segunda-feira, 11 de agosto de 2025

DA PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS

 As mudanças orgânicas no Ministério da educação e as alterações na questão da mobilidade implicam que muitos docentes que integram as Comissões de Protecção e Crianças e Jovens voltarão às escolas com o impacto negativo que parece óbvio e mais significativo se atentarmos que se trata de Protecção de crianças e jovens.

Para sublinhar a relevância do trabalho destes docentes cujo trabalho fui acompanhando durante muito tempo através da colaboração em diversas iniciativas de muitas Comissões, recordo o Relatório de Actividade da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e da Protecção das Crianças e Jovens relativo a 2024. Vejamos alguns indicadores.

No ano anterior foram recebidos pelas Comissões de Protecção e Crianças e Jovens 89008 processos de Promoção e Protecção de crianças e jovens em risco. Este valor traduz um aumento de 5,5% relativamente a 2023.

A negligência é a situação de risco mais denunciado, 19 107 casos, 30,4% do total, depois surge a violência doméstica, 17295 casos, um abaixamento ligeiro comparando a 2023. Em terceiro lugar estão os comportamentos de perigo na infância e juventude com 11795 situações, 18,8% do total e uma subida de 1425 situações face a 2023.

 As Comissões de Protecção identificaram 13.373 crianças e jovens com diagnóstico de necessidade de aplicação de medida de promoção e protecção. A maior prevalência verifica-se na faixa etária dos 15 aos 17, 26,9% do total, com 3599 jovens, 1562 do sexo feminino e 2037 do sexo masculino.

As forças de segurança comunicaram 425 das situações e as escolas 18, 8%.

Verificou-se, naturalmente, um maior volume de actividade das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens.

De há muito e a propósito de várias questões afirmo que em Portugal, apesar de existirem diferentes dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens e de existir legislação no mesmo sentido sempre assente no incontornável “superior interesse da criança", não possuímos ainda o que me parece mais importante, uma cultura sólida de protecção das crianças e jovens como alguns exemplos regularmente evidenciam.

Por outro lado, as condições de funcionamento as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens que procuram fazer um trabalho eficaz estão ainda longe de ser as mais adequadas e operam em circunstâncias difíceis. Na sua grande maioria, as Comissões têm responsabilidades sobre um número de situações de risco ou comprovadas que transcendem a sua capacidade de resposta.

A parte mais operacional das Comissões, a designada Comissão restrita, é composta por muitos técnicos em tempo parcial. Tal dificuldade repercute-se, como é óbvio, na eficácia e qualidade do trabalho desenvolvido, independentemente do esforço e empenho dos profissionais que as integram. A anunciada saída de professores que as integram agrava de forma substantiva a insuficiência de recursos.

Muitas vezes tenho aqui referido a necessidade maior investimento e eficiência no âmbito do sistema de protecção de menores. Para além do reforço dos recursos das CPCJ seria desejável uma melhor integração e oportunidade das respostas a situações detectadas, uma adequação às mudanças e novas realidades na área dos Tribunais de Família e Menores, etc. Os serviços de apoio às comunidades, ainda que regulados e escrutinados, deverão ser suficientes e adequados em recursos e procedimentos.

Este cenário permite que ocorram situações, frequentemente com contornos dramáticos, envolvendo crianças e jovens que sendo conhecida a sua condição de vulnerabilidade não tinham, ou não tiveram, o apoio ou os procedimentos necessários. É então provável que, depois de se conhecerem episódios mais graves, possamos ouvir expressão que me deixa particularmente incomodado, a criança estava “sinalizada” ou “referenciada”, mas dessa "sinalização" não decorreu a adequada intervenção.

Sinalizamos e referenciamos com relativa facilidade, a grande dificuldade é minimizar ou resolver os problemas das crianças referenciadas ou sinalizadas. Importa ainda não esquecer as que passam mal em diferentes aspectos sem que estejam sinalizadas ou referenciadas. Nos tempos que atravessamos os riscos serão maiores.

Por isso, sendo importante registar uma aparente menor tolerância da comunidade aos maus tratos aos miúdos, também será fundamental que desenvolva a sua intolerância face à ausência de respostas que más opções em matéria de políticas públicas sustentam.

As crianças são resilientes, mas família, afecto, contextos educativos de qualidade, são bens de primeira necessidade.

Como afirma, Benedict Wells em “O fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se sabe quando nos vai atingir”.

domingo, 10 de agosto de 2025

FARDOS

 Quando estamos por aqui no Monte qualquer tarefa ou circunstância nos faz lembrar o nosso querido Mestre Zé Marrafa. Hoje, num dia de abafura áspera, lembrei-me de uma conversa tida num dia de muito calor sentados à sombra da alfarrobeira depois de apanharmos a cebola e com uma “mini” a refrescar a garganta. Sempre que lhe perguntava se queria uma “mini” respondia “e não fará mal?”. Não Mestre Zé, não faz mal e sabia sempre muito bem acomapanhada das lérias.

