domingo, 23 de junho de 2024

TEMPO DE ANTENA

 Um destes dias conversava com o meu neto Simão sobre a escola, em particular os comportamentos que os alunos revelam e algumas inquietações de quem está a entrar nos onze anos. Também trocámos experiências, por assim dizer, relembrando os meus tempos de aluno do básico e secundário.

A conversa fez-me recuar umas dezenas de anos e olhar para dentro. A verdade é que carrego uma história de alguma, para ser simpático, indisciplina a partir do início da adolescência. Nessa altura por umas razões e de diferentes formas, mais crescido e até 74, por outras razões e de outra forma, depois de 74 e até agora, ainda por outras razões e ainda de outra forma. Mas começando no primeiro capítulo, lembro-me de como a escola, na adolescência, foi simpática para comigo, quando eu não era de todo simpático para escola. Tendo começado a treinar logo de pequeno, cheguei à adolescência com, passe a imodéstia, excelentes resultados em matéria de indisciplina e com baixos resultados escolares ainda que fosse passando de ano. Como sabem, ninguém é perfeito e ninguém consegue agradar a toda a gente. Bons resultados escolares estavam longe das minhas condições e motivações, por outro lado, sendo um rapaz gorducho, em crescimento, com jeito para o futebol e à procura de mim, começo a perceber, mais a sentir, a enorme popularidade e impacto junto dos colegas que as minhas competências” comportamentais causavam. Claro que o meu comportamento só fazia sentido com o pessoal a assistir, só miúdos doentes se portam mal quando estão sós, é um desperdício. É claro que os professores não apreciavam particularmente os meus dotes, ainda me lembro do que fiz passar à Setora Trincão, de Física, aqui fica um tardio pedido de desculpas, não era nada contra si, era a procura de mim.

É perante este quadro que a escola tem a atitude mais simpática que poderia ter comigo. Sempre que me castigava com suspensões, o comunicado do castigo era anunciado em todas as turmas. Não queiram saber, era o meu tempo de antena em “prime time”. Sim, aquele aluno, do 6º ano da turma F 4ª que tinha feito tal cometimento, era eu. Quando chegava ao intervalo sentia-me, tal como os meus parceiros indisciplinados, o dono do recreio. Acho que até os bons alunos tinham uma pontinha de inveja.

E como eu me sentia bem com aquele “tempo de antena”, aquela atenção. Talvez por isso, também por isso, me tenha mantido algo indisciplinado.

Felizmente, não me cheguei a perder nos caminhos por onde andei. Muitos colegas de “tempo de antena” perderam-se … ou foram perdidos.

sábado, 22 de junho de 2024

DA SAÚDE MENTAL

 Lê-se no Expresso que em 2023 se venderam em Portugal cerca de 12 milhões de embalagens de antidepressivos, o valor mais alto de sempre, sendo que entre 2013 e 2023 se verificou um aumento de 80%. Também a venda de antipsicótico subiu 75% entre 2013 e 2023, cerca de 5 milhões em 2023.

Este número pode ser explicado por maior atenção aos problemas de saúde mental, as também, se verifica, de acordo com alguns especialistas um excesso de prescrição ou de prescrição inadequada.

Em Maio de 2023 a imprensa divulgou alguns dados de um inquérito realizado Lundbeck Portugal, farmacêutica especializada em doenças neurológicas e psiquiátricas, 33,6% dos inquiridos refere que já teve um diagnóstico de depressão, 62,1% já terá sentido sintomas de depressão em algum momento e 77,3% têm um familiar ou amigo com diagnóstico de depressão. São, na verdade, dados preocupantes, mas não surpreendentes.

A generalidade dos estudos sobre saúde mental em Portugal sugere uma alta incidência de problemas nesta área e a tendência de subida mantém-se.

Aos dados divulgados relativos venda dos psicofármacos faltará o volume de situações de mal-estar não abordadas através dos fármacos, as não tratadas e o contributo da automedicação apesar da exigência de prescrição médica para este consumo. Este quadro levará a que o número de consumidores seja superior às prescrições e número global de situações de mal-estar seja bem superior aos indicadores de consumo.

Ainda não há muito tempo aqui referi um estudo divulgado em 2021 realizado pelo investigador na área da economia da saúde da Nova SBE, Pedro Pita Barros, “Acesso a cuidados de saúde - As escolhas dos cidadãos 2020, em que se referia que 10% dos portugueses não vão ao médico quando sentem algum mal-estar e que desta população, 63% recorre à automedicação.

Um estudo coordenado pela Escola Superior de Enfermagem de Coimbra durante o ano lectivo 21/22 envolvendo 5.440 jovens, com uma idade média de 14 anos e de mais de 150 escolas do Continente e Madeira encontrou sintomas de depressão em 42% dos adolescentes. Este este aumento está em linha com outros estudos, nacionais e internacionais.

Como defende Miguel Xavier, coordenador nacional das políticas da Saúde Mental “Os problemas de Saúde Mental previnem-se antes de aparecerem. Através de bons programas de parentalidade, bons programas sociais, como os programas de apoio às populações vulneráveis”, o que envolve a necessidade de políticas integradas, mas também a importância dos recursos adequados.

Esperemos que o processo de reforma dos serviços de saúde mental que está em curso possa ter um impacto positivo. A saúde mental tem sido o parente pobre das políticas públicas de saúde.

Existe muita gente a passar mal, pode ser na casa ao lado.

No entanto, como agora se diz, somos resilientes e queremos viver, seremos capazes de continuar.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

PRECARIEDADE E PROJECTO DE VIDA, A ESPERANÇA ADIADA

 Foi divulgado o mais recente relatório do Eurostat que incide sobre a questão dos jovens "nem-nem" (nem estudam, nem trabalham) ou, na formulação em inglês, NEET (“not in education, employment or training"). Este grupo abrange jovens dos 15 aos 29 anos e representa 11,2% dos jovens europeus e 8,9% em Portugal.

Apesar de algum abaixamento o número de jovens nesta situação é ainda significativo e, sobretudo, comprometedor de um projecto de vida bem-sucedido.

Acresce que um estudo divulgado em Abril realizado por uma equipa do SINCLab. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, referia que 65,6% dos jovens até aos 30 anos que trabalham recebem menos de 1000€ de salário sendo que as mulheres recebem menos 26%. Acresce que 24% do total não têm trabalho a tempo inteiro.

Considerando ainda uma dimensão crítica na vida dos jovens, a habitação, 87,7% dos inquiridos vive com a família. Recordo os dados do Eurostat de 2022, segundo os quais a idade média da saída de casa dos pais em Portugal está em 29,7. Em 2021 tinha a idade média mais alta da EU, 33,6 anos. A média europeia de 2022 é 26,4. Para comparação as idades médias mais baixas registam-se na Suécia, 21,4, e na Finlândia, 21,3.

Parece claro que os jovens portugueses continuam a experimentar dificuldades em construir projectos de vida autónomos e positivos. Num tempo em que tudo parece ser para hoje, boa parte dos jovens sentirá procurar um projecto de vida percebido para um amanhã longínquo.

Estão identificadas dimensões contributivas para esta situação como a dificuldade em aceder a trabalho digno, a precariedade laboral, os custos elevados da educação e qualificação e os também elevados custos no acesso, renda ou compra, de habitação que como se sabe se acentuou dramaticamente nos últimos tempos.

Este cenário ajuda a perceber algumas das mais fortes razões pelas quais os jovens em Portugal abandonam a casa dos pais cada vez mais tarde e adiam projectos de vida que incluam paternidade e maternidade. Para além das questões de natureza cultural e de valores que importa considerar, bem como as políticas de família nos países do norte da Europa, as actuais circunstâncias de vida dos jovens e as implicações da conjuntura económica sustentam este cenário que provavelmente demorará a ser revertido.

A estes indicadores, já a merecer preocupação, devem juntar-se os dados sobre precariedade, abuso do recurso a estágios e outras modalidades de aproveitamento de mão-de-obra barata e a prática de vencimentos que mais parecem subsídios de sobrevivência mesmo para jovens altamente qualificados.

