domingo, 26 de janeiro de 2025

DO ENSINO PROFISSIONAL

 No Público de hoje encontram-se duas peças sobre o ensino profissional que merecem atenção e reflexão sobre a importância desta via de formação que ainda não é suficientemente reconhecida.

Com base no trabalho Como Valorizar o Ensino Secundário Profissional? Dilemas, Desafios e Oportunidades”, divulgado em 2024 pela plataforma Edulog, uma iniciativa da Fundação Belmiro de Azevedo, em colaboração com a Universidade de Aveiro, que na altura aqui comentei, refere-se que a representação sobre o ensino profissional continua a ser percebido como uma “via de segunda”, é procurado fundamentalmente por alunos com famílias menos escolarizadas, têm uma média de idades mais elevada e com resultados escolares mais baixos.

Portugal continua entre os dez países europeus com menos alunos no ensino secundário a frequentar cursos de vias profissionalizantes, 38,9%, e está longe de atingir o objectivo de ter 55% dos alunos em vias profissionalizantes definida na Estratégia Portugal 2030.

O ensino profissional providencia uma mais rápida entrada no mercado de trabalho com formação específica sendo também uma porta de entrada no ensino superior. No entanto, é de registar que em 2021, três quartos das vagas para alunos do ensino profissional ficaram por preencher.

Recordo que em 2022 o presidente da Associação Nacional de Escolas Profissionais afirmava existir uma taxa de empregabilidade a rondar os 90% e a possibilidade de o ensino profissional receber mais alunos para além dos actuais cerca de 40000. O relatório “Monitor da Educação e da Formação 2020” divulgado em 2021” pela Comissão Europeia referia uma taxa de empregabilidade de 76% em 2019 no ensino profissional.

Por outro lado, o Relatório ‘Avaliação do Contributo do PT2020 para a Promoção do Sucesso Educativo, Redução do Abandono Escolar Precoce e Empregabilidade dos Jovens’, produzido pelo consórcio ISCTE, IESE e PPLL, referia que no ensino profissional, 87 em cada 100 alunos completa o ensino secundário enquanto nos Cursos Científico-Humanístico serão 57. Quanto à empregabilidade, 54% dos alunos que completam os Cursos Profissionais encontram trabalho até seis a nove meses depois, face a 36% nos Cursos Científico-Humanísticos.

Estes indicadores mostram a importância que pode assumir o ensino profissional que, do meu ponto de vista, continua subvalorizado contrariamente ao que se verifica noutros países. Retomo algumas notas.

É imprescindível que ao sair do sistema educativo os jovens ao sair do sistema se encontrem equipados com qualificação profissional, quer ao nível do ensino secundário, quer ao nível do ensino superior que com o trabalho no âmbito do ensino politécnico tem condições para processos de qualificação mais curtos e mais diversificados. Assim, tenho registado os avanços realizados na diversificação da ofertam formativa verificada nos últimos anos apesar de alguns equívocos que geraram a percepção de uma formação de “segunda” dirigida aos “maus” alunos. Estes equívocos decorreram também dos discursos e procedimentos adoptados em muitas escolas e envolveram alunos e famílias.

No universo da educação em Portugal, depois de Abril de 74, instalou-se uma das mais generosas e ingénuas ideias que o tempo das utopias gerou, todos os indivíduos deveriam ter formação universitária. Esta ideia, de consequências devastadoras, quis combater a marca de classe presente nas escolhas entre liceu e escolas industriais e comerciais e, sobretudo, o baixo número de alunos que continuavam a estudar. O resultado foi criar um percurso que todos deveriam seguir e que só terminaria no fim do ensino superior universitário.

Com o aumento da escolaridade obrigatória e o aumento exponencial do número de alunos começou a perceber-se o erro trágico de um só percurso, muitos alunos “chumbavam” e abandonavam o sistema sem qualquer tipo de qualificação. Aliás, mesmo completando o ensino secundário, o 12º ano, as competências profissionais eram nulas, isto é, o 12º apenas ensinava, e mal, a continuar a estudar, coisa que, entretanto, era dificultada com a figura (lembram-se?) do "numerus clausus".

A partir de certa altura, timidamente, começaram a surgir ofertas de vias profissionais que, por má explicação política, foram sobretudo entendidas como uma estrada por onde segue quem não tem "jeito" ou competência para estudar. Neste contexto, famílias e alunos sentiram dificuldade em aderir a algo percebido como sendo de segunda. Entretanto, o nível inaceitável de chumbos e abandono no secundário continuava a envergonhar-nos.

Nos últimos anos, temos finalmente assistido a uma significativa diferenciação da oferta educativa, sobretudo depois do 9º ano, e essa oferta começa agora a perceber-se como uma alternativa à continuação de estudos mais prolongada, o ensino superior politécnico ou universitário. A oferta actual é bastante mais extensa o que tem contribuído para a descida muito significativa do abandono escolar. Por outro lado, o crescimento exponencial da oferta tem vindo a levantar algumas reservas face à natureza da oferta formativa e à qualidade da formação providenciada e ainda não se conseguiu alterar significativamente a perspectiva desvalorizada de muitos professores, alunos e famílias.

Como muitas vezes tenho afirmado é fundamental diversificar a oferta formativa, ou seja, promover a diferenciação de percursos. Só por esta via, me parece possível atingir um objectivo absolutamente central e imprescindível, todos os alunos devem aceder a alguma forma de qualificação, única forma de combater a exclusão e responder mais eficazmente à principal característica de qualquer sala de aula actual, a heterogeneidade dos alunos. O desenvolvimento do ensino profissional precisa de ir contrariando a ideia de que não se destina preferencialmente aos "que não servem" para a escola.

Precisamos, pois, de responder às exigências de qualificação, mas não podemos mascarar as estatísticas empurrando os “maus” para percursos que “recebem” um rótulo de “segunda” pois são percebidos por parte da comunidade como destinados aos menos dotados, “preguiçosos” ou com problemas vários.

Por outro lado, esta oferta deve ser adequada às comunidades educativas e dotada dos recursos e meios necessários bem como de maior e efectiva autonomia das escolas. Como tem sido referido em diferentes avaliações e pelas direcções escolares esta situação está longe de acontecer embora também se conheçam excelentes respostas

A diferenciação dos percursos é necessária e imprescindível, incluindo, obviamente, o ensino profissional tendo como potenciais destinatários todos os alunos como se verifica em boa parte dos sistemas educativos.

Devem estar disponíveis desde sempre dispositivos de apoio suficientes, competentes e oportunos a alunos e professores e formas de diferenciação que melhor permitam acomodar a diversidade dos alunos.

Finalmente, é fundamental para todo o sistema educativo, importa que existam dispositivos de regulação que sustentem e promovam a qualidade da desta indispensável oferta educativa dado o seu papel na construção de projectos de vida bem-sucedidos.

sábado, 25 de janeiro de 2025

A ROUPA ESTENDIDA

 Felizmente, a terra por aqui no monte está carregada de água, não dá para fazer qualquer trabalho. No entanto, como sempre dizia o Mestre Zé Marrafa que continua a resistir, mas numa situação que não merecia, num monte só temos não alguma coisa que fazer se não quisermos. É verdade Mestre Zé, mas hoje não dá mesmo, amanhã já farei a voltinha dos espargos, mas hoje foi só andar.

É que a minha cervical ganhou há dois dias uns acréscimos metálicos e, para não estar parado, coisa que estando na rua não me é fácil, dei umas voltas, sempre por cima da erva canária à beira dos caminhos para evitar o barro nas botas.

E se o monte está bonito assim cheio de água, com as cores bem vivas!

Às tantas, fiquei a olhar para uma roupa que tínhamos estendida numa corda entre duas oliveiras. Pode parecer assim um bocadinho estranho, mas gosto de ver um estendal numa casa no meio do campo. É uma prova de vida, um sinal de humanidade. Por coincidência, quando passei pelo lado de cima do monte também reparei que se via roupa a secar no monte que está mais perto do nosso. Mais um sinal de vida, são casas habitadas, com gente, com fumo a sair das chaminés à noite e nestes dias frios, cabaneiros.

Às tantas, certamente para me fazer sentir melhor, veio acompanhar-me uma das gatas residentes aqui no monte e caminhou à minha beira algum tempo. Trocámos umas palavras por umas miadelas e concordámos, sabe bem passear no monte. Somos amigos, algum comer a troco de alguns ratos caçados e da guarda quando não estamos.

Bom, agora, já depois da volta e de uma sopa de catacuzes, um tempinho para esta escrita. Talvez seja um pouco estranha num tempo de nuvens negras que nos inquietam, mas não podemos desistir. Trata-se de agradecer as graças que a vida ainda nos dá.

E são assim os dias do Alentejo.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

DUAS MÃES, DOIS PAIS

 Os Srs. Algoritmos do FB lembraram-me que em 22 de Janeiro de 2015 tinha escrito um texto, “Duas mães, dois pais” sobre a adopção de crianças por casais homossexuais. Na verdade, foi apenas uma das diversas abordagens que aqui realizei a esta questão e que, considerando os tempos que se vivem, vale a pena insistir.

