Merece leitura atenta a
entrevista ao Público de Jenny Gibsond, professora da Faculdade de Educação da
Universidade de Cambridge. A extensa entrevista é centrada na importância do
brincar no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças sublinhando o impacto
em crianças problemáticas específicas também no domínio do desenvolvimento.
Não é novo este entendimento sustentado
pela evidência, mas importa insistir na questão, quer no ambiente escolar, quer
no contexto familiar.
No mesmo sentido retomo notas que
por aqui tenho escrito.
Durante os últimos anos,
provavelmente associada às mudanças nos estilos de vida e quadro de valores,
foi-se instalando a ideia de que o brincar é supérfluo, é perda de tempo, o
foco deve ser em trabalhar, em rendimento e resultados, em nome da competitividade
e da produtividade, condição para a realização e felicidade. Felizmente, nos
últimos tempos começam a ouvir-se muitas vozes contrariando este entendimento
como agora se regista ma entrevista de Jenny Gibsond. Os que por aqui vão
passando reconhecerão a frequência com que aqui refiro esta questão e esta não
será certamente a última.
Progressivamente foi-se retirando
aos miúdos o tempo e o espaço que muitos de nós na sua idade tínhamos e
empregam-nos horas sem fim nas fábricas de pessoas, escolas, chamam-lhes. Aí os
miúdos trabalham a sério, a tempo inteiro, dizem, pois só assim serão grandes a
sério, dizem também.
Às vezes, alguns miúdos ainda
brincam de forma escondida, é que brincar passou a uma actividade quase
clandestina que só pais ou professores “românticos”, “facilitistas”,
“eduqueses” ou “incompetentes” acham importante.
Muitos outros miúdos vão para
umas coisas a que chamam “tempos livres” e que, com frequência, de livres têm
pouco, onde, frequentemente, se confunde brincar com entreter e, outras vezes,
acontece a continuação do trabalho que se faz na fábrica de pessoas, a escola.
Numa história que já aqui contei
ouvi uma mãe que se mostrava muito aborrecida com o Atelier de Tempos Livres em
que o filho, gaiato de uns 10 anos, passa boa parte das férias, porque os
técnicos responsáveis "dão poucas actividades às crianças e depois elas
põem-se a brincar umas com as outras".
Também são encaixados em dezenas
de actividades fantásticas, com nomes fantásticos, que promovem competências
fantásticas e fazem um bem fantástico a tudo e mais alguma coisa.
É inquietante perceber alguma
visão que, de mansinho, se foi instalando também em muitos pais.
O brincar da infância vai-se
encurtando, algum dia os miúdos vão nascer crescidos para já não precisarem de
brincar. Importa ainda lembrar que também existem crianças, muitas, em que a
infância é encurtada, diria roubada, porque são mão-de-obra barata e coisificada.
Era bom escutar os miúdos. Se
lhes perguntarem, (das diferentes formas de fazer perguntas e ouvir respostas), vão ficar a saber que brincar é a actividade mais séria que realizam, em que
põem tudo o que são, sendo ainda a base de tudo o que virão a ser e a saber.
Em 2018 a Academia Americana de
Pediatria recomendou aos pediatras que na sua prática clínica prescrevam “tempo
para brincar”, um bem de primeira necessidade para o bem-estar dos mais novos
com impacto em diferentes dimensões.
Insistem que não se trata de uma
ideia “frívola” e os actuais estilos de vida de muitas famílias, por diferentes
razões, tornam ainda mais importante que se reafirme a importância de brincar.
No caso mais particular, mas
também essencial do brincar na rua sabemos que as questões da segurança e,
sobretudo dos estilos de vida e a mudança verificada nos valores e nos
equipamentos, brinquedos e actividades dos miúdos, o brincar na rua começa a ser
raro.
Embora consciente das questões
como risco, segurança e estilos de vida das famílias, creio que seria possível
alguma oportunidade de “devolver” aos miúdos o circular e brincar na rua,
talvez com a supervisão de velhos que estão sozinhos, as comunidades e as
famílias conseguissem alguns tempos e formas de ter as crianças por algum tempo
fora das paredes de uma casa, escola, centro comercial, automóvel ou ecrã.
Como muitas vezes tenho escrito e
afirmado, o eixo central da acção educativa, escolar ou familiar, é a
autonomia, a capacidade e a competência para “tomar conta de si” como fala
Almada Negreiros. A brincadeira, a rua, a abertura, o espaço, o risco (controlado
obviamente, os desafios, os limites, as experiências, são ferramentas
fortíssimas de desenvolvimento e promoção dessa autonomia.
Curiosamente, se olharmos às
nossas condições climatéricas, Portugal é um dos países com valores mais baixos
no tempo dedicado a actividades de ar livre, situação com implicações menos
positivas na qualidade de vida, nas suas várias dimensões, de miúdos e
crescidos.
Talvez, devagarinho e com os
riscos controlados, valesse a pena trazer os miúdos para a rua, mesmo que por
pouco tempo e não todos os dias.
É, pois, importante que todos os
que lidam com crianças, em particular, os que têm “peso” em matéria de
orientação, pediatras, professores, psicólogos, etc. assumam o brincar como uma
das “guide lines” para a sua intervenção.
Os mais novos vão gostar e
faz-lhes bem.