Foi aprovada pelo MECI a anunciada
a reformulação da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, a primeira mudança
da “reforma curricular” que também estará em curso a partir do próximo ano
lectivo.
Segundo o primeiro-ministro pretende-se
“reforçar o cultivo dos valores constitucionais" e garantir que seja
liberta “das amarras de projectos ideológicos ou de facção”.
Do que já se sabe, são criados
oito domínios, direitos humanos, democracia e instituições políticas,
desenvolvimento sustentável, literacia financeira e empreendedorismo, saúde,
media, risco e segurança rodoviária, pluralismo e diversidade cultural.
Estes oito domínios que serão
operacionalizados através da definição de aprendizagens essenciais substituem os
dezassete temas actualmente definidos para a disciplina, como Direitos Humanos;
Igualdade de Género; Interculturalidade; Desenvolvimento Sustentável; Educação
Ambiental; Saúde; Sexualidade; Media; Instituições e Participação Democrática;
Literacia Financeira e Educação para o Consumo; Segurança Rodoviária; Risco,
Empreendedorismo; Mundo do Trabalho, Segurança defesa e paz, Bem-estar animal e
Voluntariado.
Aguardemos pela definição das
aprendizagens essenciais que serão definidas.
Até lá umas notas de reflexão
global.
Sabemos como os estilos de vida
actuais têm colocado graves dificuldades às famílias para assegurarem a guarda
das crianças em horários não escolares. A resposta tem sido prolongar a estadia
dos miúdos nas instituições escolares alimentando o que considero um dos vários
equívocos no universo da educação, a afirmação de uma visão de “Escola a Tempo
Inteiro” em vez de “Educação a Tempo Inteiro”. O modelo é bem recebido por
muitos pais e tolerado por muitos outros por falta de alternativas.
Importa relembrar que para os
alunos mais novos e de acordo com o que está definido legalmente, considerando
o horário curricular, as Actividades de Enriquecimento Curricular e a
Componente de Apoio à Família, a estadia dos alunos na escola pode atingir bem
mais de 40 horas semanais se os pais necessitarem. Muitos alunos estão mesmo
nas escolas 50h ou mais por semana.
Importa também acentuar que fora
dos contextos escolares, o padrão relacional entre adultos, de todas as
condições, exprime também com demasiada frequência descontrolo e
conflitualidade. O comportamento agressivo, verbal, físico, psicológico, etc.,
tornou-se quase, um novo normal em múltiplos contextos.
Sabemos também que a ideia de que
a “família educa e a escola instrói” já não colhe e espera-se que a escola não
forme “apenas” técnicos, mas cidadãos, pessoas, com qualificações ao nível dos
conhecimentos em múltiplas áreas.
Um sistema público de educação
com qualidade, desde há muito de frequência obrigatória e progressivamente mais
extenso, é uma ferramenta fundamental para a promoção de igualdade de
oportunidades, de equidade e de inclusão. Uma educação global de qualidade é de
uma importância crítica para minimizar o impacto de condições sociais,
económicas e familiares mais vulneráveis que, evidentemente, não constituem as famílias que ficaram muito inquietas com a abordagem realizada em algumas escolas no âmbito da disciplina
de Cidadania e Desenvolvimento, embora, naturalmente, muitos aspectos possam ser discutidos.
Não é possível que a leitura
regular da imprensa escrita, sobretudo nos últimos tempos e no que respeita à
educação tenha na terminologia de boa parte dos trabalhos publicados e sem
qualquer ordenação de frequência ou preocupação, alunos desmotivados, agressões
a professores, agressões a alunos, agressões a funcionários, “bullying”,
violência escolar, humilhações, falta de autoridade dos professores, imagem
social degradada dos professores, professores desmotivados, famílias
incompetentes, pais negligentes, demissão familiar, indisciplina, recusa,
contestação, insucesso, facilitismo, burocracia, currículos desajustados,
insegurança, medo, receio, etc. São ainda preocupantes os indicadores relativos a
violência nas relações de namoro entre jovens, sendo que muitos a entendem como
“normal”, tal como inquietam os padrões de consumo de álcool ou droga.