Esta situação complexa e de difícil ultrapassagem tem obviamente sérias repercussões nos projectos de vida das gerações que estão a bater à porta da vida activa. Entre outras, contar-se-ão o retardar da saída de casa dos pais por dificuldade no acesso a condições de aquisição ou aluguer de habitação própria ou o adiar de projectos de paternidade e maternidade que por sua vez se reflectem na crise demográfica que atravessamos e que é uma forte preocupação no que respeita à sustentabilidade dos sistemas sociais. As gerações mais novas que experimentam enormes dificuldades na entrada sustentada na vida activa, vão também, muito provavelmente, conhecer sérias dificuldades no fim da sua carreira profissional.

No entanto, um efeito potencial, mas menos tangível desta precariedade no emprego e na construção de um projecto de vida autónomo e sustentado, é a promoção de uma dimensão psicológica de precariedade face à própria vida no sentido global e que, com alguma frequência, os discursos das lideranças políticas acentuam. Dito de outra maneira, pode instalar-se, está a instalar-se nos jovens, uma desesperança que desmotiva e faz desistir da luta por um projecto de vida de que se não vislumbra saída mobilizadora e que recompense.

O aconchego da casa dos pais pode ser a escapatória para a sobrevivência, mas potenciar o risco da desistência o que certamente poderá ter implicações sérias.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

NOTÍCIAS DO ENSINO SUPERIOR, BOAS E MÁS

 Na imprensa de hoje encontram-se duas referências ao ensino superior e de sinal contrário. Comecemos pela notícia mais positiva, com base em dados do Infocursos relativo a 2024, a Renascença divulga a existência de 45 cursos de Ensino Superior com taxa de desemprego zero. Neste grupo estão, entre outros, cursos de Enfermagem, Medicina, Química, Educação Básica e Segurança Informática em Redes de Computadores. É ainda relevante saber que existem 132 cursos superiores com desemprego abaixo do 1% sendo 107 ministrados em escolas públicas.

Do outro lado e, naturalmente, com preocupação lemos no Eco, também de acordo com o Infocursos de 2024, que está a subir a taxa desistência dos alunos do superior no final do primeiro ano. Em 22/23 á cada vez mais alunos a desistirem do ensino superior, após o primeiro ano de curso. Em 2022/2023, a taxa de desistência dos estudantes de licenciatura nestas circunstâncias era de 11,10% considerando a oferta de mais de 6 mil cursos de 282 instituições de ensino superior. É o número mais elevado dos últimos 8 anos e está a subir há quatro anos consecutivos

Lamentavelmente, a mesma trajectória de desistência no final do primeiro ano

Verifica-se com os alunos de cursos técnicos superiores profissionais revelando uma taxa de desistência de 26,9% em 2022/2023.

A estes indicadores não serão certamente alheios os custos da frequência do ensino superior ou o “desencanto” com a escolha.

Sabendo que a qualificação é um bem de primeira necessidade e um forte contributo para projectos de vida bem-sucedidos o abandono é sempre preocupante.

Temos assistido um aumento do número de candidatos a bolsa, tal como em aumentado o número de estudantes que entra no ensino superior. Também é reconhecido que se tem verificado perda de rendimento de muitas famílias em consequência do impacto económico e social da pandemia e dos tempso qua também agora se vivem.

No entanto, apesar destas dimensões poderem constituir alguma justificação creio que importa não esquecer uma questão de natureza estrutural, estudar no ensino superior é muito caro em Portugal. Também a recente alteração do regulamento de atribuição de bolsas não minimizou esta situação.

Algumas notas começando por alguns dados que já aqui tenho citado.

De acordo com Relatório do CNE, "Estado da Educação 2019", a percentagem de alunos que em Portugal acede a bolsas de estudo para o 1º ciclo do superior está no segundo escalão mais baixo da análise, entre 10 e 24,9%. Para comparação, Irlanda, Países Baixos estão no intervalo entre 25% e 49,9% e a Suécia no superior a 75%. Países como Espanha, França, Reino Unido e muitos outros têm percentagens de alunos com apoio superiores a nós e, sem estranheza, também maior nível de qualificação.

Em 2018 foi divulgado um estudo já aqui citado, “O Custo dos Estudantes no Ensino Superior Português” da responsabilidade do Instituto de Educação da U. de Lisboa, relativo ao ano lectivo de 2015/2016 mostrando que cada estudante universitário gastou em média 6445€ em despesas como propinas, material escolar, alojamento ou alimentação. Os alunos de instituições universitárias privadas têm uma despesa perto dos 10000€ e nos politécnicos privados o custo será de 8296€. De facto, sendo a qualificação superior um bem de primeira necessidade para os cidadãos e para o país, é um bem muito caro, demasiado caro para muitas famílias e indivíduos.

Estudos comparativos internacionais, “Social and Economic Conditions of Student Life in Europe”, por exemplo, também mostram que as famílias portuguesas são das que suportam uma fatia maior dos custos de frequência do superior sendo que ainda se verifica uma forte associação entre a frequência do ensino superior e nível de escolarização e estatuto económico das famílias.

Apesar de um abaixamento do valor as propinas no ensino público, as dificuldades sentidas por muitos estudantes do ensino superior e respectivas famílias, quer no sistema público, quer no sistema privado com valores bem mais altos de propinas, são, do meu ponto de vista, consideradas frequentemente de forma ligeira ou mesmo desvalorizadas. Tal entendimento parece assentar na ideia de que a formação de nível superior é um luxo, um bem supérfluo pelo que ... quem não tem dinheiro não tem vícios.

A qualificação é a melhor forma de promover desenvolvimento e cidadania de qualidade pelo que apesar de ser um bem caro é imprescindível.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

DOS PROFESSORES

 Foram divulgados os resultados um inquérito realizado pela Fenprof junto de professores do 1º ciclo. Responderam 2150 docentes (8,5% dos professores de 1º ciclo nas escolas públicas e em síntese as suas respostas revelam o envelhecimento significativo da classe, 48,5% tem mais de 51 anos sendo que destes, um terço tem mais de 60 e apenas 5% menos de 40 anos.  Muitos, 40,6%, referem as dificuldades com recursos, designadamente, acesso à net, recursos e equipamentos informáticos e insuficiência de espaços para desporto.

Uma outra questão bastante referida prende-se com a dimensão e constituição das turmas, 49,4% afirma leccionar ter turmas com 21 ou mais alunos, destas, 24,1% têm um efectivo superior ao determinado pelo quadro legislativo, 23 alunos.

Também é referido que 46% das turmas que têm alunos com medidas selectivas ou adicionais, a linguagem do DL 54, têm mais de 20 alunos e um terço destas turmas têm mais de dois alunos com as medidas referidas ultrapassando limite legal.

Apesar da prudência que necessário parece claro a situação profissional vivido por muitos milhares de professores com custos significativos em termos de bem-estar e trabalho desenvolvido.

Tenho abordado esta questão múltiplas vezes e recupero algumas notas.

Na verdade, os problemas que afectam os professores e as consequências a curto e médio prazo, sendo conhecidos de há muito, são agora claramente reconhecidos apesar de algumas tentativas de torcer a realidade. São recorrentes as referências à preocupante falta de professores, ao envelhecimento da classe, os níveis de cansaço e de exaustão emocional, a menor atracção dos mais jovens pela profissão associada a modelos de carreira, contratação e valorização pouco motivadores e justos. Os professores passam por dispositivos de avaliação pouco transparentes e competentes que desmotivam, causam mal-estar e climas institucionais pouco amigáveis, para ser simpático na adjectivação.

Este quadro, de um mal-estar reconhecido, não pode deixar de ter impacto. Como muitas vezes afirmo, crianças, enquanto grupo social, e professores, enquanto grupo profissional, constituem dois grupos nucleares nas sociedades contemporâneas. Os mais novos porque são o futuro e os professores porque, naturalmente, o preparam, tudo (quase) passa pela escola e pela educação. Entre nós, este entendimento ainda me parece mais justificado porque, devido a ajustamentos na organização social e familiar e, é minha convicção, devido a políticas públicas sociais e educativas inadequadas, os miúdos passam tempo excessivo na escola, alterando a dinâmica educativa familiar o que sobrevaloriza o papel da escola através dos professores.