Apesar da legislação que a partir de 2016 criou formalmente esse cenário, a sua relevância justifica mais uma abordagem e e fá-lo-ei enquanto for uma questão por resolver, não só do ponto de vista legislativo que já está ultrapassado, mas, sobretudo considerando que ainda se discute à luz de diferentes quadros de valores e, também, com base na agora tão referida evidência.

De facto, para além dos discursos anónimos ou identificados, mais ou menos equilibrados, mais ou menos boçais, mais ou menos ignorantes ou conhecedores, mais ou menos sofisticados e assentes, de forma aparente ou efectiva, em ciência, ficarão sempre os valores e a forma como se olha o mundo para sustentar muito do que continua a ouvir-se. Não será grave, pelo contrário, parece-me normal e legítimo, mas importa assumir que se trata de valores e não de ciência.

Aliás, lembro-me de Mário Cordeiro ou Rita Jonet tornando bastante claro o que é um discurso que parte do bem-estar dos miúdos e das pessoas e do que se sabe sobre isso e outro discurso que assenta em convicções, “acho que” e “duvida dos estudos”, que, sendo legítimo, não é ciência.

Lembro-me de quando ainda se discutia a permissão da adopção, a Ordem dos Advogados, era Marinho Pinto o bastonário, ter divulgado um parecer contra a proposta de permitir a co-adopção e adopção fundamentada na ideia de "família natural".

Nos tempos que correm em que se recuperam discursos e atitudes que julgávamos improváveis, vale a pena retomar o argumentário contra a adopção e que se organiza em torno de três grandes ideias, e que são a eventual dificuldade da criança em lidar com a sua orientação sexual, a vulnerabilidade psicológica e o risco de problemas de comportamento e também o risco acrescido de serem alvo de discriminação, por exemplo, em contextos escolares.

Como foi afirmado numa conferência realizada em Lisboa sobre a homoparentalidade, uma revisão de algumas dezenas de estudos sobre este conjunto de razões realizada pela Associação Americana de Psicologia, motivou uma resolução da Associação, em 2004, que não confirma nenhuma destas preocupações o que também transpareceu em alguns testemunhos expressos num trabalho que o Público divulgou na altura.

Parece ainda de registar que em 2010, a Associação Americana de Psiquiatria afirmava "apoiar as iniciativas que permitam a casais do mesmo sexo adoptar e co-educar crianças".

Também em 2014 a Ordem dos Psicólogos de Portugal referiu em parecer que "os resultados das investigações psicológicas apoiam a possibilidade de co-adopção por parte de casais homossexuais, uma vez que não encontram diferenças relativamente ao impacto da orientação sexual no desenvolvimento da criança e nas competências parentais". Na mesma linha foi divulgada mais recentemente uma outra revisão de estudos sobre esta matéria mostrando que a homoparentalidade não afecta o desenvolvimento das crianças.

Podemos também lembrar que a maioria das pessoas homossexuais terá sido educada em famílias heterossexuais, que existem muitas crianças com sérios problemas emocionais e vulnerabilidade psicológica, a experimentarem condições de mal-estar devastador integrando situações familiares heterossexuais ou, finalmente, que existem múltiplos casos de crianças discriminadas por variadas razões em contexto escolar o que não nos faz retirar, por princípio, as crianças da escola, mas, pelo contrário, combater a discriminação, sejam quais forem as circunstâncias.

Do meu ponto de vista e de uma forma propositadamente simples, a questão central é que o que faz com toda a certeza mal às crianças, é serem maltratadas e os maus tratos não decorrem do tipo de famílias, mas da competência humana e educativa, por assim dizer, de quem delas cuida, pais, mães ou educadores.

Quando as crianças são bem tratadas e crescem com adultos que gostam delas, as protegem e as ajudam a crescer, elas encontram caminhos para lidar com dois pais ou com duas mães.

Insisto, o que as crianças terão dificuldade em resolver é ter por perto adultos, heterossexuais ou homossexuais, que não gostam delas, que as maltratam, negligenciam, abandonam, etc. Isso é que faz mal às crianças.

O resto é uma discussão não conclusiva, assente em valores de que não discuto a legitimidade, mas que não podem ser confundidos com ciência ou com um discurso de defesa das crianças de males que estão por provar.

Parece bem mais importante defendê-las dos males comprovados e que todos os dias desfilam aos nossos olhos.

Muitas destas notas não são novas, também fizeram parte de um artigo de opinião no Público há já alguns anos. Enquanto for necessário, voltarei, insistindo.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

A ESPINHA

 Uma das coisas que muitas vezes ouvia ao meu pai, um homem bom, era a necessidade de mantermos sempre a coluna, ele chamava-lhe a "espinha", direita, em todas as circunstâncias. Era a sua designação para seriedade, sentido ético e de responsabilidade perante o outro, os outros.

Eu acho que ele não terá falhado no ensino, terei eu falhado na aprendizagem. E de vez quando sinto uma inveja enorme da quantidade de invertebrados que conheço, de gente sem espinha.

Essa gente que nunca tem problemas de coluna deve levar uma vida mais fácil, pelo menos, bem menos dolorosa. Não passam certamente pelo desconforto, por assim dizer, que de vez em quando sinto na minha “espinha” e que as avaliações determinaram necessitar de mais uma intervenção, a terceira. E eu que, errada ou ingenuamente, acreditava ter uma coluna razoavelmente direita.

Aconteceu ontem, venho com mais umas peças, terá corrido bem e espero continuar com a “espinha” direita por mais algum tempo e acompanhar o caminho dos netos e dos pais.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

POBREZA E DESEMPENHO ESCOLAR

 Com base em dados divulgados pelo Ministério da Educação relativos a 22/23, o Expresso tem um trabalho relativo ao número de alunos que é apoiado pela Acção Social Escolar.

Um terço dos alunos, 36%, do pré-escolar ao secundário, beneficiam deste apoio, 405891 alunos, ligeiramente abaixo do ano anterior, 407678.

No entanto, a descida observa-se nos apoios a alunos do secundário, nível de ensino em que subiu o abandono, dito de outra forma, os alunos que mais abandonam pertencem a agregados familiares de menor rendimento o que pode explicar o abaixamento do número de alunos com apoio.

Acresce que na educação pré-escolar o número de alunos com apoio subiu 3% verificando-se o valor mais elevado dos últimos cinco anos. No 1º e 2º ciclo também a subida se verifica com mais de 40% dos alunos a beneficiar de apoio social.

Recordo ainda que dados do INE mostram que a "taxa de risco de pobreza infantil em 2023 foi de 20,7%", correspondendo a um regresso aos valores de 2017, o que coloca as crianças como o "grupo etário que regista a maior taxa de risco de pobreza e também aquele em que se observa uma evolução mais desfavorável deste indicador",

Os dados são inquietantes, está bem estudada a relação entre a situação económica, laboral e nível de literacia familiar no trajecto pessoal sendo que, sem surpresa, são estes alunos que, globalmente, mais dificuldades sentem no desempenho escolar bem sucedido.

Também sabemos que a pobreza tem claramente uma dimensão estrutural e intergeracional, as crianças de famílias pobres demorarão até cinco gerações a aceder a rendimentos médios, um indicador acima da média europeia.

A escola é certamente uma ferramenta poderosa de promoção de mobilidade social, mas, por si só, dificilmente funciona como elevador social.

O impacto das circunstâncias de vida no bem-estar das crianças e em aspectos mais particulares como o rendimento escolar ou o comportamento é por demais conhecido e essas circunstâncias constituem, aliás, um dos mais potentes preditores de insucesso e abandono quando são particularmente negativas, como é o caso de carências significativas ao nível das necessidades básicas.

É este o desafio que enfrentam as políticas públicas de diferentes sectores.

Em nome do futuro, não podemos falhar.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

UMA FAMÍLIA DIFERENTE

 Para variar, uma história com uma família diferente.

Esta família não é como as outras que passam o tempo a gritar uns com os outros. Esta família toma as suas refeições de forma muito tranquila e silenciosa a ouvir o que passa na televisão. Fora das refeições e quando estão em casa, o pai está na sala com o telemóvel com a televisão em fundo, a mãe na cozinha enredada na lida da casa e o filho no quarto de fones e ecrã, não se ouvem.

Esta família não é como as outras que são desorganizadas e sem rotinas. Esta família tem as tarefas muito bem distribuídas, a mãe faz tudo, o pai dá ordens e faz perguntas e o filho faz nada.

Esta família não é como as outras que são consumistas e desperdiçam. A mãe está desempregada, o pai ganha pouco mais que o salário mínimo e o filho tem apoio social escolar para parte dos gastos com o estudo.

Esta família não é como as outras que têm televisões por toda a casa. Esta família só tem uma televisão, um LCD dos mais baratos comprado a crédito e um pc no quarto do filho comprado a um colega do pai.

Esta família não é como as outras em que alguns elementos gostam pouco de trabalhar. O pai, de vez em quando, consegue uma baixa médica para fazer uns biscates e arranjar mais algum dinheiro para compor o orçamento e chegar a uns "luxos", como o LCD.

Esta família não é como as outras que andam sempre a incomodar os professores dos filhos. Esta família raramente vai a reuniões na escola.

Esta família não é como as outras que acham que os filhos são excelentes e os professores é que não são competentes. Esta família acha que o filho não tem muito jeito para a escola, já o pai e a mãe também não tiveram.