Voltando à conversa e comentando que o calor torna a lida mais dura, o Mestre Zé foi buscar uma história, ele gostava de contar histórias como todos nós, os velhos. Quando ainda tinha casado há pouco tempo, ele a mulher e o sogro envolveram-se numa empreitada, o dinheiro não era muito e procurava "jogar-se" ao que podia para fazer uns amanhos na casita.

O trabalho era carregar fardos de palha que estavam numa herdade lá para os lados de Torre dos Coelheiros. A herdade tão tinha tractor que içasse os fardos para cima da "rolota" (o atrelado de carga do tractor) e o Velho Marrafa tomou conta da empreitada de carregar os fardos todos para serem armazenados. A mulher e o sogro estavam em cima da "rolota" e iam arrumando os fardos que o Velho Marrafa levantava do chão com um forcado, uma forquilha de duas pontas, para cima do atrelado.

Esta empreitada veio à conversa porque sendo pagos ao fardo, que tinha por volta de 50 kg cada, saíam de casa ainda de noite e trabalhavam até ficar escuro. Faziam umas quatro carradas de 200 fardos cada. Acresce que este trabalho se fez, foi essa a lembrança, com um calor que até no Alentejo se estranhava ou, como dizia o Velho Marrafa, estava mesmo áspero.

No fim, da história e da cerveja, o Velho Marrafa, com o ar de sempre dizia, "Sr. Zé, sem trabalho nada se faz, nada se tem. Amanhei a casa, sem a empreitada dos fardos não conseguia".

Mas esta é uma história antiga, do tempo em que os fardos eram mais pesados de carregar.

Depois de tanta lida, o Mestre Zé não merecia o último fardo que a vida lhe trouxe.

sábado, 9 de agosto de 2025

MUROS

 Deixem-me insistir. Muitas das reacções à decisão do Tribunal Constitucional e do veto do Presidente da República à proposta de lei dos Estrangeiros sublinham o sobressalto causado por discursos produzidos na imprensa e nas redes sociais, obviamente, o aumento de episódios de agressão verbal e física "apenas" pela razão do outro ser diferente ou percebido como diferente e como se sustentam os muros atrás dos quais ficam as “pessoas de bem”, uma figura de definição impossível. Mais do que questões de natureza ideológica, trata-se de uma questão política naturalmente, mas sobretudo de natureza ética, cívica e … decência.

Como há pouco aqui escrevi, existem linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas e estão a ser ultrapassadas e de forma cada vez mais inquietante ignorando o quadro de valores que regula, ou deve regular, o discurso e comportamento social e, naturalmente o quadro constitucional em vigor.

Do que se tem ouvido, lido e conhecido, comentar o quê? Como?

Para um tipo que em jovem adulto passou pela mudança verificada em Abril de 74 e conheceu o tempo antes e o tempo depois interroga-se e inquieta-se, porque falhámos, que mundo estamos a construir? O que esperam os meus netos e todas as crianças que têm a vida na sua frente?

Estamos num tempo de perplexidade e dúvida face ao crescimento de discursos populistas e demagógico, apelando à intolerância, ao xenofobismo e a valores de direita radical muitos deles atentatórios de direitos humanos básicos. Os exemplos são muitos, primeiro lá por fora e agora também por cá vão-se multiplicando réplicas deste caminho que nos deixa inquietos face ao futuro e criando ambientes de onde eclodem os ovos da serpente.

Milhões de excluídos e pobres e de jovens sem presente e sem futuro são um alvo fácil para discursos populistas e radicais.

As sementes de mal-estar que que estes milhões de pessoas carregam, muitos deles desde criança são muito facilmente capitalizadas e mobilizadas.

Talvez a relativa tranquilidade com que se assiste à construção de muros e barreiras de natureza diversa acabe por não ser estranha.

Eles vão sendo construídos nas nossas vidas conduzindo no limite à construção de "condomínios de um homem só" rodeado de muros para que ninguém entre.

Estes muros são menos visíveis, mas não perdem eficácia.

Como aqui há dias escrevia, a mediocridade da generalidade das lideranças e o que lhes permitimos fazer criaram, por exemplo, um mundo de desigualdade e exclusão. É aqui, insisto, que nasce o que nos assusta.

É esta a batalha que não podemos perder e estou cheio de dúvidas se a estamos a ganhar. Também passa pela educação, pela escola, pela formação cívica e pela cidadania.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

UM HOMEM E UMA MULHER CHAMADOS PAIS

 Era uma vez um homem e uma mulher que se chamavam Pais. Tinham um filho pequeno que era o mundo deles. De tão desejado, quando chegou entrou o tudo naquela casa.

Gostavam tanto dele que não se afastavam um minuto, nunca. Um deles, Pais, estava sempre ao pé do filho.

Acompanhavam-no para todo o lado. Quando não era possível ficar bem junto, ficavam o mais perto possível para estarem atentos e vigilantes. Isto tanto acontecia quando o filho ia para a escola, como quando, mais raramente, brincava no parque, sempre com poucos amigos, mas com os Pais bem pertinho.

