sábado, 22 de fevereiro de 2020

NUNCA MAIS ME SAI O EUROMILHÕES


Um trabalho desenvolvido por Pedro Morgado e Daniela Vilaverde da Escola de Medicina da Universidade do Minho e agora divulgado na The Lancet Psychiatry mostra como a relação de muitos apostadores portugueses com a vulgar “Raspadinha” tem vindo configurar um comportamento aditivo, indutor de sofrimento e mal-estar social e familiar. Dados de 2018 mostram os gastos nestas apostas foram de 1594 milhões de euros, 160€ por ano em média por apostador o que é superior ao que se verifica em muitos países, 14€ por em Espanha por exemplo. A imprensa está a dar alguma cobertura a esta questão o que levou mesmo a uma reacção da santa Casa em defesa do "jogo" sublinhando que é saudável.
A verdade é que para além do caso particular da Raspadinha tem aumentado de forma geral o investimento dos portugueses nos “jogos sociais” da Santa Casa e nas apostas online. Na verdade, o Totobola e depois o Euromilhões, o Totoloto, posteriormente a Raspadinha, fortemente apelativa pela possibilidade de retorno imediato e grande acessibilidade, e mais recentemente as apostas online estabeleceram-se firmemente na vida de muitos de nós e criaram mesmo uma imagem criadora de futuro que nos move, provavelmente e para muitas pessoas, a única imagem criadora de futuro.
Importa reconhecer que as imagens criadoras de futuro são imprescindíveis, tanto mais quando atravessamos tempos duros em que esperança também tem sido revista em baixa e ainda não recuperámos.
Creio que esta questão é parte importante desta equação e apesar de sabermos que a decisão de apostar é sempre de natureza individual, o contexto em que muita gente vive, os estilos de vida e quadro de valores são variáveis que também devem ser consideradas.
Por outro lado e em termos culturais também encontramos algumas pista para entendimento. Julgo poder afirmar-se que em muitos lares portugueses e em muitas conversas e talvez mais do que nunca, uma das frases mais ouvidas é “nunca mais me sai o Euromilhões, para deixar de trabalhar”. Muito provavelmente, cada um de nós já ouviu, pensou ou disse esta expressão alguma vez ou vezes que não será usada apenas pelos cidadãos com maiores dificuldades.
Acho curiosa a sua utilização. Entendo, naturalmente, a ideia subjacente à primeira parte. Um prémio de valor substantivo representaria, seguramente, a hipótese de acesso a um patamar superior de bem-estar económico, desejado, naturalmente, por toda a gente. O que de facto me parece mais interessante é o complemento “para deixar de trabalhar”. É certo que nem todas as expressões devem ser entendidas no seu valor “facial”, mas é também verdade que a recorrente afirmação deste desejo acaba por ilustrar a relação que muitos de nós estabelecemos com o lado profissional da nossa vida, isto é, “quero livrar-me dele o mais depressa possível”. Não será grave, mas é um indicador que possibilita várias leituras.
Neste contexto sabem qual é a minha inquietação para além dos riscos associados a comportamentos aditivos? É se os miúdos, considerando a agitação que vai pelo seu mundo “laboral” e os discursos dos adultos, desatam a pedir, se puderem, um aumento de mesada que lhes permita apostar no Euromilhões para … deixar de ir à escola.
Já estivemos mais longe.

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