Esta família não é como as outras que afirmam que "eles", os que governam é que têm a culpa de tudo. Esta família acha que os que governam são iguais aos que querem governar, "eles" são todos iguais.

Enfim, uma família diferente.

domingo, 19 de janeiro de 2025

A SUBVALORIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANIDADES

 Merece leitura atenta o texto de Carlos Ceia no Público, “Querem cancelar as humanidades?”, em que aborda a situação que tem vindo a acentuar-se de há uns anos para cá de desvalorização dos apoios à investigação na área das ciências sociais e das humanidades.

Este caminho de sobrevalorização das áreas STEM não é novo e os tempos que vivemos não auguram alteração da trajectória.

Em 2014, Devon Jensen, professor universitário com trabalho desenvolvido sobre o papel das universidades, a sua relação com os governos e o mundo económico e empresarial, apresentou em Lisboa uma conferência com a estimulante interrogação como título, “Is Higher Education Merely a Servant of the Economy?”.

Em entrevista ao Público Devon Jensen sublinhou a importância do desenvolvimento do ensino superior e da investigação, acentuando o papel nuclear da formação e investigação nos domínios das ciências sociais e das humanidades.

Foi há mais de 10 anos e a trajecória não se inflectiu, pelo contrário, acentuou-se esta desvalorização.

Tendo estado nas últimas décadas ligado à academia e à área das ciências sociais e humanidades, ouvi e senti com frequência, os discursos de desvalorização vindo de colegas, sobretudo das áreas STEM.

Em termos institucionais as políticas públicas em matéria de ensino superior e investigação têm dado o seu contributo para o cenário actual.

sábado, 18 de janeiro de 2025

PAIS, ESCOLA, SUCESSO ESCOLAR E EDUCATIVO

 Creio que é sempre oportuno retomar a reflexão sobre o papel e o contributo dos pais no sucesso educativo e escolar dos miúdos. Melhorar este papel e a relação dos pais com a escola não é tarefa fácil e não é problema resolvido em nenhum sistema educativo.

Não é fácil, por um lado pelos estilos de vida modernos, sobretudo em zonas urbanas, e, por outro lado, pela inerência das dificuldades, conteúdos curriculares e cultura escolar desconhecidos por muitos pais e encarregados de educação, pelas solicitações e motivações presentes na vida dos miúdos, etc.

De qualquer forma parece inegável a necessidade de o envolvimento dos pais e a qualidade desse envolvimento.

É reconhecido o afastamento dos pais traduzido, por exemplo, na baixa participação em reuniões. Como causas referem-se as dificuldades em termos de legislação e horários laborais e algumas atitudes de menor empenhamento ou mesmo desinteresse.

Defendo de há muito que em sede de Concertação Social seria de avançar com propostas de alteração legislativa, sobretudo, na organização horária do trabalho que poderia, essa sim, ter impacto na disponibilidade dos pais. Não me parece impossível que em muitas profissões os tempos de trabalho pudessem ter outra distribuição permitindo mais tempo com os filhos e menos tempo destes na escola.

No entanto, julgo de considerar outros aspectos. Costumo afirmar que os pais, exceptuando os pais negligentes, que existem, e vão menos à escola ou não aparecem mesmo, se podem dividir em dois grupos, os pais que não alcançam a escola e os pais que a escola não alcança. Os primeiros são os que entendem consciente, ou inconscientemente, que a sua presença é irrelevante, não sabem discutir a escola, a escola é que sabe e decide sobre os filhos. Os outros, são os pais para quem o discurso produzido pela escola sobre os seus filhos os leva a afastarem-se progressivamente. A experiência mostra que quando as crianças são mais pequenas, pré-escolar 1º ciclo, os pais aparecem e começam a afastar-se sobretudo a partir do 2º ciclo, o que tem como razão principal o crescimento dos filhos o que, evidentemente, não explica esse afastamento.

Neste quadro, creio que se o desejo de maior envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos for mais do que uma retórica, o sistema, através dos modelos de funcionamento e recursos das escolas, deverá introduzir alguns ajustamentos. Redefinição do papel dos Directores de Turma, peças nucleares no sucesso educativo e muitas vezes entregues a tarefas quase administrativas, definição de dispositivos de apoio e mediação com técnicos e professores, competentes e suficientes que possam ir ao encontro dos pais que a escola não alcança.

Existem tantas horas de professores adjudicadas a trabalho não docente e a iniciativas, projectos, experiências avulsas e descontextualizadas que seriam certamente mais úteis neste contexto, relação escola e pais. Mudança nas formas e suporte do contacto entre a escola e a família, ou seja, por exemplo, tipologia e conteúdos das reuniões de pais. Utilização concertada do papel das Associações de Pais como mediadores entre a escola e os pais que não vindo à escola, também não são dos que integram as Associações e que, em muitas circunstâncias têm pouca capacidade real de representação dos pais.

O espaço é curto, mas creio que no actual quadro seria possível ir um pouco mais longe na tentativa imprescindível de maior envolvimento dos pais na vida escolar dos miúdos, questão em mudança, sempre, e que obriga a uma contínua reflexão sobre os papéis e os processos e formas de envolvimento.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

O OLHAR DE JOANA

 Com o tempo destinado a fabricar um pedaço de terra com o tractor antes que venha mais chuva, recupero uma história antiga. Diz assim.

Um destes dias, a professora Isabel que trabalha na escola onde está o Professor Velho, aquele que já não dá aulas, está a biblioteca e fala com os livros, convidou-o para ir à sala dela falar com os miúdos de como era a escola noutros tempos. O Professor Velho adora contar histórias, acha mesmo que é umas das vantagens de ficar velho, ter histórias para contar e passou a manhã com os miúdos, mesmo ao intervalo andava por lá no meio dos jogos e brincadeiras. Nessa tarde pediu à professora Isabel que passasse pela biblioteca para conversarem sobre a visita.

Olá Velho, então gostaste da minha turma?

Foi bonito, como sabes gosto de contar histórias e eles, ainda bem para mim, parecem gostar de ouvir histórias e participar nas conversas.

Pois é, gostam mesmo de falar e ainda estão a aprender a não falar todos aos mesmo. Às vezes não é fácil.

Com o tempo e com persistência eles aprendem, são inteligentes e percebem que é melhor assim. Já reparaste naquela menina com o cabelo e os olhos pretos, pequenina, que se chama, creio, Joana?

Já Velho, estava para um dia destes te falar dela. Está sempre calada, desvia o olhar quando chego ao pé dela, está quase sempre só. Porque perguntas?

Também me pareceu, como referes, que a Joana é uma menina que parece triste. Desde que cheguei à sala que o olhar dela me chamava. Procurei estar atento e durante o intervalo tentei aproximar-me e conversar.

Não parece fácil, ela foge um bocadinho.

Não fugiu, conversámos sobre uma história que eu tinha contado, mas fiquei preocupado. A Joana tem uma sombra?

Uma sombra?

Sim Isabel, uma sombra, uma sombra grande no olhar. Não consegui perceber o que é, mas ela carrega uma sombra grande que a assusta, que a faz ficar com medo. Quando a gente espreita nos olhos dos miúdos consegue, às vezes, ver as sombras da vida deles. Temos que descobrir qual a sombra do olhar da Joana, para a ajudar a perder o medo.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

PELA NOSSA SAÚDE

 No Expresso encontra-se um trabalho que merece leitura e reflexão. Nas últimas décadas e de forma cada vez mais acentuada tem vindo a subir a incidência de miopia afectando desde logo os mais novos.

Os estudos realizados apontam para que este trajecto possa estar associado aos estilos de vida actuais, pouco tempo passado com luz natural que também está relacionado com a entrada cada vez mais cedo das crianças em instituições educativas, assim como se tem verificado o aumento do tempo de permanência diário. Também se verifica uma relação causal associando o aumento da incidência da miopia a um tempo excessivo de exposição a ecrãs, matéria que aqui tenho abordado frequentemente.

Sabemos como os estilos e modelos da vida actual, a organização do trabalho, colocam graves dificuldades às famílias para assegurarem a guarda das crianças em horários não escolares ou “obrigarem” a que desde muito cedo as crianças frequentem creches e jardins de infância.

A resposta tem sido prolongar a estadia dos miúdos nas instituições escolares alimentando o que considero um dos vários equívocos no universo da educação, a afirmação de uma visão de “Escola a Tempo Inteiro” em vez de “Educação a Tempo Inteiro”. O modelo é bem recebido por muitos pais e tolerado por muitos outros por falta de alternativas. No entanto e tal como o faço desde 2006, algumas notas a pensar, sobretudo, nos miúdos e nas respostas e no que se lê no Expresso sobre alguns efeitos.

Para além da reflexão sobre o que acontece nesse tempo de permanência na escola e tal como se verifica noutros países, seria imperioso que se alterassem aspectos como a organização do trabalho, também já com algum caminho feito noutras geografias, que minimizassem as reais dificuldades das famílias recorrendo, por exemplo e quando possível, a teletrabalho ou à diferenciação nos horários de trabalho que em alguns sectores e profissões é possível.

É preciso um esforço enorme, equipamentos e recursos humanos suficientes e qualificados para que não se corra o risco de transformar a escola numa “overdose” pouco amigável para muitos miúdos em várias dimensões do seu bem-estar. As dúvidas relativamente a esta questão são muitas.