O filho foi crescendo sempre à sombra de Pais, tão próximos estavam, nem um solzinho lhe dava cor à pele. Uma noite, já o filho era mais velho, ouviu-se um barulho que sobressaltou Pais, numa das raríssimas ocasiões em que ambos dormiam. Assustados, correram a ver do filho, claro.

Encontraram a caixa onde o guardavam destapada e, ao lado da tampa, um bilhete, “Pais, preciso de aprender a respirar. Voltarei um dia, não se zanguem”.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

A MATEMÁTICA É UMA COISA MUITO DIFÍCIL

 Os resultados dos exames de Matemática na 2.ª fase dos exames no 9.º ano acentuam a preocupação com o nível genérico de conhecimento dos alunos na disciplina de Matemática, área de conhecimento nuclear e que alimenta outras áreas do saber.

Urge um entendimento sobre como inverter este caminho. No entanto, nem entre os docentes da disciplina parece existir consenso sobre o que se torna necessário.

A Sociedade Portuguesa de Matemática sobrevaloriza a questão da alteração curricular, a passagem das “metas curriculares” para as “aprendizagens essenciais” e a Associação dos Professores de Matemática considera os resultados são ainda consequência das “metas curriculares” e as “aprendizagens essenciais” terão um efeito positivo alertando para risco de agravamento no curto prazo com, por exemplo, os efeitos da falta de docentes.

Não sou especialista em questões curriculares, mas parece-me curioso que a Sociedade Portuguesa de Matemática e a Associação dos Professores de Matemática, não sei com que dimensão representativa dos professores de matemática têm habitualmente entendimentos diferentes com um argumentário que em alguns aspectos que me são mais familiares, o funcionamento dos alunos por exemplo, me levantam dúvidas e, por vezes, me parecem fruto de agendas para além da Matemática.

Lembro-me, por exemplo, de Nuno Crato, de há muito ligado à SPM e sempre com “base na evidência” ter, enquanto ministro, proclamado a existência de professores a mais e a “inevitabilidade da redução”. Sabemos o que se tem verificado.

Continuo a entender que estruturas curriculares demasiado extensas, normativas e prescritivas são pouco amigáveis para o bom desempenho da generalidade dos alunos, pouco amigáveis para acomodar a diversidade.

Por outro lado, e como aqui tenho escrito, o desempenho a Matemática pode ainda ser influenciado, não numa relação de causa-efeito, por múltiplas variáveis como número de alunos por turma, tipologia das turmas e das escolas e dos contextos, dispositivos de apoio às dificuldades de alunos e professores ou questões de natureza didáctica e pedagógica.

Acresce a esta complexidade um conjunto de outras variáveis menos consideradas por vezes, mas que a experiência e a evidência mostram ter também algum impacto.

São variáveis de natureza mais psicológica como a percepção que os alunos têm de si próprios como capazes de ter sucesso associada a contextos familiares de natureza diversa, por exemplo.

É também conhecido e os resultados do PISA sublinham, que os pais com mais qualificação e de mais elevado estatuto económico têm expectativas mais elevadas sobre o desempenho escolar dos filhos o que se repercute na acção educativa e nos resultados escolares e, naturalmente, mais facilmente mobilizam formas de ajuda para eventuais dificuldades, seja nos TPC, seja através de ajuda externa.

Finalmente uma outra variável neste âmbito, a representação sobre a própria Matemática. Creio que ainda hoje existe uma percepção passada nos discursos de muita gente com diferentes níveis de qualificação de que a Matemática é uma “coisa difícil” e ainda de que só os mais “inteligentes” têm “jeito” para a Matemática. Esta ideia é tão presente que não é raro ouvir figuras públicas afirmar sem qualquer sobressalto e até com bonomia que “nunca tiveram jeito para a Matemática, para os números”. É claro que ninguém se atreve a confessar uma eventual “falta de jeito” para a Língua Portuguesa e, por vezes, bem que parece. A mudança deste cenário é uma tarefa para todos nós e não apenas para os professores e seria importante que acontecesse.

 

De facto, este tipo de discursos não pode deixar de contaminar os alunos logo desde o 1º ciclo convencendo-se alguns de que a Matemática vai ser difícil, não vão conseguir ser “bons” e a desmotivar-se.

Não fica fácil a tarefa dos professores, mas no limite e como sempre será a escola, o braço operacional da comunidade, a fazer a diferença.

Parece ainda claro e é uma questão central que para promover mais e melhor sucesso e não empurrar os alunos para os anos seguintes sem nenhuma melhoria nas suas competências ou saberes é essencial, como referia acima, criar e tornar acessíveis a alunos, professores e famílias apoios e recursos adequados e competentes de forma a evitar a última e genericamente ineficaz medida do chumbo.

Sabemos também que a escola pode e deve fazer a diferença, em muitas escolas isso acontece. Mas para que isto seja consistente e não localizado também sabemos que o sucesso se constrói identificando e prevenindo dificuldades de forma precoce, com a definição de currículos adequados, com a estruturação de dispositivos de apoio eficazes, competentes e suficientes a alunos e professores, com a definição de políticas educativas que sustentem um quadro normativo simples e coerente e modelos adequados e reais de autonomia, organização e funcionamento desburocratizado das escolas, com a definição de objectivos de curto e médio prazo, com a valorização do trabalho dos professores, com práticas de diferenciação que não sejam "grelhodependentes", com expectativas positivas face ao trabalho e face aos alunos, com melhores níveis de trabalho cooperativo e tutorial, quer para professores quer para alunos, etc.