Múltiplas acções, decisões políticas e discursos da tutela, bem como alguma imprensa e "opinion makers", têm contribuído para degradar a sua função, fragilizar a sua imagem social e comprometer o clima e a qualidade do trabalho desenvolvido nas escolas apesar dos professores continuarem a ser uma das classes profissionais em que os portugueses mais confiam.

Ser professor no ensino básico e secundário por razões conhecidas e por vezes esquecidas, é hoje uma tarefa de extrema dificuldade e exigência que social e politicamente justifica um reconhecimento e valorização frequentemente negligenciados. Acresce que é uma tarefa desempenhada por uma classe extremamente envelhecida e cansada como tem sido amplamente estudado e divulgado e também confirmado neste inquérito da Fenprof.

A valorização social e profissional dos professores em diferentes dimensões é uma ferramenta imprescindível a um sistema educativo com mais qualidade. A valorização e reconhecimento passam também pela necessidade de modelos de avaliação justos e transparentes que sustentem, reconheçam e promovam competência, empenho e atracção pela profissão.

Como referia há dias a propósito do “Plano + Aulas, + Sucesso”, as mudanças nunca são fáceis, será sempre difícil um caminho de concordância generalizado, mas também tenho a convicção de que medidas conjunturais, mais positivas ou menos ajustadas, concebidas por ciclos políticos continuarão, apesar, de alguns ajustamentos, a “mexer” na conjuntura e a não alterar substantivamente a estrutura que alimenta … as conjunturas.

O caminho que temos vindo a seguir parece esgotado e o futuro está comprometido. Não vale a pena negar a realidade. 

terça-feira, 18 de junho de 2024

DA CRIATIVIDADE NAS ESCOLAS PORTUGUESAS

Foi hoje divulgado pela OCDE o terceiro volume do PISA 2022 Results, “Creative Minds, Creative Schools” a que o Público faz referência.

Talvez com alguma surpresa, os alunos portugueses revelam uma criatividade, nos termos avaliados pelo PISA, acima da média da OCDE. Mostram o melhor desempenho em tarefas de expressão visual.

Os resultados médios dos alunos portugueses, 34 pontos, nas tarefas solicitadas no PISA para avaliar a sua capacidade criativa, estando acima da média foram considerados pela OCDE como tendo “significado estatístico forte”.

Sendo um resultado positivo que se regista, é também um pouco surpreendente dado que, também de acordo com o Relatório, as escolas portuguesas têm uma menor oferta de actividades científicas ou artísticas. Os nossos alunos também mostram menor nível de frequência de actividades escolares ou extracurriculares nestas áreas. Cerca de 10% refere o contacto com conteúdos artísticos, 7% com música, clubes de ciência ou informática e só 6% se relaciona com actividades como teatro ou publicação, jornais escolares, por exemplo, 5%.

No entanto, talvez o relatório venha reconhecer que os nossos alunos, tal como, aliás, os professores, são mesmo uns “mestres de criatividade”. Para conseguir lidar com as os efeitos que lhes chegam às salas de aula de muitas dimensões das políticas públicas de educação só mesmo uma dose significativa de criatividade e também de resiliência.

São competências imprescindíveis.

domingo, 16 de junho de 2024

"SÓ APRENDE QUEM SE RI"

 Existem matérias que apesar de muitas vezes abordadas não podem sair da agenda das preocupações e da urgência e prioridade nas medidas e recursos. É preciso insistir.

De acordo com dados do Eurostat divulgados no JN, em Portugal, no final de 2023 viviam 339 mil crianças em risco de pobreza ou de exclusão social, cerca de 22,6% da população com menos de 18 anos. Relativamente a 2022 verifica-se um aumento de 1,9%. Se considerarmos a primeira infância, até aos 6 anos, a taxa de risco é de 21,6%, um aumento de 4%, mais 25 mil crianças.

Como ainda há pouco tempo aqui escrevi estamos longe de conseguir minimizar os riscos de pobreza e exclusão.

Sabemos que a educação tem um papel crítico neste processo. No entanto, recordo o relatório “Portugal, Balanço Social 2023”, realizado pela Nova SBE Economics for Policy. De acordo com o trabalho, 82% das crianças pobres com três anos ou menos não frequentam pelo menos 30h de creche. Também no intervalo entre 4 e 7 anos são também as crianças mais pobres que não frequentam educação pré-escolar.

Apesar da gratuitidade da frequência da creche em 2022, a insuficiência de vagas dificulta o acesso das famílias de menor rendimento como se pode verificar na peça do Público relativas ao Programa Creche Feliz.

Está bem estudada a relação entre a situação económica, laboral e nível de literacia familiar no trajecto pessoal.

Também sabemos que a pobreza tem claramente uma dimensão estrutural e intergeracional, as crianças de famílias pobres demorarão até cinco gerações a aceder a rendimentos médios, um indicador acima da mádia europeia.

A escola é certamente uma ferramenta poderosa de promoção de mobilidade social, mas, por si só, dificilmente funciona como elevador social.

O impacto das circunstâncias de vida no bem-estar das crianças e em aspectos mais particulares como o rendimento escolar ou o comportamento é por demais conhecido e essas circunstâncias constituem, aliás, um dos mais potentes preditores de insucesso e abandono quando são particularmente negativas, como é o caso de carências significativas ao nível das necessidades básicas.

Quando penso nestas matérias não resisto a recuperar uma história que conto muitas vezes, coisas de velho como sabem, e que foi umas das maiores e mais bonitas lições sobre educação que já recebi.

Aconteceu há já uns anos em Inhambane, Moçambique, também conhecida por Terra da Boa Gente. Num início de manhã, eu o Velho Carlos Bata, um homem velho e sem cursos, meu anjo da guarda durante as semanas que lá estive em trabalho, íamos a passar por uma escola para gaiatos pequenos e o Velho Bata, parou a olhar. Não estranhei, era um homem que não conhecia o significado de pressa.

Um tempinho depois disse-me que se tivesse “poderes de mandar” traria um camião de batata-doce para aquela escola. Perante a minha estranheza, explicou que aqueles miúdos teriam de comer até se rir, “só aprende quem se ri”, rematou o Velho Bata.

Pois é Velho, miúdos com fome e que passam mal não aprendem e vão continuar pobres. E infelizes, não se riem.

Ontem, hoje e amanhã. Não podemos falhar.

sábado, 15 de junho de 2024

"PLANO +AULAS, +MAIS SUCESSO" - Conjuntura e Estrutura

 Foi conhecido o “Plano + Aulas, + Sucesso” o anunciado programa destinado a minimizar a falta de docentes com as consequências que bem conhecemos, milhares de alunos sem todas as aulas, alguns praticamente todo o ano lectivo.

Embora acompanhe de perto o mundo da educação, tem tido também o meu mundo nos últimos quase cinquenta anos, não conheço profundamente as questões da profissão docente no ensino básico e secundário.

Assim, contando também com a leitura diversificada de comentários que têm sido divulgados, creio que algumas das medidas são positivas, outras menos adequadas, umas com algum potencial de operacionalização e impacto, outras nem tanto.

Esta reflexão assenta ainda numa questão que me parece crítica, a necessidade de medidas que possam ter impacto na conjuntura que vivemos e a necessidade de medidas que se reflictam na estrutura que, obviamente, alimenta a conjuntura, designadamente e no caso, a parte das medidas públicas de educação que envolvem a profissão docentes.

É certo que é mais fácil e mais conforme com os ciclos políticas mexer na conjuntura, mas é mais potente e eficaz analisar e ajustar medidas estruturais.

Nesta perspectiva, julgo absolutamente necessário que as políticas públicas de educação assumissem como um eixo nuclear a valorização da carreira docente, dos professores.

É claro que mudanças estruturais têm custos pelo que será de considerar a necessidade de investimento sério em educação, 6% do Produto Interno Bruto o que está definido pela UNESCO como meta para 2030.