É verdade que existem boas práticas neste universo, mas também todos conhecemos situações em que existe a dificuldade óbvia e esperada de encontrar recursos humanos com experiência e formação em trabalho não curricular. Acresce que boa parte das escolas, como é natural, têm os seus espaços estruturados (e por vezes saturados) sobretudo para salas de aula. Espaços para prática de actividades desportivas ou de ar livre, expressivas, biblioteca, auditórios, etc., etc., a existirem, dificilmente poderão ser suficientes para uma ocupação da população escolar alternativa à sala de aula.

A verdade é que, no nosso caso, vivemos num país em que o clima é amigável para actividades no exterior, mas num país de crianças e adolescentes sedentarizados, com horas sem fim trancados em ecrãs ou envolvidos em passeios familiares pelos corredores fresquinhos ou quentinhos conforme a estação, dos grandes centros comerciais.

Não tem de ser assim. O bem-estar e a saúde de toda a gente agradeceriam a mudança.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

BARREIRAS E A SEGUIR ... BARREIRAS

 No Público encontra-se uma peça muito elucidativa sobre as dificuldades enormes sentidas pelas pessoas com deficiência, colocando uma especial ênfase no acesso à habitação e na mobilidade. Deveria ser de leitura obrigatória para os decisores em matéria de políticas públicas.

Lamentavelmente não é nada de novo, temos falhas notórias na fiscalização e cumprimento das disposições legais relativas às questões das acessibilidades e barreiras nos edifícios, mobiliário urbano e acessibilidade em geral. As normas de construção não são respeitadas, mantendo-se em edifícios novos a ausência de rampas ou a sua existência com desníveis superiores ao estabelecido, constituindo, assim, um obstáculo e um risco.

O resultado é a existência de muitos serviços públicos e outro tipo de equipamentos de prestação de serviços com barreiras arquitectónicas intransponíveis, a que os cidadãos com deficiência só podem aceder com ajuda de terceiros e, mesmo assim, com dificuldade.

Acresce, a peça refere isso, as dificuldades criadas ao arrendamento de casas a pessoas com deficiência, o preconceito é grande.

Os transportes públicos de diferente natureza também colocam enormes problemas na acessibilidade por parte de pessoas com mobilidade reduzida.

Na verdade, como tantas vezes aqui refiro, a vida de muitas pessoas com deficiência é uma constante e infindável prova de obstáculos, muitas vezes intransponíveis, que ampliam de forma inaceitável a limitação na mobilidade que a sua condição, só por si, pode implicar. No entanto, muitos dos obstáculos não têm a ver com barreiras físicas, remetem para a falta de senso, incompetência ou negligência com que gente responsável(?) lida com estas questões.

Na verdade, boa parte dessas dificuldades decorre do que as comunidades e as suas lideranças, políticas por exemplo, entendem ser os direitos, o bem comum e o bem-estar das pessoas, de todas as pessoas.

Também para as crianças com necessidades especiais e respectivas famílias a vida é muito complicada face à qualidade e acessibilidade aos apoios educativos e especializados necessários apesar do empenho e profissionalismo da maioria dos profissionais que trabalham nestas áreas.

Como é evidente, existem muitas outras áreas de dificuldades colocadas às pessoas com deficiência, designadamente apoios sociais, qualificação profissional e emprego, em que a vulnerabilidade e os riscos de exclusão e pobreza são elevados traduzido em taxas de desemprego entre pessoas com deficiência muitíssimo superiores à verificada com a população sem deficiência.

Uma referência ainda ao que deve ser um princípio não negociável, a inclusão em todos os domínios da vida das comunidades.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

A HISTÓRIA DO PÉ LEVE

 Não sei se já vos contei a história do Pé Leve. Foi um companheiro de escola de há muitos anos, no tempo em que a escola se chamava primária e que só era obrigatório andar por lá quatro anos. O Pé Leve ganhou esse nome, que me fez esquecer o verdadeiro, por uma particularidade, não parava um minuto. Era o miúdo mais agitado que conhecíamos, sempre em movimento e com uma energia que parecia não ter fim.

Dava ideia, por vezes, que partia antes de chegar. Mudava de actividade, brincadeira ou conversa, sem cessar exasperando-nos. No entanto, não nos conseguíamos aborrecer com o Pé Leve, era pequeno, quase sempre a rir, parecia impossível que alguém se zangasse com ele.

Mas havia. A nossa professora, a D. Conceição, senhora à beira da reforma e com a paciência também já a pedir descanso, não aguentava o andamento, por assim dizer, do Pé Leve. Perguntava-lhe centenas de vezes porque não assentava ele, a seguir zangava-se, ralhava mesmo a sério e, aqui para nós, às vezes puxava mesmo pela régua e as mãos do Pé Leve ganhavam uma cor diferente. Os olhos ficavam com água, mas na boca continuava um sorriso. Nada fazia alterar o comportamento do Pé Leve. Não se esqueçam que ainda não tinham inventado a hiperactividade.

Como a escola naquele tempo era curta e poucos de nós continuávamos a estudar, eu e alguns outros perdemos o rasto ao Pé Leve.

Passados uns anos, já adultos, estávamos dois ou três do velho grupo à conversa e alguém informou que tinha sabido que o Pé Leve tinha terminado a sua viagem.

Ninguém disse nada por algum tempo, mas acho que todos pensámos que só assim o Pé Leve poderia assentar.

É a vida dos Pé Leves, de alguns.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

AGRESSÃO A DOCENTES, MAIS UMA VEZ

 Mais um episódio. Numa escola em Vila Real duas professoras foram agredidas por um aluno do 1.º ciclo. Não é muito frequente que situações desta natureza envolvam alunos do 1.º ciclo, mas são recorrentes as situações de agressão envolvendo alunos ou encarregados de educação(?!).

Andam negros os tempos para os professores. Repetindo-me, sempre que escrevo sobre esta questão, agressões ou insultos a professores e dadas as circunstâncias faço-o com regularidade, é sempre com preocupação e mal-estar, mas é preciso insistir pelo que retomo notas já aqui referidas, não me parece necessário encontrar outras palavras para tratar a mesma questão.

As notícias sobre agressões a professores, cometidas por alunos ou encarregados de educação, continuam com demasiada frequência embora nem todos os episódios sejam divulgados. Aliás, são conhecidos casos de direcções que desincentivam as queixas dado o “incómodo” e “publicidade negativa” para a escola que trará a divulgação e ouvem-se discurso de relativização.

Os testemunhos de professores vitimizados são perturbadores e exigem atenção e intervenção.

Cada um dos recorrentes episódios poderá ser um caso de polícia, mas não pode ser “apenas” mais um caso de polícia e julgo que, para além de ser notícia, importaria reflectir nos caminhos que seguimos.

Esta matéria, embora seja objecto de rápidos discursos de natureza populista e securitária, parece-me complexa e de análise pouco compatível com um espaço desta natureza.

Justifica-se uma breve reflexão em torno de três eixos: a imagem social dos professores, a mudança na percepção social dos traços de autoridade e o sentimento de impunidade que me parecem fortemente ligados a este fenómeno.

Já aqui tenho referido que os ataques, intencionais ou não, à imagem dos professores, incluindo parte do discurso de gente dentro do universo da educação que tem, evidentemente, responsabilidades acrescidas e também o discurso que muitos opinadores profissionais, mais ou menos ignorantes ou com agendas implícitas, produzem sobre os professores e a escola, contribuíram para alterações significativas da percepção social de autoridade dos professores, fragilizando-a seriamente aos olhos da comunidade educativa, sobretudo, alunos e pais. Também com demasiada frequência os discursos produzidos pela tutela sobre os professores que são parte do problema e não contributo para a solução.

Esta fragilização tem, do meu ponto de vista, graves e óbvias consequências, na relação dos professores com alunos e pais.

No entanto, importa registar que a classe docente é dos grupos profissionais em que os portugueses mais confiam o que me parece relevante.

Em segundo lugar, tem vindo a mudar significativamente a percepção social do que poderemos chamar de traços de autoridade. Os professores, entre outras profissões, polícias ou profissionais de saúde, por exemplo, eram percebidos, só pela sua condição de professores, como fontes de autoridade. Tal processo alterou-se, o facto de se ser professor, já não confere, só por si, “autoridade” que iniba a utilização de comportamentos de desrespeito ou de agressão. O mesmo se passa, como referi, com outras profissões em que também, por razões deste tipo, aumentam as agressões a profissionais da área da saúde, médicos e enfermeiros.

Finalmente, importa considerar, creio, o sentimento de impunidade instalado em Portugal de que não acontece nada, faça-se o que se fizer. Este sentimento que atravessa toda a nossa sociedade e camadas sociais é devastador do ponto de vista de regulação dos comportamentos, ou seja, podemos fazer qualquer coisa que não acontece nada, a “grandes” e a “pequenos”, mas sobretudo a grandes, o que aumenta a percepção de impunidade dos “pequenos”.

Considerando este quadro, creio que, independente de dispositivos de formação e apoio, com impacto quer preventivo, quer na actuação em caso de conflito, obviamente úteis, o caminho essencial é a revalorização da função docente tarefa que exige o envolvimento de toda a comunidade e a retirada da educação da agenda da partidocracia para a recolocar como prioridade na agenda política.

