domingo, 17 de outubro de 2010

SR. POBREZINHO, TENHA PACIÊNCIA

Não deixa de ser uma coincidência curiosa estarmos ainda no rescaldo da apresentação da proposta do Governo de Orçamento Geral do Estado para 2011 e das suas consequências para as famílias no dia em que a agenda das consciências determina o Dia Internacional de Erradicação da Pobreza, e ainda em pleno Ano Europeu de Luta contra a Pobreza e Exclusão. Com cerca de dois milhões de cidadãos em risco de pobreza, 300 000 dos quais crianças, 650 000 desempregados e um terço das famílias com orçamentos encostados ao limiar de pobreza a situação está grave.
Como é habitual nos dias que em que a consciência se debruça sobre a problemática agendada, surge a retórica e mediatização dos problemas. Por um lado, tem a vantagem óbvia de chamar a atenção para essas matérias mas, por outro lado, permite a emergência de discursos e exemplos de atitudes voluntaristas muito mediatizadas, que numa lógica de proteccionismo de natureza caritativa, sendo naturalmente importantes em alguns aspectos, não questionam seriamente os modelos de desenvolvimento (!) e sistema de valores que verdadeiramente produzem a pobreza e a exclusão que se propõem combater, meritoriamente, aliás.
Neste contexto, lembrei-me de alguns episódios da minha infância que ainda agora me causam alguma perplexidade. Na zona onde na altura habitava, era relativamente frequente a aparecerem pessoas a bater à porta para, numa humilhante circunstância, pedir esmola, o mais degradante dos pedidos, que aliás começa a reaparecer. Nessa altura, sem a actual paranóia securitária, ainda eram as crianças que acudiam a ver quem era. Eu assim fazia. E depois de verificar que era “um pobrezinho” (o tal tranquilizante fórmula no diminutivo a que já me referi no Atenta Inquietude) avisava a minha mãe. Sem eu nunca conseguir entender com critérios, ela decidia dar ou não dar esmola, em dinheiro ou em géneros. Mas a minha grande perplexidade, que se mantém até hoje, tem a ver com o facto de que, quando decidia não ser caridosa, a minha mãe mandava-me de volta para dizer ao pobrezinho “tenha paciência”. Devo dizer que ainda hoje esta memória me deixa embaraçado. Então o homem, ou mulher, não tem que comer, não tem trabalho, não leva ajuda ou apoio e ainda tem que ter paciência. É extraordinário como até como caridade se oferecia conformismo. E o que hoje me fez lembrar esta história foi exactamente isso, a normalidade conformista da pobreza e da exclusão.

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