Uma nota final para a importância da avaliação externa como forma imprescindível de regulação. No entanto, não entendo que só por existirem e serem muitos, os exames finais, só por si, insisto, só por si, melhorem a qualidade. É como esperar que só por medir muitas vezes a febre irá baixar. A qualidade é promovida considerando o que escrevi em cima e regulada em termos globais pela avaliação externa que permite análises necessárias, nacionais ou internacionais como, por exemplo, o TIMSS.

É com a escola, por dentro da escola e integrado em sólidos projectos de autonomia e responsabilidade e com recursos adequados que o caminho se constrói.

Sabemos tudo isto. Nada é novo. Só falta um pequeno passo.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A QUALIFICAÇÃO É IMPRESCINDÍVEL, MAS É MUITO CARA

 Terminou dia 4 a 1.ª fase do concurso de acesso ao superior verificando-se uma acentuada descida do número de candidatos comparativamente ao ano anterior, 49959, menos 9046 que em 2024. Os números deste ano são muito próximos aos de 2018. No contexto associado à pandemia verificaram-se alterações nas regras relativas aos exames e à conclusão do secundário que terão promovido uma significativa subida no número de candidaturas. Entretanto após 22/23 começou a baixar e agora muito significativamente.

Não me parece que a razão para o abaixamento deste ano assente de forma significativa no ajustamento do processo de conclusão e exames do secundário assim como as oscilações demográficas também não não o explicarão.

Para além de um eventual cenário de desencanto ou ausência em muitos jovens de uma imagem criadora de futuro associada a qualificação de nível superior, creio que os custos de frequência do ensino superior entre propinas, materiais, vida diária e necessidades de deslocação e alojamento difíceis de suportar para muitos jovens e famílias e um dispositivo de bolsas insuficiente um peso significativo neste abaixamento de candidaturas.

Aliás, para além deste menor número de alunos a candidatar-se ao superior também se verifica um aumento do abandono de estudantes no final do primeiro ano de frequência do ensino superior.

De acordo com o divulgado no portal Inforcursos  pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, em 23/24, nos cursos técnicos superiores profissionais, CTeSP, 28.1% dos alunos não estavam a frequentar o ensino um ano depois de iniciarem o curso e nas licenciaturas a taxa de abandono é de 11,2%, também superior aos anos anteriores.

A estes indicadores não serão certamente alheios os custos da frequência do ensino superior ou o “desencanto” com a escolha.

Como tantas vezes tenho afirmado, a qualificação é um bem de primeira necessidade e um forte contributo para projectos de vida bem-sucedidos pelo que o elevado abandono é uma questão crítica como crítica será a não candidatura de muitos jovens.

Sabe.se também que se tem verificado um aumento do número de candidatos a bolsa e é também reconhecido que em muitas famílias se tem verificado uma perda de rendimento.

No entanto, apesar destas dimensões poderem constituir alguma justificação creio que importa não esquecer uma questão de natureza estrutural, estudar no ensino superior é muito caro em Portugal. Também a mais recente alteração do regulamento de atribuição de bolsas não minimizou esta situação.

Algumas notas começando por alguns dados que já aqui tenho citado. De acordo com Relatório do CNE, "Estado da Educação 2019", a percentagem de alunos que em Portugal acede a bolsas de estudo para o 1º ciclo do superior está no segundo escalão mais baixo da análise, entre 10 e 24,9%. Para comparação, Irlanda, Países Baixos estão no intervalo entre 25% e 49,9% e a Suécia no superior a 75%. Países como Espanha, França, Reino Unido e muitos outros têm percentagens de alunos com apoio superiores a nós e, sem estranheza, também maior nível de qualificação.

Estudos comparativos internacionais, “Social and Economic Conditions of Student Life in Europe”, por exemplo, também mostram que as famílias portuguesas são das que suportam uma fatia maior dos custos de frequência do superior sendo que ainda se verifica uma forte associação entre a frequência do ensino superior e nível de escolarização e estatuto económico das famílias.

Apesar de um abaixamento do valor as propinas no ensino público, as dificuldades sentidas por muitos estudantes do ensino superior e respectivas famílias, quer no sistema público, quer no sistema privado com valores bem mais altos de propinas, são frequentemente consideradas, do meu ponto de vista, de forma ligeira ou mesmo desvalorizadas. Tal entendimento parece assentar na ideia de que a formação de nível superior é um luxo, um bem supérfluo pelo que ... quem não tem dinheiro não tem vícios.

Não é particularmente animador o que a actual Secretária de Estado do Ensino Superior, Cláudia Sarrico, tenha referi em 2022 que, “as propinas de licenciatura são baixíssimas — muito menos do que se paga pelo infantário dos miúdos”, e que o “ensino superior gratuito, ou quase, tem um efeito regressivo”.