Definitivamente, a valorização social e profissional dos professores, em diferentes dimensões é uma ferramenta imprescindível a um sistema educativo com mais qualidade sendo esta valorização uma das dimensões identificadas nos sistemas educativos mais bem considerados.

É ainda fundamental que se agilizem, ganhem eficácia e sejam divulgados os processos de avaliação ou julgamento e a punição e responsabilização sérias dos casos verificados, o que contribuirá para combater, justamente, a ideia de impunidade.

domingo, 12 de janeiro de 2025

A "QUALIDADE DAS APRENDIZAGENS", DA CONJUNTURA À ESTRUTURA

 A divulgação do relatório “Estado da Educação 2023” do Conselho Nacional de Educação que aqui já referi sustentou uma apreciação do seu Presidente que se manifesta fortemente preocupado com a “qualidade das aprendizagens” dos alunos do ensino básico e do secundário com base nos resultados em avaliações externas, provas de aferição, exames nacionais e estudos internacionais.

Muitas vezes nos últimos anos aqui tenho referido esta questão, mas considerando uma outra dimensão, a discrepância destes resultados com os dados globais das avaliações internas traduzidas nos designados “percursos de sucesso”, completar cada ciclo no número de anos previsto.

O Professor Domingos Fernandes entende que “o país necessita de pôr em prática um programa especificamente orientado para melhorar a qualidade do ensino e das aprendizagens nos primeiros anos”.

Confesso que fico pouco tranquilo com esta ideia de mais um plano específico, o enésimo plano específico ensinar os professores a ensinar e ensinar os alunos a aprender.

Já não me consigo convencer a confiar em mais um plano. Como já tenho referido, entendo a necessidade de medidas de natureza conjuntural, por exemplo no caso específico da falta de professores, mas muito mais importantes e necessárias são medidas que tenham impacto em questões estruturais.

É certo que é mais fácil e mais conforme com os ciclos políticas mexer na conjuntura, elaborar mais um plano, mais uns projectos, mais umas acções de capacitação, mas é mais potente e eficaz analisar e ajustar medidas estruturais.

É claro que mudanças estruturais têm custos pelo que será de considerar, desde logo, a necessidade de investimento sério em educação, 6% do Produto Interno Bruto o que está definido pela UNESCO como meta para 2030.

Neste sentido e sem hierarquizar, julgo absolutamente necessário que as políticas públicas de educação assumissem como um eixo nuclear a valorização da carreira docente, dos professores.

Só esta valorização pode tornar a carreira docente atractiva e com um potencial de retenção e satisfação dos que nela se integram.

Esta valorização passa, evidentemente, pela valorização salarial, mas importa considerar também dimensões como a definição de modelos de carreira e de avaliação justos, simplificados e transparentes e promotores de estabilidade.

Importa que a valorização dos professores resista ao risco de “deskilling” ou desprofissionalização através de mudanças nas exigências da habilitação para a docência.

Importa que se definam dispositivos de apoio ao exercício profissional em contextos mais exigentes.

Importa que se desburocratize o exercício da docência com gastos brutais de tempo e esforça sem retorno pertinente. Sim eu sei, como dizia João dos Santos, que “mais difícil em educação é trabalhar de uma forma simples”, mas desburocratizar não é promover “facilitismo” é uma medida com impacto positivo em termo profissionais e pessoais.

Importa reflectir sobre modelos de governança das escolas mais adequados, competentes e participados.

Com real autonomia, com mais recursos e com modelos organizativos mais adequados e desburocratizados as escolas poderiam certamente fazer mais e melhor. que quem vem de fora numa passagem transitória, mais ou menos longa, mas transitória. Sim, tudo isto deveria ser objecto de escrutínio, regulação e avaliação também externa, naturalmente.

Escolas com mais auxiliares, auxiliares informados e formados podem ter um papel importante em diferentes domínios.

Directores de turma com mais tempo para os alunos e professores com menos alunos poderiam desenvolver trabalho útil em múltiplos aspectos do comportamento e da aprendizagem.

Psicólogos e outros técnicos em número mais adequado poderiam acompanhar, promover e desenvolver múltiplas acções de apoio a alunos, professores, técnicos e pais.

Mediadores que promovessem iniciativas no âmbito da relação entre escola, pais e comunidade seriam, a experiência mostra-o, um investimento com retorno.

Repetindo e sintetizando, os professores sabem como avaliar e identificar as dificuldades dos alunos. O que verdadeiramente é imprescindível é dotar as escolas de forma continua e estável dos recursos necessários para minimizar tanto e tão rápido quanto possível as dificuldades que identificam. Recursos suficientes para recorrer a apoios tutoriais ou ao trabalho com grupos de alunos de menor dimensão, apoios específicos a alunos mais vulneráveis, técnicos, psicólogos, por exemplo, num rácio que possibilite um trabalho multidimensionado como é exigido, etc., são essenciais e serão sempre essenciais. Torna-se também necessária a existência de dispositivos de regulação que sustentem o trabalho desenvolvido e de processos desburocratizados.

Julgo claro que mudanças neste sentido não são fáceis e que será sempre difícil um caminho de concordância generalizado, mas também tenho a convicção de que medidas conjunturais, mais positivas ou menos ajustadas, concebidas por ciclos políticos continuarão, apesar, de alguns ajustamentos, a “mexer” na conjuntura e a não alterar substantivamente a estrutura que alimenta … as conjunturas.

De plano em plano, de projecto em projecto, temo que os indicadores de desempenho dos alunos, estou a referi-me à avaliação externa, continuem a preocupar-nos.

sábado, 11 de janeiro de 2025

DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, É PRECISO INSISTIR

 O Ano Novo, sem surpresa, vem velho. Os primeiros dias foram marcados por vários episódios de violência doméstica, incluindo uma morte.

Conforme dados do Relatório Anual de Segurança Interna de 2023, a violência doméstica é o segundo tipo de crime com maior participação, apenas superado pelas burlas.

Até Setembro de 2024, registaram-se mais de 23 mil queixas de violência doméstica pelo que os dados finais podem ser superiores ao ano anterior.

 Acresce que o mundo da violência doméstica é bem mais denso e grave do que a realidade que conhecemos, ou seja, aquilo que se conhece, apesar de recorrentemente termos notícias de casos extremos, é "apenas" a parte que fica visível de um mundo escuro que esconde muitas mais situações que diariamente ocorrem numa casa perto de nós.

Por outro lado, para além da gravidade e frequência com que continuam a acontecer episódios trágicos de violência doméstica e como recorrentemente aqui refiro, é ainda inquietante o facto de que alguns estudos realizados em Portugal evidenciam um elevado índice de violência presente nas relações amorosas entre gente mais nova mesmo quando mais qualificada. Muitos dos intervenientes remetem para um perturbador entendimento de normalidade o recurso a comportamentos que claramente configuram agressividade e abuso ou mesmo violência.

Importa ainda combater de forma mais eficaz o sentimento de impunidade instalado, as condenações são bastante menos que os casos reportados e comprovados, bem como alguma “resignação” ou “tolerância” das vítimas face à situação de dependência que sentem relativamente ao parceiro, à percepção de eventual vazio de alternativas à separação ou a uma falsa ideia de protecção dos filhos que as mantém num espaço de tortura e sofrimento. Felizmente este cenário parece estar em mudança, mas demasiado lentamente. Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem mais lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores sociais presentes em cada época.

Torna-se criticamente necessário que nos processos de educação e formação dos mais novos possamos desenvolver esforços que ajustem quadros de valores, de cultura e de comportamentos nas relações interpessoais que minimizem o cenário negro de violência doméstica em que vivemos. A educação, a cidadania e o desenvolvimento que sustentam constituem a ferramenta de mudança mais potente de que dispomos.

É uma aposta que urge e tão importante como os conhecimentos curriculares. Percebe-se, também por estas questões, a importância da abordagem do universo da “Cidadania e Desenvolvimento” na educação escolar e para todos os alunos. Seria ainda desejável que a ignorância, o pré-conceito e, também, o preconceito não inquinassem a discussão.

Entretanto, torna-se fundamental a existência de dispositivos de avaliação de risco e de apoio como instituições de acolhimento suficientes e acessíveis para casos mais graves, um sistema de protecção e apoio eficiente aos menores envolvidos ou testemunhas destes episódios, e, naturalmente, um sistema de justiça eficaz e célere.

A omissão ou desvalorização desta mudança é a alimentação de um sistema de valores que ainda “legitima” a violência nas relações amorosas, que a entende como “normal”. Tudo isto tem como efeito a continuidade dos graves episódios de violência que regularmente se conhecem, muitos deles com fim trágico.

Apesar da natureza estranha e complexa dos dias que vivemos, é fundamental não esquecer questões como estas que devastam o quotidiano ou a vida de muita gente. Pode estar a acontecer numa casa ao lado.

Neste contexto, é também de registar a iniciativa há tempo divulgada de criar um primeiro instrumento legal de âmbito europeu para combater a violência doméstica e contra as mulheres.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

INOVAÇÃO, INOVAÇÃO, INOVAÇÃO

 A propósito da divulgação do habitual trabalho anual do Conselho Nacional de Educação, “Estado da Educação 2023", e face aos problemas relativos ao desempenho dos alunos, li numa entrevista ao Presidente do CNE, Domingos Fernandes, no DN que uma política apostada em melhorar o ensino e as aprendizagens deve passar por “programas de formação inicial e contínua de professores que tenham realmente em conta os conhecimentos e competências que têm de ser desenvolvidas sobretudo no que se refere ao conhecimento científico inerente à disciplina ou disciplinas que se lecionam, ao conhecimento pedagógico, ao conhecimento do currículo e, em geral, à inovação pedagógica”.

