segunda-feira, 4 de julho de 2011

O PRIMEIRO DIA

Está decidido, hoje não acordo. O telefone vai tocar e tocar e eu não acordo. Não me apetece, não quero acordar.
Não quero levantar-me com a sensação de que ainda mal tinha começado a dormir e já vou ter que sair da cama.
Não me apetece andar à pressa, despachar um iogurte e correr para o autocarro. Não me apetece sair do autocarro e correr um bocado para arranjar um lugar sentado no comboio. Com um bocado de sorte arranjo lugar ao pé de alguém que vai a ler o jornal, dá para espreitar as gordas. Mas já ninguém compra jornais. Vão todos a dormir ou com auscultadores na cabeça para terem a certeza de que não ouvem os outros infelizes. Não, hoje não quero acordar.
Não me apetece entrar no Central, ao lado do escritório, para a bica e ouvir o sacana do Silva a chatear-me por causa do Porto ter dado cabo do Benfica. Estou farto do riso dele, mas a bica ali é mais barata.
Hoje não acordo mesmo. Não vou aturar o Figueiredo a contar histórias dos filhos que são excelentes alunos e sempre a perguntar-me pelo meu Jorge. Ele sabe que o meu Jorge só me dá problemas na escola, já não sei o que fazer, nem eu nem a mãe. Mas o filho da puta do Figueiredo pergunta sempre, todos os dias, só para ficar com aquele ar de quem é superior e como se a culpa fosse minha.
Hoje não vou acordar. Não vou comer um panado duro e cheio de óleo mais um copo de branco, como todos os dias. Já não posso com o panado, mas um prato é muito caro, parece que vão aumentar outra vez as coisas e os impostos. Hoje não acordo e não vou ficar a saber mais notícias da política. Estou farto da política, quando estão de fora fazem tudo e resolvem tudo, quando estão lá, ficam todos iguais, quem se lixa é sempre o mesmo.
Não acordo. Não me apetece depois de um dia de merda voltar para casa, outra vez o comboio e o autocarro, ouvir as queixas dela por causa das colegas e dos miúdos que gritam um com o outro e desculpar-se à deita com a dor de cabeça do costume. E eu à espera, nem sei de quê.
Não, hoje não vou acordar, que se lixe tudo.
De repente, sobressaltado, ouviu o despertador. Cantava o Sérgio Godinho " ... hoje é o primeiro dia do resto da tua vida ...".

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