Só esta valorização pode tornar a carreira docente atractiva e com um potencial de retenção e satisfação dos que nela se integram

Esta valorização passa, evidentemente, pela valorização salarial, mas importa considerar também dimensões como a definição de modelos de carreira e de avaliação justos, simplificados e transparentes e promotores de estabilidade. Não é concebível, por exemplo, alimentar situações como, ”és um excelente professor, mas não podes ser “excelente”, já não cabes”.

Importa que a valorização dos professores resista ao risco de “deskilling” ou desprofissionalização através de mudanças nas exigências da habilitação para a docência.

Importa que se definam dispositivas de apoio ao exercício profissional em contextos mais exigentes.

Importa que se desburocratize o exercício da docência com gastos brutais de tempo e esforça sem retorno pertinente. Sim eu sei, como dizia João dos Santos, que “mais difícil em educação é trabalhar de uma forma simples”, mas desburocratizar não é promover “facilitismo” é uma medida com impacto positivo em termo profissionais e pessoais.

Considerando o que acontece em muitos territórios educativos talvez seja de começar a olhar (reflectir) sobre o modelo de governança das escolas e agrupamentos que parece excessivamente dependente da competência de cada direcção criando assimetrias profissionais e climas institucionais menos favoráveis ao trabalho de alunos, professores e técnicos.

Julgo claro que mudanças neste sentido não são fáceis e que será sempre difícil um caminho de concordância generalizado, mas também tenho a convicção de que medidas conjunturais, mais positivas ou menos ajustadas, concebidas por ciclos políticos continuarão, apesar, de alguns ajustamentos, a “mexer” na conjuntura e a não alterar substantivamente a estrutura que alimenta … as conjunturas.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

AOS ALUNOS E ALUNAS DO SECUNDÁRIO

 Caros alunos e alunas,

 Tinham de chegar. Com o exame de Português inicia-se hoje a época de exames nacionais do secundário e durante algum tempo o vosso programa está assegurado, exames. Apenas terão de realizar os exames obrigatórios para acesso aos cursos de ensino superior a que querem candidatar-se, mas terão um caderno de encargos preenchido.

O trabalho realizado durante os últimos anos vai ser testado. Alguns de vós sentir-se-ão relativamente tranquilos enquanto outros, a maioria, vão começar a sentir a ansiedade a subir. É normal, afinal trata-se de realizar um exame e alguma ansiedade ajuda-nos a estar mais atentos.

Os resultados serão importantes pois permitirão aceder ao ensino superior e na escola e curso que vos interessam, e, desculpem o atrevimento, mas tomaram a decisão correcta, continuar a estudar. A qualificação superior é uma boa ferramenta para a construção de um projecto de vida mais sustentado e com maior potencial de realização. Os tempos não estão fáceis, mas estudar ainda compensa, acreditem.

Alguns de vós vão sentir-se pressionados para a obtenção de muito bons resultados, porque as médias de acesso nos cursos que desejam frequentar são habitualmente elevadas ou porque vos dizem que para se ser gente tem que se ser excelente. Irão perceber que, felizmente, tal não é verdade, é fundamental tentar fazer o melhor possível, mas não é essencial ser o melhor. Acresce ainda que, muitas vezes, essa pressão não ajuda, antes pelo contrário, atrapalha, … há que ter calma.

Muita gente, pais, professores, psicólogos, psiquiatras, nutricionistas, especialistas em “coaching” em múltiplas áreas, colegas, vos dá conselhos nesta altura, “estuda mais”, “descansa um pouco”, “devias fazer assim”, “era melhor desta maneira”, “não te esqueças de nada”, “toma atenção”, “começa pelas mais fáceis”, “revê no fim”, “cautela com a alimentação”, “é bom espairecer um pouco”, etc., etc. É normal e importa alguma tranquilidade. A presença nas redes sociais e a partilha da experiência com colegas vai certamente ajudar a dissipar o stresse, dividido por muitos pode dar menos para cada um.

A verdade é que não existem receitas infalíveis para o sucesso que não passem por trabalho sério, organização do tempo e das tarefas, percepção das dificuldades e da forma de as minimizar, partilhar dúvidas e pedir ajuda a professores ou colegas, entre outros aspectos que saberão identificar. Cada um de vós encontrará um caminho para lidar com os exames, é normal, somos diferentes.

Como é de prever, alguns acharão os exames mais fáceis e outros mais difíceis, depende sempre do que cada um sabe e dos conteúdos do exame, aquela história clássica de “ainda bem que saiu isto, sabia bem” ou, pior, “logo havia de sair isto que não estava tão preparado”, nada a fazer, são as circunstâncias e em toda a nossa vida iremos deparar com situações mais favoráveis ou menos favoráveis. Todos sabemos que a vossa tarefa não é fácil, mas estou convencido que para muitos de vós as coisas vão correr bem. O vosso trabalho e dos professores e o apoio dos pais merecem.

Como já disse, os próximos exames serão a última etapa antes do ensino superior, mas isso é uma outra narrativa. Um dia destes falaremos disso, cada coisa de sua vez.

Boa sorte e divirtam-se, se possível.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

OS CAMINHOS DIFÍCEIS DA INCLUSÃO

 No JN com abordagem na primeira página trata-se as dificuldades dos cidadãos com deficiência. Das 100 medidas que integravam a Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência (ENIPD) para os anos de 2021 a 2023 não se concretizaram em diferentes domínios cerca de 70%.

Existem matérias que muito provavelmente nunca sairão da agenda de preocupações. As dificuldades sentidas por pessoas com deficiência na sua vida diária e em múltiplas dimensões constituem uma dessas questões.

Recordo o relatório do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, "Pessoas com Deficiência em Portugal - Indicadores de Direitos Humanos 2023". Apesar de alguma evolução os indicadores são preocupantes.

Sem prestações sociais, em 2022 e com base em dados do INE, 62,3% das pessoas com deficiência com mais de 16 anos estariam em risco de pobreza face a 35,5% das pessoas sem deficiência. Considerando os apoios sociais a taxa de pobreza baixa 42,3% e apenas 21,5% na população sem deficiência o que sublinha o papel fundamental dos apoios sociais e a necessidade do seu aumento considerando a quase ausência de alternativas.

No que respeita ao emprego, no período entre 2015 e 2022 verificou-se um aumento de 4,6% no número de pessoas com deficiência inscritas como desempregadas.

Relativamente à educação e formação, em 2020, na população com deficiência nos alunos entre os 18 e os 24 anos, a taxa de abandono era de 22,1%, mais 13,6% do que nos alunos sem deficiência.

Apesar de alguma evolução a situação das pessoas com deficiência continua com grande vulnerabilidade face á pobreza e exclusão.

Uma outra questão crítica prende-se com a mobilidade, boa parte dos nossos espaços urbanos não são amigáveis para os cidadãos com necessidades especiais mesmo em áreas com requalificação recente. Estando atentos identificam-se inúmeros obstáculos.

Quantas passadeiras para peões têm os lancis dos passeios rampeados ou rebaixados ajustados à circulação de pessoas com mobilidade reduzida que recorrem a cadeira de rodas?

Quantas passadeiras possuem sinalização amigável para pessoas com deficiência visual?

Quantos obstáculos criados por mobiliário urbano desadequado?

Quantas dificuldades no acesso às estações e meios de transporte público?

Quantas caixas Multibanco são acessíveis a pessoas com cadeira de rodas?

Quantos passeios estão ocupados pelos nossos carrinhos, com mobiliário urbano erradamente colocado, degradado, que criam dificuldades enormes e insegurança a toda a gente e em particular a pessoas com mobilidade reduzida ou com deficiência visual?

Quantos programas televisivos ou serviços públicos disponibilizam Língua Gestual Portuguesa tornando-os acessíveis à população surda?

Quantos Centros de Saúde ou outros espaços da Administração central ou local criam problemas de acessibilidade?

Quantos espaços de lazer ou de cultura mantêm barreiras arquitectónicas?