Peço desde já desculpa, será conversa de velho e corro o risco de ser injusto, mas, já aqui o tenho referido, cansa-me a recorrente narrativa da inovação. Por outro lado, e como também já disse, não simpatizo com a insistência sobre a necessidade de inovação em educação ou de uma "nova forma de ensinar".

Mudar algo na forma como se faz não é o mesmo que inovar, fazer qualquer coisa de novo. Como dizia Camões há já alguns aninhos, “todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades” e, recordando um velho entendimento, na psicologia, inteligência é adaptação, não é, repito, fazer de novo.

Nestas matérias, talvez de forma simplista, mas é intencional, penso como Almada Negreiros quando referia na "Invenção do Dia Claro”, "Nós não somos do século de inventar palavras. As palavras já foram inventadas. Nós somos do século de inventar outra vez as palavras que já foram inventadas”.

Dito de outra maneira, já conhecemos as palavras da educação, apenas temos que ir ajustando o que fazemos com elas.

As escolas são o agora, o presente, e é neste presente que se constrói o futuro. Não existem poções mágicas em educação por mais desejável que possa parecer a sua existência e desafiante a chuva de discursos e projectos de inovação.

Num exercício de crença e boa vontade afirmo, como o José Afonso, “seja bem-vindo quem vier por bem” e registo todas as iniciativas que possam contribuir para minimizar ou erradicar problemas, mas já me falta convicção no impacto do procedimento habitual, para cada constrangimento ou dificuldade percebida nas escolas, pelas escolas ou de fora das escolas, aparece vindo de fora ou gerido de fora, um Plano, um Projecto, um Programa, uma Iniciativa, as combinações são múltiplas, destinado a minimizar  eliminar as dificuldades identificadas.

Durante as últimas décadas, perco a conta a planos, projectos, programas, experiências inovadoras que chegaram às escolas para combater o insucesso ou, pela positiva, promover o sucesso, promover a leitura e escrita, promover a matemática, promover a educação científica, promover a educação inclusiva, erradicar ou minimizar o bullying, a relação entre escola e pais e encarregados de educação, promover a expressão artística e a criatividade, promover comportamentos saudáveis e actividades desportivas, literacia financeira, promover a inovação e as novas tecnologias,

Também sei, tantas vezes escrevo e afirmo, que são necessárias mudanças que acompanhem o tempo. Amanhã deixarei aqui algumas notas neste sentido.

O desenvolvimento das comunidades exige ajustamentos regulares no que fazemos em matéria de educação e em todos os patamares do sistema, este é que é o grande desafio. Umas vezes melhor, outras vezes com mais sobressaltos, temos feito um caminho importante e muito mais ainda vamos ter que fazer, mas os ajustamentos que decorrem da regulação e avaliação não têm que ir atrás da “mágica” ideia da inovação.

Tal como as crianças que só aprendem a partir do que já sabem, nós também só mudamos a partir do fazemos e do que sabemos. Este processo assenta num processo que deve ser robusto e apoiado de auto-regulação e regulação que envolve actores e estruturas, ou seja, o aluno, o professor, a escola, o ME, o sistema educativo. Dito de outra maneira, a escola do futuro, seja lá isso o que for, constrói-se valorizando e cuidando da escola do presente, como disse acima, o futuro é agora.

Confesso que me preocupam mais os tratos que a escola actual recebe, que a inovação da escola do futuro.

Mais uma vez desculpem o risco de ser injusto, mas já sinto cansaço face à narrativa da "inovação".

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

JÁ TE ENSINEI COISAS QUE NÃO SABIAS, É NÃO É AVÔ?

 Nesta fase da minha vida, apesar de olhar para o futuro, sinto que viajo mais frequentemente ao passado. Um dia destes lembrei-me de como a certa altura, jovem adulto, me parecia que o mundo estava, finalmente num caminho acertado, seja lá isso o que for.

O desenvolvimento do pós-guerra, uma economia que estava a trazer mais bem-estar e a mais gente, abertura nos costumes e nos valores, uma comunidade mais aberta, estámos num rumo positivo.

Em Portugal vivíamos, finalmente, em democracia, terminavam guerras em África e a maioria de nós tinha imagens criadoras de futuro, o futuro passava pelas nossas mãos.

Hoje penso que perdemos, deixámos fugir o que tínhamos e temos um mundo em cacos, guerras e ameaças que pensávamos já não ser possível, inversão de políticas com retorno a visões totalitárias mascaradas de democracia, ameaça aos direitos básicos que acreditávamos estarem seguros, discursos e práticas de exclusão, xenofobia, racismo, tudo o que ingenuamente demos como adquirido com ultrapassado.

Desculpem a deselegância, fizemos uma boa merda com o mundo que tivemos nas mãos.

E agora, quando olho para o futuro e procuro, outra vez, imagens criadoras de futuro que nos mostrem um caminho, a dificuldade é grande.

Um dos sonhos que  a vida me trouxe foi a avozice e também pelos netos tento olhar para o futuro e no caminho que terão pela frente.

Felizmente estão perto e, talvez pelos genes, gostamos de falar. O Simão, 11 anos, diz com muita frequência que somos uns “tagarelas”, somos Morgados. É verdade, Simão. Ainda bem que falamos e o falar também nos ajuda no caminho para o futuro. Nas nossas “conversetas”, como ele lhes chama e em que cabe tudo é engraçado que ele termina com alguma frequência as frases com um “é não é, avô?” que lhe sustenta as ideias e as dúvidas.

Também um destes dias, o Tomás, 8 anos, após uns minutos de conversa sobre “saber coisas” concluiu com ar satisfeito, que já me tinha ensinado coisas que eu não sabia. Ficou contente e eu também, é assim que deve ser.

Desejo muito que os “saberes” do Tomás e as “conclusões ou dúvidas” do Simão ajudem a percorrer o caminho para o futuro que, quero acreditar, não sendo fácil, há-de ser o que eles quiserem.

São assim os dias mágicos e inquietos da avozice.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

NÃO VOU ESCREVER SOBRE A CHAMADA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

 Muitas vezes aqui tenho escrito sobre a chamada educação inclusiva, a última vez há poucos dias, mas hoje não o vou fazer.

Com base em recente relatório divulgado pela Inspecção-Geral de Educação e Ciência leio no Público que:

Das 2691 turmas com alunos com necessidades específicas, que, no ano lectivo 2022/2023, a Inspecção-Geral da Educação e Ciência (IGEC) analisou, quase metade (1228) não cumpria a dimensão prevista na lei, tendo mais estudantes do que deveriam, o que pode pôr em causa o sucesso da sua aprendizagem. E não é a primeira vez que isso acontece.”

E que: “No ano lectivo 2022/2023, a IGEC visitou 82 escolas, onde estudavam mais de 130 mil alunos do pré-escolar ao secundário, distribuídos por 6309 grupos e turmas. Mais de 8800 alunos (6,8% do total) têm “necessidades específicas” — o que antes se designava necessidades educativas especiais — e que, por isso, necessitam de um conjunto de recursos educativos particulares durante o seu percurso escolar, de modo a facilitar o seu desenvolvimento académico, pessoal e socioemocional. Em 66,7% das escolas, estes alunos não estavam a ter acesso a todos os apoios previstos na lei. Como resultado, quase um terço (32,6%) destas crianças/alunos não estava integrado em grupos ou turmas reduzidas nem tinha os recursos humanos específicos para os apoiar no seu percurso escolar.

Segundo concluiu a IGEC, mais de um terço (35,7%) das turmas ultrapassava o limite dos 20 alunos, que é o número fixado pela lei como sendo a referência para as turmas reduzidas no ensino básico, onde há necessidade de integração de alunos com necessidades específicas. Também não devem conter mais de dois alunos nestas condições, salvo alguma excepção.”

E ainda que, “a existência de turmas do ensino básico com mais de dois alunos cujo relatório técnico-pedagógico identifica a necessidade de integração em turma “pode pôr em causa o acesso ao currículo e o direito de cada um a uma educação inclusiva””.

Mais ainda, “Segundo os dados mais recentes da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), no ano lectivo 2022/2023 havia 88.682 crianças e jovens nas escolas públicas da rede do Ministério da Educação para quem tinham sido mobilizadas medidas selectivas e/ou adicionais de suporte à aprendizagem e à inclusão. São mais cinco mil do que no ano lectivo anterior.”

Por isso não vou falar de educação inclusiva.

Apenas quero sublinhar que, felizmente, muitas crianças vêem, sentem, crescem, aprendem, desenvolvem-se com base no cumprimento do seu direito à educação, mas outras muitas, em número demasiado elevado, não parentes pobres no cumprimento desse direito.

Como disse quando comecei, não escrevi sobre educação inclusiva, acho que já não sei o que é.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

O HOMEM QUE FAZIA PLANOS

O excelente texto, como sempre, de Gonçalo M. Tavares no último Expresso, "Crónica sobre o tempo", a propósito do 1 de Janeiro e o cada recomeço que pontua, recordou-me uma pequena história. 

