No Público encontra-se uma peça que aborda um problema que parece estar em crescimento, a agressão ou maus tratos de filhos jovens aos pais. Parece algo de improvável, duro de conhecer, mas acontece.
Algumas notas em torno da
educação familiar, o contexto em que podem nascer estes comportamentos.
Nos estilos de vida actuais, as
famílias expressam uma enorme dificuldade em compatibilizar o que ainda
entendem ser o seu papel educativo com a pressa e o pouco tempo que assumem ter
para o realizar. Tenho conhecido dezenas de pais que se sentem culpados e
fragilizados por entenderem que não têm para os filhos a disponibilidade de
tempo e atitude que julgam necessária. Esta culpa e fragilidade é, com
frequência, a base inconsciente que impede alguns pais de serem consistentes e
firmes na definição de regras e limites imprescindíveis às crianças, pois
“temem estragar” o pouco tempo que têm com elas devido a um eventual conflito.
Também sei que apesar da
proliferação de materiais que parecem querer assumir este papel não existem,
nem irão existir e ainda bem “manuais de instrução” para a educação familiar.
Também sabemos que as famílias
vão assumindo novas configurações que colocam novos desafios à parentalidade.
E sabemos que existem muitas
famílias que, transversalmente aos patamares sociais que sentem enormes
dificuldades e inquietações no dia-a-dia com os filhos.
A estas famílias, a estes pais e
a estas crianças e adolescentes, também nós que profissionalmente ou de outra
qualquer forma nos relacionamos com este universo, precisamos de estar mais
atentos, de ler, de perceber comportamentos, discursos ou omissões que sejam
sinais de mal-estar para crianças e pais.
Acontece ainda que os contextos
familiares são sempre específicos. Recordo a ideia de Tolstoi em “Anna
Karenina”, “as famílias felizes parecem-se todas. As famílias infelizes, cada
uma é-o à sua maneira”. Mais difícil, mas ainda mais importante se torna
estarmos atentos.
Demasiadas vezes intervimos para
responder, nem sempre conseguimos responder bem e intervimos para prevenir menos
que o necessário. Não pudemos ou não soubemos perceber o que estava a acontecer
ou para acontecer.
Considerando todo este universo e
não acreditando na educação perfeita da criança perfeita acredito num princípio
fundador da educação familiar, a promoção da autonomia e da auto-regulação
desde bebé, sim desde bebé, até …
sempre.
Neste sentido e de há muito,
sempre que penso ou falo de educação me lembro de um texto de Almada Negreiros
em que se afirma "... queria que me ajudassem para que fosse eu o dono de
mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de
si". Este enunciado ilustra, do meu ponto de vista, a essência da
educação, seja familiar ou escolar, em qualquer idade como, aliás, aqui
reafirmei recentemente.
Um processo educativo terá com
eixo estruturante a construção de gente que sabe tomar conta de si própria da
forma adequada à idade e à função, actividade ou contexto em que se encontra.
Este entendimento traduz-se num esforço contínuo de promover a autonomia das
crianças e jovens para que "saibam tomar conta de si próprios", no
fundo, a velha ideia de "ensinar a pescar, em vez de dar o peixe".
Parece-me fundamental que
adoptemos comportamentos que favoreçam esta autonomia dos miúdos e dos jovens.
No entanto, é minha convicção que por razões que se prendem com os estilos de
vida, com os valores culturais e sociais actuais, com as alterações das
sociedades, questões de segurança, por exemplo, estamos a educar os nossos
miúdos de uma forma que não me parece, em termos genéricos, promotora da sua
autonomia e auto-regulação.
Tenho também a convicção de que
os pais são, de uma forma geral, intuitivamente competentes. Mais
"asneira", menos "asneira", mais uma "festinha",
menos um "ralhete" e o caminho cumpre-se sem grandes problemas. Um discurso
social excessivo em torno da "psicologização" ou induzindo a ideia de
que só indo a uma "escola de pais" e lendo vários "manuais de
instruções" poderemos ser bons pais, pode ser mais fonte de inquietação
que de ajuda.