A questão é que a educação e qualificação são a melhor forma de promover desenvolvimento e cidadania de qualidade pelo que as políticas públicas devem enquadrar e sustentar os processos de educação e qualificação dos cidadãos, de todos os cidadãos.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

ELE E ELA NÃO FALAM COMO A GENTE

 Há algumas semanas o MECI apresentou numa reunião com directores escolares um conjunto de medidas no âmbito de desenvolvimento do Plano +Aulas+Sucesso.

Entre as medidas apresentadas inscreve-se o aumento do número de mediadores culturais passando a 310 em 25/26 que intervirão em 347 unidades orgânicas o que representa um aumento de 23 face ao ano anterior e a intervenção em mais 28 unidades orgânicas.  O número, definido de acordo com o número de alunos migrantes inscritos em 23/24, continua a ser francamente insuficiente face à realidade das escolas e agrupamentos e aos problemas de alunos de outras nacionalidades em particular no que respeita ao domínio da língua.

Parece claro que a presença crescente de alunos estrangeiros nas escolas portuguesas coloca enormes desafios e necessidades. De acordo com dados do MECI, acordo com o ME, o número de estrangeiros no ensino não superior passou de cerca de 53 mil, 5,3% em 18/19 para cerca de 140 mil em 23/24, 13.9% da população escolar.

Cerca de metade são oriundos do Brasil, sete em cada dez sejam oriundos de um país da CPLP, mas os restantes 28% terão tido pouco ou nenhum contacto com o português antes da sua chegada ao país e, em muitos casos, nem sequer com o alfabeto latino. Índia, Venezuela, Paquistão, Bangladesh, Colômbia, Argentina e Rússia foram as proveniências que mais aumentaram.

Acentua-se a heterogeneidade da população escolar, os agrupamentos têm, em média, alunos de 19 nacionalidades diferentes (quase o dobro do que acontecia em 2018/19) e existem escolas com jovens oriundos de 46 países.

Recordo ainda que, de acordo com dados da DGEEC, “Perfil Escolar de Alunos Filhos de Pais com Nacionalidade Estrangeira 22/23", os alunos com pais estrangeiros têm uma taxa de retenção genericamente três vezes superior à dos alunos com pais de origem portuguesa. No ensino básico é de 10,3% e 3,2% respectivamente.

Considerando o 3.º ciclo, a diferença é maior, 16,4% dos alunos com pais estrangeiros que não terminam o ciclo no tempo previsto para 5,2% de alunos com origem portuguesa e no secundário 26,8% para 8,5%.

Face a este cenário percebe-se a importância crítica da presença de mediadores linguísticos e culturais a quem competirá “promover a integração plena no ambiente escolar”.

Além dos mediadores, que trabalharão com alunos, professores, famílias e outros técnicos, está previsto que no âmbito do plano Aprender Mais Agora se verifiquem ajustamentos na oferta de disciplina de Português Língua Não Materna (PLNM).

Foi criado um “nível zero” que abrange alunos que não tiveram qualquer contacto prévio com a língua portuguesa ou mesmo com o alfabeto latino e ajustar-se-ão os dispositivos de avaliação e diagnóstico.

As escolas precisam de maior autonomia na colocação dos alunos nos anos curriculares considerando a sua origem e trajecto escolar.

Parece crítica a necessidade de mudança na Disciplina de Português Língua Não Materna pois a baixa frequência que se verifica compromete, obviamente, os objectivos para que existe, outro lado e em termos genéricos, verifica-se uma baixa de frequência da Disciplina de Português Língua Não Materna, em 21/22, tínhamos 2% de todos os alunos estrangeiros inscritos no 1.º ciclo, 12,5% dos que frequentam o 2.º ciclo, 15% no 3.º ciclo e apenas 5,1% dos que estão no ensino secundário.

Apesar dos indicadores não serem propriamente uma surpresa, pois tem vindo a aumentar a vinda para Portugal de cidadãos de outros países importa considerar que, contrariamente ao que as narrativas xenófobas que se vão escutando afirmam, é importante esta vinda de pessoas de outras paragens que se radiquem por cá através de projectos de vida bem-sucedidos e contributivos para o desenvolvimento das nossas comunidades. Minimiza-se o efeito do Inverno demográfico que vivemos levando ao envelhecimento significativo da população portuguesa rejuvenescendo-se as populações.

Como é evidente este movimento envolve famílias e, naturalmente, a existência de crianças e a necessidade da sua educação escolar, certamente, a mais potente ferramenta contributiva para a sua boa integração na comunidade.

Esta cenário não pode deixar de constituir o um enorme desafio para muitas escolas.

A disciplina de Português Língua Não Materna tem sido constituída com um número mínimo de 10 alunos e os recursos disponíveis são manifestamente insuficientes como directores e professores tem regularmente referido.