Quantos estabelecimentos comerciais de múltipla natureza são, na prática inacessíveis a pessoas com mobilidade reduzida?

No que respeita à educação e como aqui escrevi há pouco, em consequência da alteração nos critérios de acesso ao ensino superior através de contingente específico para estudantes com deficiência e que na altura aqui comentei, em 2023 ficaram colocados 201 alunos, menos 54% que em 2022 com a colocação de 440 alunos. Ao que parece o MECI estará a avaliar os impactos das alterações realizadas em 2023 que, considerando o efeito produzido, se constituem mais um obstáculo na vida de pessoas com deficiência.

Considerando a educação dos mais novos, apesar das boas experiências que se desenvolvem, a verdade é que para as crianças com necessidades especiais e respectivas famílias, área que melhor conheço, a vida é muito complicada face à qualidade e acessibilidade aos apoios e recursos educativos e especializados necessários. No entanto, não esqueço os bons exemplos e práticas que conhecemos, assim como sei do empenho e profissionalismo da maioria dos profissionais que trabalham nestas áreas.

É certo que a questão da inclusão, em particular da inclusão em educação, é presença regular nos discursos actuais. É objecto de todas as apreciações, ilumina todas as perspectivas e acomoda todas as práticas, incluindo a “entregação” que manifestamente não promove inclusão, antes pelo contrário. Apesar do bom trabalho que existe, insisto, por vezes, demasiadas vezes, confunde-se colocação educativa, crianças com necessidades especiais na sala de aula regular, com inclusão. Aliás, até a exclusão de muitos alunos da sala de aula e das actividades comuns é frequentemente realizada … em nome da inclusão. E não acontece nada.

O termo está tão desgastado que já nem sabemos bem o que significa. Insisto em que não esqueço o que positivo se faz, mas conheço tantas práticas e tantos discursos que alimentam exclusão e que são desenvolvidas e enunciados ... em nome da inclusão. Tantas vezes me lembro do Mestre Almada Negreiros que na "Cena do Ódio" falava da "Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões".

Em termos mais genéricos. reafirmo algo que recorrentemente subscrevo, os níveis de desenvolvimento das comunidades também se aferem pela forma como lidam com as minorias e as suas problemáticas.

Por quanto tempo precisaremos de o relembrar?

terça-feira, 11 de junho de 2024

DIA INTERNACIONAL DO BRINCAR

 Assinala-se hoje o Dia Internacional do Brincar e, mais uma vez, umas notas sobre esta questão central no desenvolvimento e bem-estar das crianças.

Durante os últimos anos, provavelmente associada às mudanças nos estilos de vida e quadro de valores, foi-se instalando a ideia de que o brincar é supérfluo, é perda de tempo, o foco deve ser em trabalhar, em rendimento e resultados, em nome da competitividade e da produtividade, condição para a realização e felicidade. Felizmente, nos últimos tempos começam a ouvir-se muitas vozes contrariando este entendimento. Os que por aqui vão passando reconhecerão a frequência com que aqui refiro esta questão e esta não será certamente a última.

Progressivamente foi-se retirando aos miúdos o tempo e o espaço que muitos de nós na sua idade tínhamos e empregam-nos horas sem fim nas fábricas de pessoas, escolas, chamam-lhes. Aí os miúdos trabalham a sério, a tempo inteiro, dizem, pois só assim serão grandes a sério, dizem também.

Às vezes, alguns miúdos ainda brincam de forma escondida, é que brincar passou a uma actividade quase clandestina que só pais ou professores “românticos”, “facilitistas”, “eduqueses” ou “incompetentes” acham importante.

Muitos outros miúdos vão para umas coisas a que chamam “tempos livres” e que, com frequência, de livres têm pouco, onde, frequentemente, se confunde brincar com entreter e, outras vezes, acontece a continuação do trabalho que se faz na fábrica de pessoas, a escola.

Numa história que já aqui contei ouvi uma mãe que se mostrava muito aborrecida com o Atelier de Tempos Livres em que o filho, gaiato de uns 10 anos, passa boa parte das férias, porque os técnicos responsáveis "dão poucas actividades às crianças e depois elas põem-se a brincar umas com as outras".

Também são encaixados em dezenas de actividades fantásticas, com nomes fantásticos, que promovem competências fantásticas e fazem um bem fantástico a tudo e mais alguma coisa.

É inquietante perceber alguma visão que, de mansinho, se foi instalando também em muitos pais.

O brincar da infância vai-se encurtando, algum dia os miúdos vão nascer crescidos para já não precisarem de brincar. Importa ainda lembrar que também existem crianças, muitas, em que a infância é encurtada, diria roubada, porque são mão-de-obra barata e coisificada.

Era bom escutar os miúdos. Se lhes perguntarem (das diferentes formas de fazer perguntas e ouvir respostas) vão ficar a saber que brincar é a actividade mais séria que realizam, em que põem tudo o que são, sendo ainda a base de tudo o que virão a ser e a saber.

Em 2018 a Academia Americana de Pediatria recomendou aos pediatras que na sua prática clínica prescrevam “tempo para brincar”, um bem de primeira necessidade para o bem-estar dos mais novos com impacto em diferentes dimensões.

Insistem que não se trata de uma ideia “frívola” e os actuais estilos de vida de muitas famílias, por diferentes razões, tornam ainda mais importante que se reafirme a importância de brincar.

No caso mais particular, mas também essencial do brincar na rua sabemos que as questões da segurança e, sobretudo dos estilos de vida e a mudança verificada nos valores e nos equipamentos, brinquedos e actividades dos miúdos, o brincar na rua começa a ser raro.

Embora consciente das questões como risco, segurança e estilos de vida das famílias, creio que seria possível alguma oportunidade de “devolver” aos miúdos o circular e brincar na rua, talvez com a supervisão de velhos que estão sozinhos, as comunidades e as famílias conseguissem alguns tempos e formas de ter as crianças por algum tempo fora das paredes de uma casa, escola, centro comercial, automóvel ou ecrã.

Como muitas vezes tenho escrito e afirmado, o eixo central da acção educativa, escolar ou familiar, é a autonomia, a capacidade e a competência para “tomar conta de si” como fala Almada Negreiros. A brincadeira, a rua, a abertura, o espaço, o risco (controlado obviamente, os desafios, os limites, as experiências, são ferramentas fortíssimas de desenvolvimento e promoção dessa autonomia.

Curiosamente, se olharmos às nossas condições climatéricas, Portugal é um dos países com valores mais baixos no tempo dedicado a actividades de ar livre, situação com implicações menos positivas na qualidade de vida, nas suas várias dimensões, de miúdos e crescidos.

Talvez, devagarinho e com os riscos controlados, valesse a pena trazer os miúdos para a rua, mesmo que por pouco tempo e não todos os dias.

É, pois, importante que todos os que lidam com crianças, em particular, os que têm “peso” em matéria de orientação, pediatras, professores, psicólogos, etc. assumam o brincar como uma das “guide lines” para a sua intervenção.

Os mais novos vão gostar e faz-lhes bem.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

DIA DE PORTUGAL E EDUCAÇÃO

 Cumpre-se hoje o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, um dia em que se pensa Portugal.

Pensar Portugal hoje exige pensar os tempos que a Educação, a Escola, vivem e na forma como estamos a gerir o presente e futuro da nossa maior ferramenta de desenvolvimento, a escola pública, não esquecendo e também, naturalmente, o ensino privado.

Recordando a Constituição:

 

(…)

Artigo 73.º

Educação, cultura e ciência

1. Todos têm direito à educação e à cultura.

2. O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva.

(…)

Artigo 74.º

Ensino

1. Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar.

2. Na realização da política de ensino incumbe ao Estado:

a) Assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito;

b) Criar um sistema público e desenvolver o sistema geral de educação pré-escolar;

(…)

 

É “apenas” isto que está em causa nos dias de hoje, defender a existência de uma escola pública de qualidade que cubra as necessidades de toda a população.

Só a educação e a rede pública de qualidade podem promover equidade e igualdade de oportunidades.

