segunda-feira, 5 de julho de 2021

DA "REVOLUÇÃO EM CURSO NAS UNIVERSIDADES"

 O último Expresso anuncia uma “revolução em curso nas universidades”. A revolução envolverá diferentes dimensões como currículos e carga horária, metodologias de trabalho ou flexibilidade. A peça é acompanhada por uma entrevista ao Ministro da tutela, Manuel Heitor.

Continuando ainda com ligação ao ensino superior também julgo que são necessárias mudanças, nenhuma dúvida sobre isso, o desenvolvimento das sociedades assim o exige.

No entanto algo, quer na peça, quer na entrevista do Ministro, algo me deixou alguma inquietação. Parece-me estar presente uma perspectiva de uma Universidade representada como escola profissional para as empresas, um discurso excessivamente centrado no mercado de trabalho e nas suas necessidades ainda que, obviamente, esta dimensão não possa ser esquecida.

Não é novo este discurso, nos últimos anos foi notória a desvalorização das Ciências Sociais e Humanidades e é recorrentemente afirmada a sua afirmada “baixa empregabilidade”. Parece insistir-se no equívoco de confundir desenvolvimento tecnológico com desenvolvimento científico.

Recordo uma entrevista ao Público em 2014 de Devon Jensen, professor universitário com trabalho desenvolvido sobre o papel das universidades, a sua relação com os governos e o mundo económico e empresarial, que esteve a Lisboa para uma conferência com a estimulante interrogação como título, “Is Higher Education Merely a Servant of the Economy?”

Devon Jensen chamava a atenção para a volatilidade e mudança no mercado de trabalho, bem como para o papel de liderança que as instituições devem assumir na definição da sua oferta, ou seja e como já tenho referido, o ensino superior não deve ignorar o mercado de trabalho, mas não pode andar “a reboque” desse mercado que, aliás, muda a uma velocidade enorme.

Existem cursos que apesar de alguma menor empregabilidade se inscrevem em áreas científicas de que não podemos prescindir com o fundamento exclusivo no mercado de emprego, haverá sempre áreas ou nichos de formação e investigação que são imprescindíveis num tecido universitário moderno e que são essenciais para o progresso das sociedades.

Neste âmbito considero, por exemplo, a formação e investigação em Ciências Sociais e Humanidades que sofreram forte desvalorização.

Também me parece de recordar discursos como o de Pires de Lima, na altura Ministro da Economia, quando afirmava com preconceito e ignorância que é preciso que a investigação (maioritariamente associada ao ensino superior, em particular às universidades), "se traduza em produtos, marcas e serviços que possam fazer a diferença no mercado e devolver à sociedade o investimento que fizemos". No seu entendimento apenas esta deveria ser financiada.

Tal visão mostra mais uma vez a ignorância sobre a ciência, o seu desenvolvimento e o papel fundamental no desenvolvimento das sociedades, eliminando pura e simplesmente as ciências sociais e das humanidades, evidentemente inúteis por não criarem "produtos, marcas e serviços".

É evidente que a empregabilidade e a transferência de conhecimentos para o tecido económico são dimensões a considerar na organização da oferta formativa, mas existe um conjunto vasto e imprescindível de formação universitária de que não podemos prescindir com o fundamento exclusivo no mercado de emprego. Podemos dar como exemplo formações na área da filosofia ou nichos de investigação que são imprescindíveis num tecido universitário e social moderno e que cumpra o seu papel de construção e divulgação de conhecimento e desenvolvimento em todas as áreas. Aliás, em matéria de formação universitária continuo a defender que todas as áreas de formação deveriam contemplar no seu desenho curricular áreas como Ética, Filosofia ou História Contemporânea

As universidades não podem ser o departamento de formação profissional das empresas.

Uma sociedade com gente formada e a investigar nestas áreas é uma sociedade mais desenvolvida.

2 comentários:

Rui Ferreira disse...

Não irão descansar enquanto a academia não se encontrar a par da medíocre escola.
Precisam de consolidar o consentimento cognitivo para que o capitalismo medre.

Zé Morgado disse...

Não fiquei muito tranquilo com o que li. Vamos ver, Rui.