Está, pois, criada uma dificuldade acrescida para promover de forma eficiente o domínio da língua de aprendizagem, o português, e o impacto negativo que tal terá no seu trajecto escolar. Aliás, são bem conhecidas as enormes dificuldades que muitas comunidades portuguesas de emigrantes portugueses sentiram e sentem no processo de escolarização dos seus filhos em diferentes países da Europa.

Sabemos da enorme dificuldade de conseguir que em cada escola se consiga responder de forma eficaz às necessidades específicas da população que a frequenta, nenhuma dúvida sobre isto.

No entanto, também sabemos, o domínio proficiente da língua de aprendizagem, escrita e falada, é imprescindível a um trajecto escolar com sucesso.

Não existe normativo ou discurso em educação que não sublinhe as ideias de educação inclusiva, equidade, a diversidade, etc. A questão são as políticas públicas e os recursos de diferente natureza que este desafio exige, a retórica não chega.

Estes alunos, tal como outros, enfrentam sérias dificuldades e um risco grande de insucesso como os dados evidenciam.

E é bom não esquecer que o seu sucesso será um forte contributo para as comunidades onde se integram, assim como poderemos ter que pagar um preço elevado pelo seu insucesso e exclusão.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

QUERIDA FAMÍLIA, AMIGOS E PROTECTORES

 No DN encontra-se uma peça que que carrega inquietação. Nos últimos dias foram detidos oito indivíduos por abuso contra menores. Na sua maioria as vítimas são familiares ou com uma relação de proximidade.

Recordando dados do INE relativos a 2024 registaram-se 1041 participações de abuso sexual de menores sendo que, de acordo com a PJ, 51% dos casos se verificaram no contexto familiar e agregando relações de proximidade envolvem 65% das situações de abuso na maioria sobre meninas

Lamentavelmente, a realidade mantém-se. De facto, a maioria das situações de abusos sexuais sobre crianças e adolescentes, envolve familiares, amigos ou conhecidos da criança e também instituições que lidam com menores. Citando Manuel Coutinho do Instituto de Apoio à Criança, "A família deve ser o local mais seguro que a criança tem e por vezes é lá que corre os maiores perigos".

Apesar das mudanças verificadas em termos legais e processuais, a fragilidade ainda verificada na criação de uma verdadeira cultura de protecção dos miúdos leva a que muitos estejam expostos a sistemas de valores familiares que toleram e mascaram abusos com base num sentimento de posse e usufruto quase medieval.

Muitas crianças em situação de abuso no universo familiar ou por pessoas conhecidas ainda sentem a culpa da denúncia das pessoas da família ou amigos, a dificuldade em gerir o facto de que pessoas que cuidam delas lhes façam mal e a falta de credibilidade eventual das suas queixas bem como das consequências para si próprias, uma vez que se sentem quase sempre abandonadas e sem interlocutores em que possam confiar ou ainda o medo das consequências da denúncia.

A este cenário acrescem os riscos que as novas tecnologias vieram introduzir, sendo conhecidos cada vez mais casos em que a internet é a ferramenta utilizada para construir o crime.

Neste quadro, para além da eficiência do sistema de justiça, continua a ser absolutamente necessário que as pessoas que lidam com crianças, designadamente na área da saúde e da educação, sejam capazes de “ler” os miúdos e os sinais que emitem de que algo de menos positivo se passa com eles. Na verdade, os professores e os técnicos das escolas, incluindo os auxiliares, são muito frequentemente quem se apercebe de situações de mal-estar das crianças, “são os olhos do sistema de protecção”.

Esta atitude de permanente, informada e intencional atenção aos comportamentos e discursos dos miúdos é, do meu ponto de vista, uma peça chave para minimizar a tragédia dos abusos sobre as crianças e o enorme sofrimento provocado.

Neste cenário importa ainda ter em atenção o impacto que manutenção das crianças em casa nos períodos de confinamento poderá implicar, preocupação expressa por muitos técnicos.

Como é evidente não se trata de uma situação fácil. Sabe-se que situações de isolamento potenciam o aumento de casos de violência doméstica como de maus tratos a crianças, a possibilidade de denúncia diminui, o medo prevalece e a própria situação, só por si, é geradora de risco.

No entanto, de uma forma alargada e com a colaboração da comunicação social e com os serviços de proximidade, autarquias por exemplo, talvez fosse possível promover a atenção das comunidades próximas, das relações de vizinhança, para o que pode estar a acontecer na casa ao lado e recorrer aos canais de informação disponíveis.

Sabemos que os riscos são grandes e a cada dia podem aumentar as situações de sofrimento e negligência que envolvem milhares de crianças.

domingo, 3 de agosto de 2025

RASPAR, RASPAR ... ATÉ ENRICAR

 Há dias estava no Público uma peça interessante e esclarecedora dos tempos que vivemos. Assinalava-se os trinta anos da “raspadinha”, a maior fonte de receita da santa Casa da Misericórdia, 1848 milhões de euros em 2024, cerca de 5 milhões por dia. Em Portugal a “raspadinha” atrai muito mais jogadores que noutros países em que também existe.

No entanto e sem estranheza aumentam significativamente os problemas de adição nos jogadores. Como resposta a Santa Casa vai criar um cartão digital que permite aos “raspadores” “definir o limite” do investimento.