Ainda relativamente ao
comportamento de crianças e adolescentes, costumo dizer, independentemente das
idades, é preciso tomar conta deles porque … eles não sabem (não querem) tomar
conta de si. Isto levanta a questão central de, como na educação escolar e na
educação familiar estamos a lidar com uma das “irredutíveis necessidades das
crianças”, o estabelecimento de regras e limites. De facto, é minha convicção,
estamos a lidar mal com o não, o que promove miúdos e adolescentes a funcionar
com uma latitude excessiva face a regras e limites. No seu funcionamento diário
temos assim muitas crianças e adolescentes que, conhecendo, naturalmente as
regras e os limites do funcionamento, por exemplo em sala de aula, não são
regulam, por si, o seu comportamento obrigando a que, permanentemente, os
adultos, professores ou pais, tenham de proceder a essa regulação.
Temos, assim, que reajustar a
nossa acção, com uma particular atenção à definição das regras e dos limites
que, embora de forma flexível, são imprescindíveis ao bem-estar de crianças e
jovens.
É frequente ouvir dizer que as
crianças hoje em dia têm muitos mimos que as “estragam”, dito de outra maneira,
têm “afecto” a mais ou ainda “gosta-se de mais” das crianças. Estes discursos,
que alguns profissionais destas áreas também subscrevem, merecem-me alguma
reserva pois assentam, do meu ponto de vista, num equívoco.
De uma forma geral, as crianças
não terão afecto, mimos, a mais, poderão, isso sim, ser objecto de “mau afecto”
ou se quiserem, de "maus mimos". É essa falta de qualidade que lhes
poderá ser prejudicial. Não é mau por ser muito, é mau porque asfixia, é
tóxico, não deixa que os miúdos cresçam, distorce a percepção da criança de si
própria e do seu funcionamento, não permite o estabelecimento de uma relação
saudável, protectora e promotora da autonomia das crianças, uma condição
fundamental para o seu desenvolvimento positivo.
Insisto, as crianças não têm
elogios ou mimos a mais. Na verdade, oque se passa mais frequentemente é que
recebem “nãos” de menos. Na verdade, muitos adultos, pais, sendo quase sempre
capazes de dar os mimos, mostram-se muitas vezes incapazes de dar os “nãos”, de
estabelecer os limites e as regras que, como sempre digo, são tão necessárias
às crianças como respirar e alimentar-se. Estes “nãos” e para utilizar a mesma
terminologia, são outros mimos imprescindíveis na educação de crianças e
adolescentes nos seus diferentes contextos de vida.
As regras e os limites são bens
de primeira necessidade. Tal como com os afectos, nenhuma dieta educativa pode
prescindir de regras e limites.
Ficando sem “nãos” muitas
crianças, a coberto da ideia dos “mimos a mais”, transformam-se em pequenos
ditadores que infernizam a vida de toda a gente, a começar pela sua própria
vida. Não crescem saudavelmente.
Neste cenário complexo da
educação familiar, continuo a afirmar a necessidade de que os pais falem entre
si sobre as suas experiências, sem receio de que os julguem maus pais. Importa
inda que na relação com os técnicos ligados à educação as conversas não incidam
quase que exclusivamente sobre "se está bem ou mal na escola", mas
que se abordem as questões educativas também no contexto familiar de forma
aberta e serena. Os "manuais de instruções" não são a solução, são,
alguns, apenas mais uma ajuda.
Pais atentos, pais confiantes,
são pais que educam sem especiais problemas. Paradoxalmente, alguns
"manuais" e alguns discursos "científicos" podem aumentar a
insegurança e a ansiedade de alguns pais.
Desculpem o texto tão longo.
Sem comentários:
Enviar um comentário