segunda-feira, 11 de novembro de 2024

PALMADA AFECTIVA OU PEDAGÓGICA É COISA QUE NÃO EXISTE

 No âmbito da realização da 1.ª Conferência Mundial sobre Maus Tratos na Infância, da Organização das Nações Unidas em Bogotá na semana passada em Bogotá, mais alguns países decidiram proibir os castigos corporais a crianças alargando o já significativo número de países em que isso acontece. Relembro que o Código Penal Português estabelece desde 2007 no Arº 152 a proibição dos “castigos corporais”.

No entanto, a realidade para muitas crianças ainda integra os castigos corporais.

Em 2022 o Instituto de Apoio à Criança apresentou a campanha “Nem Mais uma Palmada” que tem como objectivo o minimizar ou acabar com os castigos corporais e promover outros procedimentos no âmbito da acção educativa familiar. Realizou também um estudo, “Será que uma palmada resolve?”, sobre procedimentos adoptados no âmbito da acção educativa familiar. Responderam 1943 pessoas, 73% com filhos e 44% a trabalhar com crianças. Cerca de 30% dos inquiridos “ainda consideram poder usar-se castigos corporais” em situações como o não-cumprimento de regras ou limites definidos por familiares, a “má criação” ou a desobediência.

Quer em termos profissionais, designadamente em muitas conversas com pais, quer em notas aqui deixadas, tenho abordado frequentemente esta temática.

Num trabalho divulgado em 2021 desenvolvido por investigadores da Universidade de Xangai evidenciou-se uma relação autoritária dos pais para com os filhos tem impactos negativos no seu desenvolvimento. O estudo, recorrendo a técnicas de electroencefalografia, evidenciou atraso no desenvolvimento das funções cerebrais em comparação com outras crianças educadas através de estilos parentais menos autoritários.

Ao abordar estas questões prefiro a terminologia “parentalidade severa" que me parece mais adequada e também usada na literatura e envolve recorrer com regularidade ao gritar, bater ou outro tipo de comportamento coercivo, humilhação, além de ameaças físicas e verbais como forma de punição.

A referência ao impacto negativo da parentalidade severa não é nova, embora seja importante sublinhar nesta investigação as consequências no desenvolvimento de funções cerebrais.

Recordo um trabalho desenvolvido pela Universidade de Pittsburgh nos EUA divulgado na Society for Research in Child Development em 2017, “Harsh parenting predicts low educational attainment through increasing peer problems”. Considerando diferentes variáveis foram seguidos 1482 alunos durante nove anos e evidenciou-se uma relação sólida entre o que foi considerado “parentalidade severa” e baixo rendimento escolar e problemas de comportamento nas crianças envolvidas nesse “modelo” de educação familiar.

Em 2018 a Academia Americana de Pediatria produziu novas orientações sobre a parentalidade afirmando veementemente que bater nas crianças, insultá-las, humilhá-las ou envergonhá-las são comportamentos a banir.

Um trabalho mais recente de Liz Gershoff divulgado em 2021 é também elucidativo sobre a mesma questão.

Dados divulgados em 2019 relativos ao Projecto Geração XXI, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, que acompanha desde o nascimento um número muito significativo de crianças na área metropolitana do Porto, mostraram que 75% das crianças com 7 anos serão vítimas de agressão psicológica ou castigos corporais em contexto de educação familiar. Cerca de 10% sofreram agressões graves (como bater com cinto ou objecto contundente ou queimar) com frequência. As avaliações mostram que que impacto na saúde é significativo, 58% apresentam valores de inflamação elevados, quase o dobro das que não são vítimas de maus-tratos.

Como acima referi, no trabalho realizado com pais é muito frequente estas questões serem afloradas assim como é habitual que quando na imprensa se refere comportamentos menos positivos de crianças ou adolescentes são inúmeros os comentários e discursos sobre a alegada falência das famílias na definição de regras e limites nos comportamentos de crianças e adolescentes. Muitos destes discursos e comentários têm sido acompanhados de referências ao facto de não se recorrer a umas “palmadas”, à “pedagogia do chinelo” ou outras variações no mesmo tom, com uns “tabefes” a coisa resolvia-se. Muitas vezes as referências são mitigadas com o recurso à ideia de “palmada educativa” ou a variante “palmada pedagógica”.

As alusões às dificuldades das famílias ou da escola na regulação dos comportamentos de crianças e adolescentes podem ser justificáveis, mas lidar com estas dificuldades através do bater parece-me na verdade preocupante para além da sua potencial ineficácia. Ninguém pode garantir que foram ou que são as “tareias” que constroem pessoas de bem.

Confesso que sinto alguma dificuldade em compreender como um comportamento de violência de várias formas dirigido a uma criança possa ser algo de educativo.

No entanto e dito tudo isto, também entendo que comportamentos inadequados ou incompetentes não significam necessariamente que estejamos perante pessoas, pais, más ou incompetentes.

Todos nós, alguma vez, agimos de uma forma menos ajustada ou adequada com os nossos filhos e isso não nos transforma em pessoas más, significa que somos apenas pessoas, que somos imperfeitos, por assim dizer e para utilizar uma expressão actual.

Assim sendo, creio que devemos ser cautelosos, quer na defesa da "palmada ou estalada educativa", quer na diabolização definitiva de pais que numa situação eventualmente esporádica e de tensão assumem um comportamento de que podem ser os primeiros a arrepender-se.

Esta nota, não branqueadora ou desculpabilizante de nada, pode não ser particularmente simpática, mas estou cansado, tanto de discursos de legitimação do efeito "educativo" da violência e outros comportamentos integrados na parentalidade severa dirigidos a crianças, como de discursos demagógicos e, por vezes hipócritas, que clamam pelo "crucificação" cega de uma pessoa, o outro que bate, mas são produzidos por gente desatenta ou mesmo autora ou apoiante doutros comportamentos dirigidos a miúdos tão indignos quanto a "palmada" ainda que menos visíveis.

Finalmente, a experiência mostra-me que muitos pais desejam ou exprimem a necessidade de alguma ajuda ou orientação nestas questões.

PS – O texto de Beatriz Imperatori, Directora Executiva – UNICEF Portugal, “Violência contra crianças. É tempo de agir!” no Público é um retrato preocupante da situação mundial e portuguesa no que respeita à forma como são (des)tratadas muitas crianças.

“Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!....”, já se interrogava Augusto Gil.


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