Era uma vez um homem que, como quase todas as pessoas, quando se aproximava o fim do ano estabelecia planos para tentar mudar na sua vida os aspectos que menos o satisfaziam. É claro que estas mudanças seriam tentadas a partir do dia primeiro do ano que vinha novo. Nos seus planos de mudança, tanto cabiam as decisões de maior envergadura e dificuldade, procurar mudar de emprego por exemplo, andava desmotivado, achava-se subaproveitado e mal pago, como também cabiam aspectos de outra natureza como não responder (quase) sempre friamente à mulher, falar mais com os miúdos, cuidar melhor de si, ser mais simpático com os colegas, etc.

O problema é que durante os anos, todos os anos, as promessas mantinham-se, eram basicamente as mesmas e as mudanças ficavam por cumprir, todas.

O mal-estar do homem avolumava-se num ciclo crescente, mais promessas, ausência de mudanças, mais frustração e a situação tornou-se insustentável. Um dia, perto do fim do ano, tomou a grande decisão, acabaram-se as promessas, deixou de dar corda ao relógio, o tempo parou, o Ano Novo não chegou e o homem adormeceu.

Ainda não acordou.

E já estamos a 7 de Janeiro.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

DE REGRESSO

 Inicia-se hoje o segundo período escolar ainda que em algumas comunidades educativas se tenha “semestralizado” o ano escolar. Mais do que o terceiro creio que é este o período das decisões. Na verdade, embora falte o terceiro trimestre este que agora começa parece-me ser o mais importante no calendário escolar.

Este reinício de ano escolar continuará marcado pela dramática continuidade de muitos alunos sem professor a todas as disciplinas com as consequências que todos conhecemos, mas com responsabilidades que ninguém assume.

Relativamente ao trabalho educativo, quando o primeiro trimestre corre bem e o segundo decorre de forma igualmente positiva, normalmente, o sucesso do ano de trabalho escolar estará praticamente assegurado.

Se os dois primeiros períodos não se desenvolverem de forma positiva torna-se, obviamente, bem mais difícil a recuperação durante o terceiro período e o risco de insucesso ou retenção é mais elevado.

Assim, o segundo período é um tempo em aberto, um tempo que permitirá manter bons resultados, recuperar de algumas dificuldades ou “certificar”, antecipando, o insucesso.

É neste aspecto que centro estas notas. De facto, alguns alunos devido aos seus resultados menos positivos no primeiro trimestre, à sua história escolar que poderá incluir eventuais dificuldades ou até pela expectativa ou representação, agora diz-se “Percepção”, que deles foi sendo construída, integrarão provavelmente um grupo, “os que não vão lá”, para utilizar uma terminologia frequente no meio escolar.

Dito de outra maneira, a escola, algumas vezes sem se dar conta, outras por ausência de meios ou disponibilidade e outras ainda pela convicção de que é "normal" que nem todos aprendam apesar de possuírem capacidades para tal, constrói sobre alguns alunos uma baixa ou nula expectativa de sucesso que não é alheia ao “eles não vão lá” e cujos efeitos negativos estão estudados.

Neste cenário, a escola pode vir a desistir deles e eles podem vir a desistir da escola através de processos que nem sempre são conscientes, quer por parte da escola, quer por parte de alunos e pais.

Curiosamente, muitos destes alunos que “não vão lá” são reconhecidos como crianças ou adolescentes inteligentes, dotados, de tal maneira que "se eles quisessem" teriam sucesso. O problema é que com alguma frequência, por menor atenção, pelo número de alunos por turma e/ou por falta de recursos, dispositivos de apoio, condições de trabalho, não conseguimos que eles tenham sucesso, tal como eles não conseguem mobilizar eficazmente as suas capacidades para serem bem-sucedidos. Eu sei que a afirmação é forte e pode ser injusta em muitas situações, mas existem alunos de quem a escola, por várias razões, parece ter “desistido”.

Importa, pois, iniciar este segundo período com expectativas positivas face ao trabalho de alunos e de docentes. Por outro lado, é também importante que as expectativas positivas e confiança nas capacidades dos alunos lhes sejam claramente expressas por pais e professores. Finalmente é essencial que os apoios a eventuais dificuldades de alunos e professores estejam disponíveis, sejam suficientes, competentes e estruturados em tempo oportuno.

Volto ao início, a serenidade é um bem de primeira necessidade nos contextos educativos, espero que as decisões no âmbito das políticas públicas em matéria de educação não esqueçam o quanto e o que está causa nas questões que envolvem os professores, a sua valorização, o clima e a autonomia das escolas. Muito do que está não serve, muito do que se anuncia também não, urge um entendimento, a responsabilidade é grande.

O risco de insucesso e exclusão na escola é também o primeiro grande risco, ou mesmo a primeira etapa, da exclusão social.

Eles vão lá. Bom trabalho e Bom Ano.

PS - Os alunos que aqui refiro como "não vão lá" acabam com alguma frequência por "transitar" e até alimentar "percursos de sucesso" compondo estatísticas. Não resolve nenhum problema, continuam sem adquirir o que precisariam de adquirir.

domingo, 5 de janeiro de 2025

UM DOMINGO CABANEIRO

 Como as previsões anunciavam, está um Domingo cabaneiro, como se fala aqui no Alentejo, bom para estar na cabana. Frio e algum vento, uma chuva bem chovida a soar no telhado. Da janela vê-se um céu cinzento que contrasta com o verde do pasto e da horta. Do lado de dentro, consola o calor manso da salamandra que sempre nos acompanha nestes dias. E que companhia e aconchego faz a chama tranquila

A água é bem-vinda e a terra agradece. Nós também, a água é a fonte de onde tudo vem. Os velhos como eu dirão que está um dia como nos “invernos de antigamente”, conversa de velho, é claro.

É um tempo que convida a ler coisas que estavam em lista de espera, a alguma escrita, a ouvir sons menos habituais porque escolhidos com mais tempo, a arrumar o que aguardava oportunidade e disponibilidade, a um café bem quente.

São assim os dias cabaneiros do Alentejo … quando temos o privilégio de poder ficar em casa, na cabana.

sábado, 4 de janeiro de 2025

O CHEIRO DA TERRA MOLHADA

 Há pouco, já no fim da tarde fiz-me aos caminhos do monte para a voltinha do costume. Estão lindos, mas já se sente a falta da chuva que está anunciada para amanhã.

A verdade é que pouco depois começou a cair e rapidamente subiu da terra o inconfundível cheiro da terra molhada.

Este perfume sempre me faz lembrar, já aqui tenho referido, o Mestre Almada Negreiros na Invenção do Dia Claro, “Depois, o cheiro da terra molhada é que me faz de novo animar.”

Na verdade, nem me apeteceu vir para casa, continuei, mas sem ir “singing in the rain”. A minha voz afugentaria certamente a chuva.

Esperemos que as previsões se confirmem e amanhã chova uma chuva bem “chuvida”, como por aqui se fala, que molhe bem, mas que não estrague.

E são assim os dias do Alentejo.

PARTIU DAVID LODGE

 Já muito perto dos 90 anos partiu David Lodge, escritor inglês. Do que nos deixa é imperdível e continua actual a trilogia que escreveu sobre o mundo académico, o seu mundo, num registo notável e estimulante.

Ficarão para nos dar gozo e pensar, A Troca: Uma História de Duas Universidades, O Mundo é Pequeno e Um Almoço Nunca é de Graça, ou a Vida em Surdina, entre outros.

A sua obra está editada em português pela ASA.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

DA ESCOLA

 Na próxima semana recomeça a escola e, para não variar, não começará de igual forma para todos e não se vislumbra quando assim será. É impossível a indiferença, a educação em geral e a educação escolar mais em particular, foram e continuam a ser o meu universo profissional e a minha paixão, é-me difícil não “pensar” na escola. Também será verdade que com os netos em idade escolar a atenção ainda é maior.

O olhar para a escola, enquanto instituição, não nos (me) sugere a tranquilidade que desejaria e julgo ser necessária apesar dos sobressaltos próprios de uma instituição viva, multidimensionada e diversa.

Creio que muitos de nós ligados à educação e à escola continuamos a ter um olhar encantado sobre a sala de aula e sobre o estar com alunos, mas um olhar muito desencantado com a escola ainda que não queira produzir generalizações abusivas. Também é verdade que este olhar desencantado coexiste com uma visão e discursos que parecem assentes num exercício de “wishful thinking”, particularmente promovidos pelas sucessivas tutelas em que (quase) tudo parece estar bem e no bom caminho.

Não vou considerar aqui os aspectos críticos ligados às questões de natureza profissional do maior grupo que está na escola, os docentes, desde logo a dramática falta, a sua valorização e a carreira adequada e actualizada, os modelos e impactos da sua avaliação, o estatuto salarial, as características demográficas, o cansaço e as consequências que daí advêm, entre outros. São muito importantes e exigem uma acção que tarda.

Estas notas dirigem-se mais para a escola enquanto instituição e o desencanto que parece estar a produzir. São múltiplas as dimensões contributivas para algum mal-estar.

