos, parece de acordo com os
autores do estudo estar a aumentar e justifica o retomar de algumas notas.
Quando uma criança ou adolescente provoca sofrimento ligeiro, moderado ou severo a si próprio toda a comunidade perceberá que o mal-estar é enorme e importa
estar atento e intervir.
Recupero os dados do trabalho, "A Saúde dos
adolescentes Portugueses" de 2022, que integra o estudo internacional
"Health Behaviour in School-aged Children", da responsabilidade da
OMS, realizado de quatro em quatro anos e coordenado em Portugal pela excelente
equipa da Aventura Social, de que destaco Margarida Gaspar de Matos e Tânia
Gaspar. Na altura da sua divulgação também aqui registei estes e outros dados
que justificam reflexão.
O estudo envolveu 5809 alunos do 6.º, 8.º e 10.º anos, uma
amostra representativa destes anos de escolaridade. A natureza e diversidade
dos dados encontrados justificará várias reflexões, mas hoje consideremos os
indicadores relativos a adolescentes que se magoam a si próprios num quadro de
mal-estar. Este comportamento é referido por 24,6% dos inquiridos,
maioritariamente raparigas e mais no 8º ano. Em 2018, último estudo, a
percentagem era de 19,6%. Trata-se, de facto, de um dado inquietante e reflexo
do mal-estar em muitos adolescentes que é coerente com outros indicadores do
trabalho.
Alguns estudos internacionais apontam para cerca de 10% da
população em idade escolar com comportamentos autolesivos pelo que os dados
encontrados em Portugal são, de facto, preocupantes. Conheceremos melhor a
situação comparativa quando estes dados forem cruzados com os de outros países
envolvidos
Na verdade, os comportamentos autolesivos em adolescentes
são mais frequentes do que muitas vezes pensamos e devem ser encarados com
preocupação. E os casos que vão sendo conhecidos são apenas isso, os
conhecidos, a ponta do iceberg.
Num estudo da Universidade de Coimbra, creio que divulgado
em 2017, que envolveu 2.863 adolescentes, entre os 12 e os 19 anos, a
frequentar o 3.º ciclo e o ensino secundário em escolas do distrito de Coimbra
se referia que cerca de 20% afirma já tinha desencadeado comportamentos
autolesivos pelo menos uma vez na vida.
É justamente por esta dimensão e as suas potenciais
consequências que me parece fundamental entender tudo isto como um sinal muito
forte do mal-estar que muitos adolescentes e jovens sentem e a verdade é que em
muitas situações não conseguimos estar suficientemente atentos. Este mal-estar
e o que daí pode emergir decorrem de situações de sofrimento com as mais
diversas origens, relações entre colegas, bullying por exemplo nas suas
diferentes formas ou relações degradadas na família que facilitam a instalação
de sentimentos de rejeição, ausência de suporte social que serão indutoras de
comportamentos autodestrutivos.
Neste contexto e dado a relação de boa parte de crianças,
adolescentes e jovens com as redes sociais percebe-se a relação encontrada no
estudo referido acima e, simultaneamente, a dificuldade de intervenção
Também como causa deste mal-estar pode referir-se a
dificuldade que algumas crianças e adolescentes sentem em lidar com situações
de insucesso escolar. Estas dificuldades são frequentemente potenciadas pela
pressão das famílias e pelo nível de competição que por vezes se instala.
Os tempos estão difíceis e crispados para muitos adultos e
também para os miúdos a estrada não está fácil de percorrer.
Como disse, alguns vivem, sobrevivem, em ambientes
familiares disfuncionais que comprometem o aconchego do porto de abrigo, afinal
o que se espera de uma família.
Alguns percebem, sentem, que o mundo deles não parece deste
reino, o mundo deles é um espaço, nem sempre um espaço físico, insustentável
que, conforme as circunstâncias, é o inferno onde vivem ou o paraíso onde se
acolhem e se sentem protegidos, mas perdidos.
Alguns sentem que o amanhã está longe de mais e que um
projecto para a vida é apenas mantê-la ou que nem isso vale a pena.
Alguns convencem-se ou sentem que a escola não está feita
para que nela caibam e onde podem ser vitimizados.
Alguns sentem que podem fazer o que quiserem porque não têm
nada a perder e muito menos acreditam no que têm a ganhar fazendo diferente.
Alguns transportam diariamente um fardo excessivamente
pesado e que os torna vulneráveis.
Depois das ocorrências torna-se sempre mais fácil dizer
qualquer coisa, mas é necessário pois muitos destes adolescentes e jovens terão
evidenciado no seu dia-a-dia sinais de mal-estar a que, por vezes, não damos
atenção, seja em casa ou na escola, espaço onde passam boa parte do seu tempo.
Aliás, alguns testemunhos ouvidos no âmbito dos recentes e mediatizados casos
mostram isso mesmo.
De facto, em muitos casos, designadamente, em comportamentos
autolesivos ou estados mais persistentes de tristeza e isolamento, pode ser
possível perceber sinais e comportamentos indiciadores de mal-estar. Estes
sinais não podem, não devem, ser ignorados ou desvalorizados. É também
importante que pais e professores atentos não hesitem nos pedidos de ajuda ou
apoio para lidar com este tipo de situações.
O sofrimento e mal-estar induzem uma espiral de
comportamentos em que os adolescentes causam sofrimento a si próprios o que
promove mais sofrimento num ciclo insuportável e com níveis de perplexidade,
impotência e sofrimento para as famílias também extraordinariamente
significativos.
Não, não tenho nenhuma visão idealizada dos mais novos, nem
acho que tudo lhes deve ser permitido ou desculpado. Também sei que alguns
fazem coisas inaceitáveis e, portanto, não toleráveis. Só estou a dizer que
muitas vezes a alma dói tanto que a cabeça e o corpo se perdem e fogem para a
frente atrás do nada que se esconde na adrenalina dos limites.
Alguns destes miúdos carregam diariamente uma dor de alma
que sentem, mas nem sempre entendem ou têm medo de entender.
Espreitem a alma dos miúdos, sem medo, com vontade de
perceber porque dói e surpreender-se-ão com a fragilidade e vulnerabilidade de
alguns que se mascaram de heróis para uns ou de bandidos para outros,
procurando todos os dias enganar a dor da alma.
Eles não sabem, eu também não, o que é a alma. Um
adolescente dizia-me uma vez, “dói-me aqui dentro, não sei onde”.
Muitos pais, mostra-me a experiência, sentem-se de tal forma
assustados que inibem um pedido de ajuda por se sentirem impotentes e
perplexos.
O resultado de tudo isto pode ser trágico e obriga-nos a uma
atenção redobrada aos discursos e comportamentos dos adolescentes e dos
jovens."
Desculpem a insistência nestas questões, mas é necessário.
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