Neste contexto parece-me claro a
que a abordagem de matérias actualmente definidas ou, na versão agora anunciada, contemplando oito domínios acima referidos são fundamentais ao longo do processo de
formação de crianças, jovens e adultos.
No entanto e como já tenho
referido também entendo que a abordagem a estas matérias não tem
necessariamente de ser “disciplinarizada”, mas esta é ainda uma outra questão.
Nas sociedades contemporâneas um
sistema público de educação com qualidade, desde há muito de frequência
obrigatória e progressivamente mais extenso, é uma ferramenta fundamental para
a promoção de igualdade de oportunidades, de equidade e de inclusão. É através
de uma educação global de qualidade que se minimiza o impacto de condições
sociais, económicas e familiares mais vulneráveis.
Dito isto deixem-me olhar para a
fonte do mal, a “ideologia”.
Acho sempre curiosas as
discussões em torno das “questões ideológicas” designadamente no universo da
educação. Tenho para mim que não existem políticas públicas de educação, ou de
outra área, que sejam neutras, assépticas, imunes, etc. em matéria de valores
sociais ou ideologia, seja tudo isto o que for.
Ao defender, por exemplo,
princípios de educação inclusiva, já me tem acontecido ser “acusado” de
produzir um discurso ideológico. Muito provavelmente, os meus interlocutores
esperariam que me procurasse “defender” através da evidência científica. No entanto,
a minha resposta começa habitualmente com algo como, “ainda bem que fui claro,
o meu discurso corresponde a uma visão de sociedade, de educação e de escola.
Agora vamos à evidência científica que a sustenta". Provavelmente, nas
mais das vezes, ficamos na mesma, cada qual com a sua visão ideológica, pois
claro.
Acontece ainda que, com
frequência se confunde ideologia com partidarismo. Como já afirmei, tenho uma
visão ideológica do mundo que me rodeia, mas não consigo encaixar-me numa visão
partidária o que, naturalmente, será uma limitação da minha parte.
A verdade é que já cansa a forma
habilidosa como muitas questões são abordadas em função da “ideologia”.
Boa parte das pessoas que
contestam o que afirmam constituir uma visão ideológica entende que o que
defendem não tem carga ideológica, é asséptico, sendo que as ideias contrárias,
essas sim, são sustentadas pela ideologia e devem ser combatidas.
Tantas e tantas vezes tropeço com
este entendimento que envolve uma outra dimensão menos explicitada, a ética.
Tantos interlocutores me dizem com a maior tranquilidade que quando os estudos
ou a experiência não vão ao encontro das suas ideias, certas e pragmáticas, os
estudos são mal feios e contaminados pela ideologia ou que a experiência não
serve de argumento. Quando discordo, o meu discurso é ideológico e o do
interlocutor é correcto, asséptico do ponto de vista ideológico, obviamente,
suportado com a evidência científica que ao meu é negado porque os estudos …
são ideológicos. Sim, como disse, o que penso tem uma carga ideológica, é assim
que entendo o mundo.
Na verdade, não acredito em
visões de sociedade sem arquitectura ideológica, ética ou moral. Isso não existe, só
por desonestidade intelectual se pode afirmar tal.
Como disse e reafirmo, há décadas
que não tenho qualquer espécie de filiação partidária, não me orgulho nem me
queixo, é assim que penso. No entanto, tenho posições que são de natureza
ideológica sobre o que me rodeia e o que respeita à vida da gente.
Não as entendo como únicas,
imutáveis ou exclusivas, aliás, gosto mais de discutir e aprender com alguém
que também assim se posiciona, sem manha, sem a falsidade do “não tenho
ideologia” como se isso fosse uma fonte de autoridade.