Muitas vezes aqui tenho abordado algumas dessas questões e sem ordenar por qualquer critério creio que o modelo de governança da escola, a esmagadora carga de burocracia que consome esforço e tempo por docentes e técnicos, uma narrativa assente numa permanente ideia de inovação e mudança de paradigma que produz uma chuva de projectos e de iniciativas, muitas vezes, vindas do exterior, quer em programas de intervenção, quer em programas de formação, agora diz-se capacitação, que consomem recursos (tempo, materiais e humanos) com avaliações que nem sempre são suficientemente sólidas, são alguns exemplos.

Para além dos professores, são insuficientes os técnicos e auxiliares de educação como ontem aqui referi. A escola carece de dispositivos de apoio suficientes e competentes para alunos e professores bem como de recursos que sempre se anunciam, mas sempre se atrasam, meios digitais, por exemplo. A designada transição digital é um mar encapelado.

A autonomia das escolas e dos profissionais que estão na escola, associada a caminhos nem sempre claros de municipalização e regionalização, também são variáveis desta equação.

Como disse, não tenho qualquer intenção de produzir discursos negativos e muito menos catastrofistas, confio na escola, sou obrigado a isso, a escola é a base que sustenta o desenvolviento e o futuro, mas, para que assim seja, importa que tenhamos uma perspectiva realista dos problemas, a única maneira de poder procurar um caminho mais positivo.

Que caminhos percorreremos este ano?

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

NOTÍCIAS DA CHAMADA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

 No Observador encontra-se uma extensa peça sobre as dificuldades sentidas por pais de crianças com necessidades especiais de alunos de uma escola do 1.º ciclo em Lisboa para encontrar respostas adequadas às necessidades identificadas.

A escola não tem meios ou recursos humanos suficientes e os pais vão acompanhando as aulas dentro das suas possibilidades tendo também contratado uma terapeuta.

Sim, estamos a falar de escola pública e do direito à educação.

Recordo que em Novembro se realizaram em Évora, Lisboa, Faro, Coimbra e Porto manifestações convocadas pelo Movimento por uma Inclusão Efectiva para expressão e chamada de atenção sobre os problemas sentidos nas escolas para o cumprimento do direito à educação de crianças com necessidades especiais, pedindo desculpa pela expressão que, parece, já não se deve usar.

Lamentavelmente são recorrentes as vozes de pais, professores, técnicos ou directores escolares e algumas referências na imprensa relativamente a essas dificuldades e, como se dizia há uns anos, … a luta continua.

Algumas notas retomadas, não vale a pena inventar.

Segundo dados da DGEEC, no ano lectivo passado, estavam cerca de 90000 alunos ao abrigo de medidas selectivas e/ou adicionais de acordo com o DL 54/2018.

Recordo que em 2018 o ME decidiu que já não podíamos referir alunos com “necessidades educativas especiais” porque a designação não era conforme a “educação inclusiva”, categorizava alguns alunos o que não é uma boa prática. Assim, determinou que os alunos que revelavam algum tipo de dificuldade eram objecto de medidas educativa arrumadas em três categorias, as medidas “universais”, as medidas “selectivas” e as medidas “adicionais”. Isto parece que é uma outra forma de categorizar, mas não é. Na educação inclusiva é assim que se faz.

Também acontece que temos alguma dificuldade em interpretar os dados que vão sendo divulgados, aumenta o número de alunos com dificuldades de alguma natureza ou aumenta o número de alunos com medidas aplicadas. E quais as dificuldades dos alunos que se inscrevem nas medidas “universais” e assim ficam incluídos.

São habituais, tal como na peça, as preocupações com a insuficiência preocupante dos recursos humanos, professores e técnicos, designadamente psicólogos e terapeutas, auxiliares educativos bem como o crescimento significativo do número de alunos sinalizados com algum tipo de dificuldade. Aliás, também se conhecem situações em que professores com funções de apoio assumem outro trabalho minimizando a falta de professores.

 Deste quadro resulta a impossibilidade de assegurar a muitos alunos aquilo que é “apenas” um direito e não um privilégio, uma resposta educativa de acordo com as suas necessidades. Sim, eu sei que não é fácil, mas também sei que existem responsáveis pelas políticas públicas de diversos sectores envolvidas nestas questões.

A verdade é que torturar a realidade não a obriga a confessar. Muitos alunos não, não estão incluídos nem sequer integrados, estão “entregados” com as consequências que professores e pais bem conhecem. E não estou a considerar apenas os “Selectivos”, os “Adicionais” ou os “Universais”.

Este cenário de insuficiência de recursos tem sido referenciado em trabalhos diversos incluindo da Inspecção-Geral de Educação e Ciência.

Como tenho afirmados e escrito inúmeras vezes, acompanhei com esperança e expectativa a mais do que necessária, reafirmo, mudança legislativa desencadeada no âmbito da Educação Inclusiva que se traduziu no DL 54/2018 ele próprio associado a todo um quadro de mudança envolvendo, designadamente a definição do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, das Aprendizagens Essenciais ou o Decreto-Lei n.º 55/2018 relativamente ao currículo. Todo este edifício potenciaria a inovação, a mudança de paradigma, de vários paradigmas aliás, e alguns falavam mesmo da revolução que estava em marcha e anunciavam os amanhãs que cantam.

Com confiança em algumas virtudes do novo quadro aguardei expectante pela revelação da anunciada escola inclusiva de 2ª geração. No entanto, para meu desconforto e cansaço, o que fui conhecendo e vai sendo divulgado não me ajudou a perceber o que seria.

Continuo a verificar que, tal como aconteceu com o velho 319/91, (nesta altura eu já trabalhava neste universo há 15 anos), quer com o 3/2008 e depois com o actual 54/2018 existiam e existem professores, técnicos e escolas a realizar trabalhos notáveis que devem ser conhecidos e reconhecidos.

A avaliação dos alunos, a definição dos apoios nas diferentes tipologias (já usadas como categorização uma vez que a outra categorização já não existe), o funcionamento das Equipas, os recursos disponíveis, a organização da intervenção, os papéis ou a articulação dos intervenientes continuam com inúmeros sobressaltos. Recebo muitos testemunhos e, como referi, os dados conhecidos também não são particularmente animadores.

Apesar de agora estar já desligado em termos profissionais, o interesse e a paixão por este universo não se reforma, mantêm-se e apesar do cansaço, sempre me animo quando conheço situações muito positivas que, felizmente, acontecem todos os dias em tantas escolas.

No entanto, nem tudo vai bem, muito longe disso. Insisto, não torturem a realidade que ela não vai confessar, alterem-na, e o que espera de políticas públicas e de promoção de direitos inalienáveis.

Há muito que fazer, muito para caminhar. Afinal o Ano Novo já está a ficar velho.

PS – Já agora e mais uma vez, talvez já vá sendo tempo de não insistir no uso da designação "educação inclusiva" para referir a educação dos alunos que têm algum tipo de dificuldade e que se encaixam nas novas "categorias", os "universais", os "selectivos" e os "adicionais" criadas pelo DL 54, a educação inclusiva é de todos e, portanto, deveria ser “apenas” educação.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

OS SONHOS QUE SOBRARAM DO NATAL

 Umas notas assentes em Sebastião da Gama, "Pelo sonho é que vamos".

Estamos já em 2025, no Ano Novo. Acabaram os dias em que todas as falas e todos os escritos finalizavam num incontornável Bom Ano Novo. Muitos de nós fizemos mesmo questão de nos prepararmos a sério para bem recebermos o Ano Novo, de acordo com as posses e os valores de cada um, evidentemente. Desejo que as entradas tenham sido felizes. Por outro lado, também se festejariam as saídas de um ano que não deixa grandes recordações em termos globais

O Ano que agora começou também virá de acordo com as posses de cada um.

É sempre assim. E se não fosse?

E se por uma vez, finalmente, o Ano Novo fosse mesmo Novo? Por exemplo:

Ser Novo no respeito efectivo pelos direitos básicos das pessoas e no combate sério e empenhado às desigualdades e à exclusão e pobreza.

Ser Novo na gestão da coisa pública com transparência, justiça e ao serviço das pessoas.

Ser Novo na definição de políticas dirigidas às pessoas e não ao sabor dos endeusados mercados e da agenda da partidocracia.

Ser Novo no entendimento definitivo de que o caminho do nosso futuro passa pela sustentabilidade e pela dignidade.

Ser Novo no recentrar das grandes questões da educação na qualidade dos processos educativos, na tranquilidade, na valorização e no sucesso do trabalho de alunos e professores.

Ser Novo na construção de uma escola onde coubessem todos os alunos sem que o cumprimento de direitos e a qualidade da resposta pública a todos os que estão na idade de a frequentar pudesse, sequer, ser motivo de discussão.

Ser Novo no combate ao desperdício e à iniquidade de mordomias insustentáveis.

Ser Novo nos discursos e padrões éticos das lideranças políticas, económicas e sociais.

Ser mesmo Novo, estão a ver?

Que o Ano Novo vos (nos) seja leve.

Tão leve e tão novo quanto possível.

Há uns que tenho colocado parecidas com estas … não resultou. O Ano Novo que estava para chegar não foi tão novo assim, aliás, em muitos aspectos nasceu e viveu velho.

O mundo tornou-se um lugar ainda mais mal frequentado.

Será 2025 um Ano Novo?

Ou amanhã vamos achar que nasceu velho e começar a espera do Ano Novo?