sexta-feira, 21 de julho de 2023

NOVA LEI DA SAÚDE MENTAL

 A idade e algum conhecimento foram criando em mim e sem que disso me orgulhe algum cepticismo relativamente à mudança significativa nas políticas públicas de diversos domínios. É verdade, reconheço, que algumas alterações se vão verificando ainda que longe do necessário, mas sempre apresentadas envolvidas em inovação, novos paradigmas, projectos, etc. No entanto, sempre me animo com o vislumbre de uma hipótese de mudança.

Uma das áreas mais necessitadas de alterações significativas e urgentes será a saúde mental, que, aliás, sempre tem sido o parente pobre das políticas de saúde.

Foi hoje publicada em DR a nova Lei da Saúde Mental que entrará em vigor em Agosto que, a concretizar-se, pode sustentar um mudança num sentido adequado.

A reforma do sistema contará com verbas do Plano de Recuperação e Resiliência que, no entanto, Miguel Xavier, coordenador das políticas de saúde mental, entende ser claramente insuficiente.

A nova lei define no Artº 4 os fundamentos da Política de Saúde Mental:

“1 - a) A prestação de cuidados de saúde mental centrados na pessoa, reconhecendo a sua individualidade e subjetividade, necessidades específicas e nível de autonomia;

b) A prestação de cuidados de saúde mental no ambiente menos restritivo possível, devendo o internamento hospitalar ter lugar como medida de último recurso;

c) A prestação de cuidados de saúde mental assegurada por equipas multidisciplinares habilitadas a responder, de forma integrada e coordenada, às diferentes necessidades de cuidado das pessoas;

d) O acesso de todas as pessoas, em condições de igualdade e de não discriminação, a cuidados de saúde mental de qualidade e no tempo considerado clinicamente aceitável;

e) A existência de serviços de saúde mental coordenados, abrangentes e integrados de forma a assegurar a proximidade e a continuidade de cuidados;

f) A garantia da equidade na distribuição de recursos afetos à saúde mental e na utilização de serviços de saúde mental e a adoção de medidas de diferenciação positiva.

2 - A abordagem de saúde pública para a saúde mental assegura a sua promoção e o bem-estar da pessoa, os cuidados de saúde, a residência e o emprego, em paralelo com a com a prevenção das doenças e o seu tratamento em todas as fases da vida”

Parece uma excelente base de trabalho, o problema, como sempre será a sua operacionalização.

Sublinho a clara opção por respostas de proximidade como alternativa às respostas institucionalizadas faz parte de há muito das recomendações.

Em 2019 o Conselho para os Direitos Humanos da ONU sublinhava a necessidade de uma fortíssima e urgente alteração no modelo de resposta em saúde mental, de recorrer menos à institucionalização e à medicação e mais a uma abordagem de natureza social com particular atenção a fenómenos como pobreza desigualdade e exclusão que alimentam discriminação.

No que a nós respeita, segundo o Relatório do programa da União Europeia "Joint Action on Mental Health and Well-being" divulgado em 2015, Portugal estava muito longe do desejável no que respeita à prestação de cuidados no domicílio e serviços na comunidade a pessoas com doença mental. Estima-se que menos de 20% dos doentes tenha acesso a este tipo de cuidados.

A ausência de respostas adequadas leva a um recurso excessivo à prescrição de psicofármacos mesmo em situações não justificadas como tem sido recorrentemente demonstrado.

Parece claramente mais ajustada a aposta em equipas comunitárias e apenas um número reduzido de camas para situações mais críticas de adultos ou crianças para as quais faltam de facto, camas levando ao seu inaceitável internamento em serviços para adultos.

Na verdade, as orientações actuais e matéria de saúde mental, quer do ponto de vista científico, quer do ponto de vista dos custos, determinam que a qualidade e eficácia deste tipo de apoios, deve, tanto quanto possível, assentar em estratégias de proximidade, aproximando, assim, o serviço clínico da comunidade e da vida quotidiana das pessoas.

Os modelos defendidos pela comunidade científica actual, a defesa dos direitos humanos e da qualidade de vida, tornaram insustentável a manutenção das grandes instituições psiquiátricas que encerravam muitas câmaras de horrores e casos de isolamento e privação. Ainda me lembro do incómodo causado por visitas realizadas no início da minha formação ao Hospital Júlio de Matos. Este universo é bem retratado no mítico “Jaime” de António Reis e Margarida Cordeiro.

No entanto, este movimento de retirada das pessoas com doença mental das grandes instituições precisa de um suporte adequado e suficiente de unidades locais que providenciem apoio terapêutico, social e funcional tão perto quanto possível das comunidades de pertença dos doentes e com o mínimo recurso ao internamento que agora, quero acreditar, poderão mesmo realidade.

A sua não existência, o quadro actual que esperemos vir a ser alterado com a nova Lei, cria sérios obstáculos aos processos de reabilitação e inserção comunitária acentuando ou mantendo os fenómenos de guetização das pessoas com doença mental e respectivas famílias.

Não estranho, os doentes mentais são os mais desprotegidos dos doentes, pior, só os doentes mentais idosos. Os custos familiares e sociais desta guetização são enormes e as consequências são também um indicador de desenvolvimento das comunidades.

Será desta que a coisa muda de forma significativa?

Deixem lá ver, como falamos no Alentejo.

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