São números impressionantes. Se considerarmos que ainda se verifica um volume significativo de gastos noutras formas de jogo, online sobretudo, percebe-se o impacto significativo que terá nos orçamentos familiares. Provavelmente, este “investimento” traduz a pouca confiança das repercussões das políticas públicas nos orçamentos familiares e, portanto, procuramos a sorte.

Recordo que em 2023 foi divulgado um estudo, aliás, citado na peça do Público, desencadeado pelo Conselho Económico e Social sobre a utilização da vulgar “raspadinha” realizado com a colaboração de Pedro Morgado e Luís Aguiar-Conraria da Universidade do Minho.

A raspadinha tem sido a ser o jogo mais popular e de estudos anteriores já se conhecia que perto de 80% dos jogadores pertence às classes mais desfavorecidas, D e E, 61% jogam regular ou frequentemente e 37.5% dos apostadores estão acima dos 55 anos.

Do estudo do CES infere-se que cerca de 100 mil pessoas em Portugal podem apresentar problemas de jogo com as “raspadinhas”, 1,21% da população. Deste universo 30000 cidadãos terão “quase de certeza doença instalada, ou seja, “perturbação de jogo patológico”, de acordo com Pedro Morgado.

No que respeita ao perfil dos “utilizadores”, um cidadão com rendimento até 664 euros têm três vezes mais probabilidade de jogar frequentemente que um cidadão com rendimento superior a 1500 €. Um cidadão com o ensino básico terá quase seis vezes mais probabilidades que de ser um jogador frequente que alguém com mestrado ou doutoramento.

Uma outra variável importante e estudada é a idade. Os cidadãos com 66 ou mais revelam o dobro da probabilidade de serem jogadores frequentes de "raspadinha", se comparados com a franja populacional entre os 18 e os 36.

Os dados são relevantes, mas não surpreendem, recordo um outro trabalho desenvolvido por Pedro Morgado (um dos responsáveis do estudo CES) e Daniela Vilaverde da Escola de Medicina da Universidade do Minho, divulgado em 2020 na The Lancet Psychiatry que mostra como a relação de muitos apostadores portugueses com a vulgar “raspadinha” tem vindo configurar um comportamento aditivo, indutor de sofrimento e mal-estar social e familiar. Dados de 2018 já mostravam que os gastos nestas apostas foram de 1594 milhões de euros, 160€ por ano em média por apostador o que é superior ao que se verifica em muitos países, 14€ em Espanha, por exemplo.

A verdade é que para além do caso particular da “raspadinha” tem aumentado de forma geral o investimento dos portugueses nos “jogos sociais” da Santa Casa e nas apostas online. De facto, o Totobola e depois o Euromilhões, o Totoloto, posteriormente a Raspadinha, fortemente apelativa pela possibilidade de retorno imediato e grande acessibilidade, e mais recentemente as apostas online estabeleceram-se firmemente na vida de muitos de nós e criaram mesmo uma imagem criadora de futuro que nos move. Provavelmente e para muitas pessoas, será a única imagem criadora de futuro.

Importa reconhecer que as imagens criadoras de futuro são imprescindíveis, tanto mais quando atravessamos tempos duros em que a esperança também tem sido sucessivamente revista em baixa e dificilmente vislumbramos a recuperação.

Creio que esta perspectiva é parte importante desta equação e apesar de sabermos que a decisão de apostar é sempre de natureza individual, o contexto em que muita gente vive, os estilos de vida e quadro de valores são variáveis que também devem ser consideradas, como, aliás, o estudo sublinha.

Por outro lado e em termos culturais, também encontramos algumas pistas para entendimento. Julgo poder afirmar-se que em muitos lares portugueses e em muitas conversas e talvez mais do que nunca, uma das frases mais ouvidas é “nunca mais me sai o Euromilhões, (ou a raspadinha) para deixar de trabalhar”. Muito provavelmente, cada um de nós já ouviu, pensou ou disse esta expressão alguma vez ou vezes e que não será usada apenas pelos cidadãos com maiores dificuldades.

Acho curiosa a sua utilização. Entendo, naturalmente, a ideia subjacente à primeira parte. Um prémio de valor substantivo representaria, seguramente, a hipótese de acesso a um patamar superior de bem-estar económico, desejado, naturalmente, por toda a gente. O que de facto me parece mais interessante é o complemento “para deixar de trabalhar”. É certo que nem todas as expressões devem ser entendidas no seu valor “facial”, mas é também verdade que a recorrente afirmação deste desejo acaba por ilustrar a relação que muitos de nós estabelecemos com o lado profissional da nossa vida, isto é, “quero livrar-me dele o mais depressa possível”. Não será grave, mas é um indicador que possibilita várias leituras.

Neste contexto e cultura sabem qual é a minha inquietação para além dos riscos associados a comportamentos aditivos? É se os miúdos, considerando a agitação que vai pelo seu mundo “laboral” e os discursos dos adultos, desatam a pedir, se puderem, um aumento de mesada que lhes permita jogar nas “raspadinhas” ou apostar no Euromilhões para … deixar de ir à escola.

