domingo, 19 de fevereiro de 2012

UM DIA CANSAMO-NOS DE SER BONS RAPAZES

Em pouco tempo temos alguns episódios que, apesar de frequentes noutras paragens, são relativamente raros entre nós embora também não inéditos. O Presidente da República foi vaiado em Guimarães, cancelou uma visita à Escola António Arroio por razões de segurança, incompreensivelmente temeroso de uma manifestação de estudantes e hoje o Primeiro-ministro foi vaiado e insultado em Gouveia. Curiosamente, o Público noticia hoje que aumentou 20% o número de cidadãos que pede pela primeira vez licença para uso de arma, estando também alta a abertura de armeiros.
Estas notícias não são simpáticas mas, como o povo diz, são "fruta da época". As sucessivas e pesadíssimas medidas, chamadas de austeridade, conjugadas com as dificuldades decorrentes da própria situação económica estão a colocar a resistência de muitas pessoas nos limites ou para além dos limites, como o próprio Cavaco Silva já referiu. O desemprego, noticia-se hoje está a um nível recorde, 14%, e prevê-se o seu crescimento o que representa uma fortíssima ameaça à dignidade das pessoas e potencia o risco de insegurança.
Por outro lado, e do meu ponto de vista de forma muito grave, muitas afirmações de gente politicamente responsável têm sido profundamente infelizes, para ser simpático, mas na verdade insultuosas e inaceitáveis face aos problemas que colocam 2,7 milhões de portugueses à beira da pobreza e exclusão. Os exemplos são muitos, o caminho é empobrecer, emigrar é um saída, não se queixem, não estão bem mudem-se, etc., quando, simultaneamente, o estado e muitas figuras continuam a promover gastos e a usufruir de mordomias e rendimentos que não se compreendem e aceitam.
Tudo isto gera um caldo de cultura em que se corre o risco de diluir os brandos costumes com que nos costumam identificar. Como o povo diz, quem semeia ventos, colhe tempestades".
Não sei se poderemos afirmar que se estará a assistir a uma lenta mas firme mudança passando de um elogiado comportamento resignado, a uma fase de comportamento indignado e, eventualmente a uma fase de comportamento activamente revoltado, mas algo parece estar a alterar-se. De facto, somos reconhecidamente um país de brandos costumes, dizem. Não abusamos da violência e quando o fazemos é no recato do lar, quando muito, no quintal ou num desaguisado de trânsito, nada que possa configurar violência pública ou convulsão social graves. A nossa violência, é uma violência de proximidade.
Somos mesmo um povo tranquilo e de brandos costumes, uma das apreciações que os estrangeiros quase sempre referem como característica dos portugueses.
A questão é que, como dizia Camões, todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. Um dia cansamo-nos de ser bons rapazes.

2 comentários:

Luis disse...

Devo confessar que a tentativa do Passos Coelho em dialogar com os manifestantes mostrou uma certa coragem, sentido de estado, e mesmo bom senso. Faz-me lembrar aquele episódio do imperador Trajano em que ansioso em partir para a guerra na Dácia e sem grande paciência, diz a uma mulher que reclamava justiça para o seu filho morto que esperasse até ele voltar, ao que ela respondeu sem grandes cerimónias que ele podia não voltar de todo e em qualquer caso era o dever dele escutar os seus cidadãos. Isto fez com que o imperador, voltasse atrás, desmontasse do cavalo e escutasse com toda a atenção a mulher: o dever do imperador está primeiro para com os seus cidadãos, sejam eles quais forem.

A diferença disto para o nosso PM, apesar das boas intenções, foi que Trajano tinha realmente sentido de estado e de dever para com os seus cidadãos, e por isso escutou a mulher, resolveu o problema. Já o nosso PM tem sentido... de partido, ele até pode escutar mas se não for no sentido da retórica oficial entra-lhe por um ouvido e sai pelo outro: não é de esperar que ele resolva seja o que for. Devo dizer que isto não é apanágio exclusivo do Pedro Passos Coelho mas sim do nosso sistema político e se outro partido, outro PM lá estivesse não seria diferente.

Nos dias que correm, quando se esforçam por mostrar que Portugal não é a Grécia talvez conviesse disfarçar que os sistemas políticos com todos os seus vícios e defeitos, compadrios, nepotismo, tráfico de influências, são incrívelmente parecidos e talvez fosse boa ideia começar por se mudar isso para que não sigamos o caminho dos gregos.

Zé Morgado disse...

Luís, mais do que para os sistemas políticos, creio que a questão remete mais para o modelos de "desenvolvimento" e para a arquitectura ética (a falta dela) desses modelos. E, já agora, de muitos que os servem e deles se servem.