Só a educação e a rede pública de qualidade podem ser verdadeiramente inclusivas e receber todos os alunos.

Só a educação e rede pública pode chegar a todos os territórios educativos e a todas as comunidades.

Só a educação e rede pública de qualidade promovem mobilidade social em circunstâncias de equidade no acesso.

Para que possam cumprir a Constituição a educação e a rede pública precisam de recursos materiais e recursos humanos valorizados e competentes.

Os custos da educação e rede pública de qualidade não são despesa, são investimento.

A políticas públicas de educação têm em cada momento histórico tem a suprema responsabilidade de garantir que assim seja.

É isso que hoje se exige. Em defesa da Educação e da Escola Pública. Em nome dos nossos filhos, dos filhos dos nossos filhos ...

domingo, 9 de junho de 2024

SONHOS

 Em dia de eleições europeias, uma história estranha.

Era uma vez um Homem que tinha um segredo, dizia ele. Todas as pessoas naquela terra, como em quase todas as terras, falavam muito frequentemente de coisas que gostavam de ter, ver, fazer, ver acontecer, etc., mas que não conseguiam. Algumas coisas porque não tinham possibilidades, outras porque não dependia delas, outras ainda por diversas razões que impossibilitavam chegar a elas.

Curiosamente, o Homem sempre que ouvia alguém a falar de algo desejado e não conseguido, dizia tranquilamente que para ele não existia problema, tinha aquilo sem grandes dificuldades. Se desconfiadamente lhe perguntavam como, respondia que tinha um segredo que, naturalmente, não revelava, segredo é segredo. Às vezes, as pessoas falavam em coisas até estranhas para ver o que o Homem diria, mas com a serenidade de sempre e um sorriso satisfeito, ele continuava a afirmar que para si aquilo não era um problema, também conseguia.

Acontece que o Homem vivia só e parecia ter uma vida tão cinzenta como o seu emprego o que levava as pessoas a ficarem cada vez mais convencidas de que o segredo do Homem seria a falta de juízo pois é impossível que alguém com boa cabeça diga que tem tudo e mais alguma coisa.

Como as pessoas que não têm juízo não podem ser levadas a sério, as pessoas começaram a rir-se do Homem e a meter-se com ele gozando com o seu segredo, a falta de juízo.

Ninguém sabia, os segredos não são para se saberem, que todas noites, quando se deitava o Homem escolhia o sonho que queria ter, sonhava-o tranquilamente, era esse o seu segredo. Nos sonhos conseguimos sempre ter o que queremos.

Por isso se chamam sonhos. E é bom sonhar.

Pelo sonho é que vamos.

Também em dia de eleições importa perceber que Europa que queremos, que alimente sonhos ou pesadelos.

sábado, 8 de junho de 2024

AS PROVAS QUE NÃO CONTAM PARA NADA

 Ainda as provas de aferição. No DN encontra-se uma peça na qual se refere que pais e alunos tendem a desvalorizar as provas porque “não contam para nada”.

Na peça aborda-se ainda qual deveria ser o ano da realização de provas agora no 2º ano, sugere-se e bem que deveriam ser no 4º, questiona-se o recurso a provas digitais e sublinha-se a necessidade de que as escolas recebessem resultados logo no início do ano seguinte.

Muitas vezes já aqui escrevi sobre as provas de aferição. Apenas acrescento que, do meu ponto de vista, quem me parece desvalorizar as provas de aferição tem sido o ME e agora o MECI. Se fossem valorizadas não se realizariam nos moldes, calendário e modelo, actuais.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

DOS ASSISTENTES OPERACIONAIS, PERDÃO, DOS AUXILIARES DE EDUCAÇÃO

 Há uns dias, uma peça no DN abordava a questão dos assistentes operacionais nas escolas. Pais, directores e professores sublinham a insuficiência do número por escola, a importância de formação par a tarefa que desempenham e os riscos da situação actual, insegurança para alunos e docentes, por exemplo.

Quando na imprensa surgem referências aos auxiliares de educação, não gosto da designação por “assistentes operacionais”, são quase sempre e sem ordenar por frequência, porque não existem em número suficiente nas escolas apesar de alguma mudança, porque estão em greve ou por que se verificou mais um episódio de agressão a estes funcionários das escolas.

São bem mais raros os trabalhos centrados na importância da sua função nas escolas. Já aqui referi em várias circunstâncias essa relevância e retomo algumas notas.

Nunca é demais sublinhar a importância das funções deste grupo profissional e a necessidade de rácios adequados, qualificação, segurança e carreira que minimizem problemas que têm vindo a ser regularmente colocados por pais, professores e directores.

Seria desejável que a gestão desta matéria considerasse as especificidades das comunidades educativas e não se seguissem critérios cegos de natureza administrativa que são parte do problema e não parte da solução. A passagem de tutela para as autarquias não aparenta ter introduzido mudanças substantivas.

Para além da variável óbvia, número de alunos, é necessário que se contemplem critérios como tipologia das escolas, ou seja, o número de pavilhões, a existência de cantinas, bares e bibliotecas e a extensão dos recreios ou a frequência de alunos com necessidades especiais.

Mais uma vez, os auxiliares de educação, insisto na designação, desempenham e devem desempenhar um importante papel educativo para além das funções de outra natureza que também assumem e que exige a adequação do seu efectivo, formação e reconhecimento. No caso mais particular de alunos com necessidades educativas especiais e em algumas situações serão mesmo uma figura central no seu bem-estar educativo, ou seja, são efectivamente auxiliares de acção educativa. A situação que atravessamos e se manterá no próximo ano lectivo potencia a importância do seu trabalho.

A excessiva concentração de alunos em centros educativos ou escolas de maiores dimensões não tem sido acompanhada pela adequação do número de auxiliares de educação. Aliás, é justamente, também por isto, poupança nos recursos humanos, que a reorganização da rede, ainda que necessária, tem sido feita com sobressaltos e com a criação de problemas.

As alterações de natureza funcional que a segurança em termo de saúde exige reflectem-se, naturalmente na necessidade de auxiliares de educação em número suficiente.

Os auxiliares educativos cumprem por várias razões um papel fundamental nas comunidades educativas que nem sempre é valorizado incluindo na estabilidade da sua contratação e formação situação de precariedade descontinuidade no exercício profissional.

Com frequência são elementos da comunidade próxima das escolas o que lhes permite o desempenho informal de mediação entre famílias e escola, têm uma informação útil nos processos educativos e uma proximidade com os alunos que pode ser capitalizada importando que a sua acção seja orientada, recebam formação e orientação e que se sintam úteis, valorizados e respeitados.

Os estudos mostram também que é nos recreios e noutros espaços fora da sala de aula que se regista um número muito significativo de episódios de bullying e de outros comportamentos socialmente desadequados. Neste contexto, a existência de recursos suficientes para que a supervisão e vigilância destes espaços seja presente e eficaz. Recordo que com muita frequência temos a coexistir nos mesmos espaços educativos alunos com idades bem diferentes o que pode constituir um factor de risco que a proximidade de auxiliares de educação minimizará.

Considerando tudo isto parece essencial o contributo dos auxiliares de educação para a qualidade dos processos educativos. Assim, é imprescindível a sua presença em número suficiente, que se mantenham nas escolas com estabilidade e que sejam formados, orientados e valorizados na sua importante acção educativa. Nos tempos que vivemos é ainda mais importante.

Qual será a parte que não se compreende?

A falta de auxiliares de educação e o apoio ao seu trabalho, evidentemente.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

A LER, "HÁ UMA SOLUÇÃO MODERNA PARA O TEMPO DE SERVIÇO DOS PROFESSORES"

 Se conseguir tem uns minutos de estimulante leitura sobre a actual questão do tempo de serviço dos professores. Trata-se do texto de Paulo Prudêncio no Público “Há uma solução moderna para otempo de serviço dos professores”. Não será fácil, mas percebe-se como amigável é o conhecimento do processo e das suas particularidades.


