terça-feira, 10 de dezembro de 2019

ASSÉDIO, ABUSO E VIOLÊNCIA ENTRE UNIVERSITÁROS


São hoje divulgadas as conclusões de um trabalho “Violência Sexual na Academia de Lisboa — Prevalência e Perceção dos Estudantes", realizado pela Federação Académica de Lisboa entre 2018 e 2019 com a colaboração das instituições Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), Quebrar o Silêncio e União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR).
De 955 respostas de alunos do ensino superior com uma média de 21 anos de idade os indicadores são preocupantes mas não surpreendentes.
A violência física envolvendo abuso, coacção e violação a situação menos reportada ainda que 34,2% dos inquiridos “afirmaram experienciar crimes relacionados, dos quais 12,2% demonstram que ocorreu mais do que uma vez”.
Os contactos físicos íntimos e indesejados ou a coacção para actos sexuais que envolvam penetração sem consentimento são as situações com maior número de casos referidos.
Agrupando as situações referidas em três dimensões, violência sexual física, emocional ou assédio, os episódios de violência emocional são de maior prevalência entre os estudantes.
Cerca de 80% dos inquiridos, estudantes universitários, refere já ter experienciado comentários provocatórios de natureza sexual ou olhares incomodativos com impacto emocional e 55% refere ter vivido este tipo de situações.
De registar que 61,4% relatou episódios vitimização sexual, também afirmou já ter sido vítima de assédio sexual, presenciais como exibicionismo, por exemplo através de contactos telefónicos, mensagens ou fotografias de cariz sexual não desejado. Dos inquiridos que reportaram este tipo de situações, 38,1% referiam ter acontecido mais do que uma vez.
É ainda relevante que 89% dos estudantes nunca não reportaram ter sido vítimas. Quando divulgam é às autoridades policiais, 39.5% ou amigos e familiares. Apenas11,63% dos casos foram denunciados à instituição de ensino que frequentam .
Finalmente é de referir que os agressores são sobretudo pessoas conhecidas,32,58% ou colegas, 23,29% e bastante relevante seja referido como agressor pessoal não docente das instituições, 16,74%, docentes, 2,18%, e amigos,11,44%). Cerca de 13% das agressões acontecem no contexto de relações amorosas.
Este conjunto de indicadores é, de facto, merecedor de análise séria.
Se considerarmos dados relativos a violência no namoro o estudo divulgado no início do ano também pela União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) “Violência no Namoro 2019” a preocupação avoluma-se.
O número de jovens, que namoram ou já namoraram que refere ter sofrido pelo menos uma forma de violência por parte do parceiro(a) é de 58% sendo que em 2018 era de 56%. Um dado ainda mais inquietante é manutenção de taxa dramaticamente elevada de jovens que que entendem estas práticas como “normais”, 67% no inquérito deste ano e 68,5% no estudo anterior.
Os comportamentos considerados envolvem difamação, o recurso às redes sociais para chantagear o outro, o hábito de intromissão no telemóvel ou nos bolsos, as agressões físicas e a coacção para práticas sexuais não desejadas, etc.
Um outro trabalho divulgado em 2018, “Violência no Namoro em Contexto Universitário: Crenças e Práticas”, promovido pela Associação Plano i mas envolvendo apenas jovens e jovens adultos com frequência ou formação universitária” está em linha indicadores do trabalho desenvolvido pela UMAR, 54,7% dos jovens em Portugal já sofreram pelo menos um acto de violência no namoro. Sublinho que estamos a falar de estudantes universitários o que torna tudo ainda mais preocupante.
O que ainda me parece mais dramático é a manutenção sem grandes alterações destes indicadores ao longo dos anos o que talvez ajuda a perceber como a violência doméstica parece indomesticável.
Em Fevereiro o Governo divulga uma campanha, #NamorarMemeASério, com o objectivo de eliminar a violência no namoro identificando as suas diferentes forma e o seu entendimento como “natural”.
Os dados convergem no indiciar do que está por fazer em matéria de valores e comportamentos sociais. Acresce que boa parte das situações de abuso não são objecto de queixa.
Este conjunto de dados é preocupante, gostar não é compatível com maltratar ou abusar, mas creio que não é surpreendente. Os dados sobre violência doméstica, abusos e assédio em adultos que permanecem indomesticáveis deixam perceber a existência de um trajecto pessoal anterior que suporta os dados destes e de outros trabalhos. Aliás, nos últimos anos a maioria das queixas de violência doméstica registadas pela APAV foram de mulheres jovens.
Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem mais lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores sociais presentes em cada época. De facto, e reportando-nos apenas aos dados mais gerais, é criticamente relevante a percentagem de jovens, incluindo estudantes universitários, que afirmam um entendimento de normalidade face a diferentes comportamentos que evidentemente significam relações de abuso e maus-tratos bem como à elevada prevalência de agressão sexual nas diferentes tipologias.
Como todos os comportamentos fortemente ligados à camada mais funda do nosso sistema de valores, crenças e convicções, os nossos padrões sobre o que devem ser as relações interpessoais, mesmo as de natureza mais íntima, são de mudança demorada. Esta circunstância, torna ainda mais necessária a existência de dispositivos ao nível da formação e educação de crianças e jovens; de uma abordagem séria e persistente nos meios de comunicação social; de um enquadramento jurídico dos comportamentos e limites numa perspectiva preventiva e punitiva e, finalmente, de dispositivos eficazes de protecção e apoio a eventuais vítimas.
Só uma aposta muito forte na educação, escolar e familiar, pode promover mudanças sustentadas nesta matéria. É uma aposta que urge e tão importante como os conhecimentos curriculares.

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