DOS PERCURSOS DE SUCESSO

 A Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência divulgou o relatório "Resultados Escolares: Sucesso e Equidade – Ensino Básico e Secundário” analisando o sucesso escolar dos alunos entre 2018 e 2022. O sucesso escolar é entendido como completar o ciclo de estudos no número de anos previsto sendo que relatório também relaciona o sucesso com o contexto social e económico dos alunos.

Verificam-se algumas assimetrias regionais entre sucesso dos alunos nos diferentes ciclos ainda que não com o mesmo nível de diferença. No entanto, globalmente regista-se uma subida entre 2018 e 2022.

No que respeita ao contexto social, verificam-se também algumas assimetrias regionais e, sem surpresa, os alunos que são abrangidos pela Acção Social Escolar têm níveis mais baixos de conclusão dos ciclos no tempo esperado. No entanto, diferença menor considerando o total dos alunos.

Reflectindo sobre estes indicadores, percursos de sucesso, incluindo os de anos anteriores e apesar da subida das taxas de percursos bem sucedidos fico sempre com algumas dúvidas. Quando se cruzam com dados das avaliações externas, exames e provas de aferição ou estudos do IAVE, têm-se verificado algumas incongruências que em alguns indicadores são significativas.

Este cenário mina a confiança no sistema educativo que tem, justamente, como instrumentos de regulação dispositivos de avaliação externa. Já aqui tenho abordado a questão a propósito de resultados de outros anos escolares.

Considerando como indicador de sucesso concluir o ciclo no tempo esperado, coloca-se a questão que já aqui tenho abordado. Poderemos interpretar a transição de ano como sucesso na aprendizagem de competências e conhecimentos ou teremos de considerar que ter sucesso é a “a passagem de ano” na velha fórmula de “transita, mas não progride”? Conhecem-se relatos de escolas em que se verifica alguma “pressão” para a “transição”.

Importa sublinhar com muita clareza que levantar esta questão não significa a defesa da retenção como ferramenta de sucesso e qualidade. Não é, sabemos que o “chumbo”, só por si, não gera sucesso e qualidade. Nenhuma dúvida sobre isto.

E volto a insistir. A qualidade promove-se, é certo e deve sublinhar-se, com a avaliação rigorosa e regular das aprendizagens e com regulação externa, sim, naturalmente, mas também com a avaliação justa e competente do trabalho dos professores e das escolas, com a definição de currículos adequados, com a estruturação de dispositivos de apoio a alunos e professores eficazes e suficientes, com a definição de políticas educativas que sustentem um quadro normativo simples e coerente e modelos adequados e reais de autonomia, organização e funcionamento desburocratizado das escolas, com a definição de objectivos de curto e médio prazo, etc.

É o que acontece, genericamente, nos países com mais baixas taxas de retenção escolar e que significam conhecimentos e competências adquiridas.

É o que ainda não conseguimos fazer acontecer de forma consistente, generalizada e sustentada em Portugal, apesar da imensidade de projectos, iniciativas, inovação, actividades, ondas de capacitação, que, demasiadas vezes, chegam do exterior às escolas. Podem ser interessantes, mas … não são mágicas, por mais que num exercício de "wishful thinking" os queiramos entender e vender como tal.

Não será este o caminho.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

DAS PROVAS DE AFERIÇÃO. MAIS UMA VEZ

Estava escrito nas estrelas. Os directores de escolas reportam dificuldades significativas de natureza informática, recursos e acesso à net em muitas situações. Por outro lado, mais de 10% dos alunos inscritos não realizaram a prova de Português na passada segunda-feira.

Peço desculpa pela insistência e repetição, mas enquanto este modelo se mantiver acho que se justifica. De facto, o modelo actual suscita-me algumas dúvidas, parece assentar num equívoco como há dias aqui escrevi.

Dado que ainda não foi alterada, a Lei de Bases do Sistema Educativo define que o ensino básico se organiza numa lógica de ciclos e não de disciplinas como o secundário. Assim, parece mais ajustado que uma avaliação externa de aferição deva ser realizada no ano final de cada ciclo e não nos anos intermédios, 2º, 5º e 8º ano, quando os alunos estão a meio do seu caminho de um ciclo. Acresce que no 4º e no 6º ano não existem exames finais pelo que não temos a imprescindível avaliação externa.

A argumentação para a sua realização nestes anos, assenta na ideia de que a identificação de dificuldades e a devolução de resultados às escolas que permitiriam a correcção de trajectórias futuras dos alunos. Certo, assim sendo e neste caso, a avaliação não é de aferição, mas de diagnóstico. No entanto, espera-se que diariamente nas salas de aula os professores realizem, mais formal ou mais informalmente, avaliações desta natureza, mais formativa, pois é a mais sólida ferramenta que possuem de regulação do trabalho dos alunos e do seu próprio trabalho. Assim tenham as escolas os recursos necessários para o apoio nas aprendizagens.

Por outro lado, quando olhamos para os resultados das provas de aferição e para o indicador “percursos de sucesso”, alunos que terminam o ciclo no número de anos previsto, verifica-se uma enorme disparidade, resultados preocupantes nas provas de aferição e taxas de percurso de sucesso superiores a 90% nos vários ciclos. Tive oportunidade aqui comentar os dados mais recentes.

Sabemos também que os resultados das provas de aferição, percebidos pelos alunos como não “contando para nada”, razão muito provável para a não participação de muitos alunos, chegam às escolas num tempo pouco ajustado para a eventual “recuperação” dos alunos. Sabemos ainda que os recursos disponíveis nas escolas e as implicações da falta de docentes criam sérios dificuldades.

Acresce que o deslumbramento com o novo mantra, transição digital, sustentou a manutenção de realização das provas em formato digital.

Tinha alguma esperança de que o bom senso e a reflexão sobre o que se passa noutros sistemas educativos que desencadearam uma reflexão e tomadas de decisão relativamente à introdução em termos excessivos dos recursos digitais, pudesse contribuir para um maior equilíbrio e prudência na utilização destes recursos, designadamente nos primeiros anos de escolaridade.

Por outro lado, são conhecidas com demasiada frequência queixas relativas ao acesso a equipamentos por parte dos alunos, à qualidade dos equipamentos, que, de acordo com os directores de escolas e agrupamentos, a insuficiência dos recursos necessários à adequada utilização dos equipamentos, nas escolas, mas em particular nas salas de aulas, infra-estruturas eléctricas e rede de net eficientes, por exemplo. Acontece ainda que existe uma enorme diversidade na literacia digital dos alunos. Deste cenário, apesar do esforço que vai ser realizado recorrendo ao apoio dos docentes de informática, podem decorrer situações sérias de desigualdade entre escolas e entre alunos e todos conhecemos múltiplas situações que evidenciam a enorme disparidade de recursos e da sua utilização.

Acresce que, para além da disparidade de recursos e competências e pensando sobretudo nos alunos do 2º ano, mas não esquecendo todos os outros, a aprendizagem da escrita é realizada, e bem, com o recurso predominante à escrita manual. Existem razões advindas da evidência, como agora se diz, que sustentam este caminho. Assim sendo, a proficiência da escrita em formato digital será na esmagadora maioria dos alunos de natureza e nível diferente o que pode contaminar os resultados ainda que, de acordo como o IAVE na amostra estudada as diferenças não sejam significativas.

Por coincidência, os meus netos estão a realizar as provas de aferição do 2.º e 5.º o que também me dá para entender a forma como são percebidas.

Finalmente, uma chamada de atenção para o texto do professor Carlos Ceia no Público sobre esta matéria.


terça-feira, 4 de junho de 2024

"O QUE SE PASSA NA INFÂNCIA NÃO FICA NA INFÂNCIA"

 Ontem realizou-se em Évora mais um encontro de lançamento do livro “O que se passa na infância não fica na infância” publicado pela Editora d´ideias. Trata-se de uma iniciativa do Professor João Pedro Gaspar e do Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Coimbra Paulo Guerra.

O livro recolhe histórias da infância de cinquenta pessoas de alguma forma ligadas ao mundo da infância, da sua protecção e da promoção dos seus direitos. Tive o privilégio de ser convidado e partilhar memórias da minha infância que certamente sustentaram o que tem sido a minha vida já longa.

A conversa, após a apresentação do livro realizada pelos coordenadores e pelos Professores Rui Godinho e Rute Agulhas, mostrou que, apesar do caminho percorrido, ainda muito está por fazer em matéria de promoção do bem-estar da infância.

Como por aqui já tenho escrito, apesar de existirem diferentes dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens e de existir legislação no mesmo sentido sempre assente no incontornável “superior interesse da criança", não possuímos ainda o que me parece mais importante, uma cultura sólida de protecção das crianças e jovens como alguns exemplos regularmente evidenciam.

Retomo a citação de Benedict Wells em “O fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se sabe quando nos vai atingir” com que terminei a minha história para o livro.

Um renovado agradecimento pelo convite a participar e … leiam “O que se passa na infância não fica na infância”. É duro, é bonito e deixa-nos a pensar no futuro dos miúdos. É já amanhã.





segunda-feira, 3 de junho de 2024

DA SAÚDE MENTAL

 Merece leitura atenta a entrevista do Professor José Miguel Caldas de Almeida no Expresso. É psiquiatra e foi director nacional na área Saúde Mental. É uma excelente reflexão e análise da realidade relativa à saúde mental e aos caminhos e recursos necessários.

A saúde mental tem sido continuadamente o parente pobre das políticas públicas de saúde.

Na realidade, existe muita gente a passar mal, pode ser na casa ao lado.

No entanto, como agora se diz, somos resilientes e queremos viver, seremos capazes de continuar. Nem que seja com recurso excessivo aos psicofármacos

domingo, 2 de junho de 2024

O SILÊNCIO DO CORO DE ESCRAVOS (DE NOVO)

 De novo, desta vez a propósito da peça no Público referindo o aumento exponencial de situações de tráfico de pessoas tendo como vítimas cidadãos timorenses.

Há pouco tempo referi aqui que o Relatório Anual de Segurança Interna recentemente divulgado evidenciava que a criminalidade associada à imigração ilegal e tráfico de pessoas foi a que mais cresceu em 2023, mais 68% e 29%, respectivamente.

De facto, têm sido recorrentes as referências a situações inaceitáveis de exploração e maus-tratos envolvendo muito frequentemente cidadãos estrangeiros.

É conhecida e muitas vezes objecto de intervenção e notícia a situação que se verifica no Alentejo, mas não só, e que tem vindo, por várias razões, a aumentar, de exploração brutal, condições de habitação degradantes, vitimização por redes organizadas de “tráfico” de mão-de-obra em que se encontram milhares de cidadãos estrangeiros. Nas primeiras levas surgiram muitos cidadãos oriundos de países de leste e mais recentemente de países asiáticos.

A escandalosa e irresponsável política (?!) em matéria de agricultura e ambiente estarão gradualmente a transformar o Alentejo, o Algarve também, num deserto, mas que neste momento alimenta quilómetros e quilómetros de culturas intensivas e depredadoras que para já exigem mão-de-obra não existente no país e a prazo condenarão os alentejanos a viver no deserto. Os responsáveis assobiam para o lado e, por vezes, parecem virgens ofendidas face a algo que toda gente conhecia.

Este cenário, o tráfico de pessoas e a exploração quase escravizante, tal como a fome, é das matérias que maior embaraço pode causar em sociedades actuais e deveria ser algo de improvável no séc. XXI em sociedades desenvolvidas. Parece algo “fora do tempo” e de impossível existência nos nossos países, estamos a falar da Europa. Mas existe e é sério o problema que, como não podia deixar de ser, atinge os mais vulneráveis.

Este negócio, o tráfico e exploração de pessoas de todas as idades, um dos mais florescentes e rentáveis em termos mundiais, alimenta-se da vulnerabilidade social, da pobreza e da exclusão o que, como sempre, recoloca a imperiosa necessidade de repensar modelos de desenvolvimento económico que promovam, de facto, o combate à pobreza e, caso evidente em Portugal, às enormes assimetrias na distribuição da riqueza. Também por isso, são recorrentes as notícias de portugueses usados como escravos em explorações agrícolas espanholas ou redes de contratação de trabalhadores da construção civil para países do primeiro mundo europeu.

Estes tempos são marcados por competição, diminuição de direitos e apoios sociais, pressão sobre a produtividade. Tudo isto é submetido a um deus mercado que não tem alma, não tem ética, é amoral e pode alimentar, sem particulares sobressaltos, algumas formas de escravatura mais "leves" ou, sobretudo em casos de particular fragilidade dos envolvidos, bastante pesadas.

As pessoas, muitas pessoas, apenas possuem como bem a sua própria pessoa e os mercados aproveitam tudo. Por isso, se compra e vende as pessoas dando-lhe a utilidade que as circunstâncias, a idade, e as necessidades de "consumo" ou "produção" exigirem.

O que parece ainda mais inquietante é o manto de silêncio e negligência, quando não cumplicidade, que frequentemente cai sobre este drama tornando transparentes as situações de exploração ou escravatura, não se vêem, não se querem ver.

Neste universo não conseguimos ouvir o coro dos escravos, não têm voz.

sábado, 1 de junho de 2024

O DIA DA CRIANÇA, UM DIA SERÃO TODOS. SERÁ?

 A agenda das consciências determina em muitos países, incluindo Portugal, que se cumpra para hoje o Dia da Criança. A liturgia variada associada à efeméride vai acontecer como de costume. As visitas, os passeios, as festas, etc., a oferta de espectáculos de todas as naturezas mostrará uma comunidade preocupada em fazer as crianças felizes. Muitas estão e parecem divertir-se, ainda bem. Algumas outras terão de passar por um dia cansativo.

A imprensa fará eco dos múltiplos eventos dirigidos às crianças, ouvirá por uma vez as crianças e produzir-se-ão, certamente, muitos discursos dirigidos aos miúdos e ao seu mundo.

Claro, neste dia, ouvi-las sobre o que pensam do mundo, do seu mundo e da vida das pessoas, é "giro". É verdade que passa depressa, amanhã já não as ouvimos sobre o que as inquieta e lá voltam os miúdos, muitos, a gritar e a agitar-se para se fazerem ouvir.

Tudo bem, pois que seja, este tipo de efemérides serve também para isso mesmo, a encenação, sempre bem-intencionada da preocupação que descansa as consciências.

É verdade, felizmente, que muitas crianças vivem felizes, por assim dizer, adoptadas pelos pais, acolhidas pela escola e pela comunidade, são o futuro a crescer. É bom que assim seja.

No entanto e nestas alturas, lembro-me com frequência do Mestre Almada que na Cena do Ódio falava sobre, "a Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões". De facto, apesar da vaga de discursos e iniciativas em nome das crianças, muitos passam mal, muito mal, todos sabemos. Não cabem no Dia da Criança.

Não cabem os que diariamente são vítimas de crimes e maus-tratos.

Não cabem muitos dos que vivem numa instituição esperando por uma família que nunca virá.

Não cabem os que, por várias razões, são alvo de discriminação e a quem são negados direitos básicos.

Não cabem os que vivem em famílias que os não desejam e mal os suportam.

Não cabem os que a pobreza ameaça as suas necessidades básicas.

Não cabem os que vivem em famílias que sobrevivem envergonhadamente na pobreza que nos deveria envergonhar a nós.

Não cabem os que a escola não consegue ajudar a construir um futuro a que valha a pena aceder e sofrem políticas educativas nem sempre suficientemente amigáveis para os todos os miúdos.

Não cabem os que sofrem de solidão e isolamento sem que se perceba como não estão bem.

Na verdade, estes miúdos de que acabei de falar, por vezes, parece que não existem, são transparentes, nem os vemos. Por isso, comemora-se o Dia da Criança com a convicção ingénua ou voluntarista de que, como dizia Pessoa, "o melhor do mundo são as crianças" e que elas são felizes, todas.

O que, obviamente, não corresponde à realidade, mas os poetas ... são uns fingidores.

E sabem o que é mais inquietante?

Este texto não prescreve.