Já estivemos mais longe. Talvez, também por questões desta natureza, a abordagem deste tipo de questões nos contextos educativos num quadro desenvolvimento e cidadania faça sentido sem que daqui resulte, evidentemente, mais uma disciplina ou mais um projecto. Talvez se inscreva na preocupação com a literacia financeira, tema contemplado nas mudanças em discussão para a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento ainda que possam existir famílias que resistam a esta abordagem por comprometer a liberdade para raspar.

sábado, 2 de agosto de 2025

A SOMBRA

 No tempo de calor que se instalou, por aqui no Alentejo está mesmo áspero, as sombras são um bem precioso, sobretudo as sombras das árvores que com a agitação da folhagem, mesmo branda, fazendo o ar andar, as tornam mais frescas. Lamentavelmente, em muitas zonas das nossas terras as árvores estão em vias de extinção, ou porque as tiramos sem substituir, ou porque se queimam.

É um aconchego encontrar uma sombra fresquinha que nos faz parar e ficar um bocadinho a gozar. Quando nos sentimos bem parece que estamos assim a uma sombra fresca num dia de Verão. Às vezes digo que o bem-estar dá sombra para dentro de nós no Verão e calor no Inverno, é assim uma espécie de regulador climático individual.

A questão, se estivermos atentos percebemos, é que existem miúdos que de mal que se sentem, não conseguem projectar de dentro e para dentro uma sombra que os faça sentir melhor. Muitos deles ainda se agitam mais e mais se zangam com o mundo e pior se sentem, tanto mais quanto a nossa sombra, que poderia criar bem-estar, seja menor.

É nesta altura que mais se nota a falta de adultos atentos por perto. Os adultos atentos, sendo mais altos, quase sempre, poderão proporcionar alguma sombra a que esses miúdos se acolham e lhes arrefeça o mal-estar.

O problema é que muitos de nós, adultos, também desesperamos por uma sombra que nos proteja. Quando não se tem sombra para si, fica mais difícil dar sombra fresca para os outros.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

EM MUDANÇA

 O Ministro da Educação anunciou ontem o quadro de mudanças na organização e estrutura do Ministério da Educação, Ciência e Inovação, diminuindo estruturas, prometendo agilizar processos e minimizar a esmagadora carga burocrática que aflige escolas e professores, desconcentração de serviços, etc.

Para quem conhece o universo do sistema educativo a mudança é uma necessidade urgente, mas importa perceber melhor o sentido das alterações anunciadas. Algumas das mudanças nas políticas públicas já em curso ou apresentadas como intenção não são animadoras. 

A título de exemplo, refiro a extinção da Fundação para a Ciência e Tecnologia e o que advirá na área crítica da ciência e investigação assim como a passagem para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) de "responsabilidades de planeamento na definição da rede escolar, da oferta formativa do ensino profissional e dos investimentos em infra-estruturas". Terão um vice-presidente para a educação com a função de “acompanhar a execução das políticas nacionais a nível regional" que serão propostos pelo Governo.

Como se costuma dizer, vamos aguardar os desenvolvimentos não deixando de recordar Lampedusa em “O Leopardo” e a ideia de que é preciso que tudo mude para tudo fique na mesma.

Não, não é pessimismo, é realismo assente no que conhecemos do país e das políticas públicas que temos e se anunciam. Como se diz por aqui no meu Alentejo, deixem lá ver.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

TUDO SE TRAFICA

Vivemos tempos sombrios em que imperam os traficantes e tudo se trafica, ética, valores, história, culturas, ideias e também pessoas que deixam de o ser, são corpos que trabalham sob exploração. 

Lê-se no Público que o Grupo de Especialistas sobre a Acção contra o Tráfico de Seres Humanos (GRETA), que passou, entre 14 e 18 de Julho, por Portugal para avaliar a implementação da Convenção do Conselho da Europa relativa à luta contra o tráfico de seres humanos identificou 2211 vítimas nos últimos seis anos.

Dados preliminares disponibilizados ao Grupo de Trabalho pelo Observatório do Tráfico de Seres Humanos reconhece-se que, nos últimos 20 anos, entre 2004 e 2024, apenas 25 vítimas reclamaram uma indemnização, maioritariamente por via das associações que as apoiam no terreno sendo que apenas 11 conseguiram a satisfação do pedido.

Há algum tempo referi aqui o Relatório Anual de Segurança Interna relativo a 2023 no qual se referia que a criminalidade associada à imigração ilegal e tráfico de pessoas foi a que mais cresceu em 2023, mais 68% e 29%, respectivamente.

Na verdade, têm sido recorrentes as referências a situações inaceitáveis de exploração e maus-tratos envolvendo muito frequentemente cidadãos estrangeiros.

É conhecida e muitas vezes objecto de intervenção e notícia a situação que se verifica no Alentejo, mas não só, e que tem vindo, por várias razões, a aumentar, de exploração brutal, condições de habitação degradantes, vitimização por redes organizadas de “tráfico” de mão-de-obra em que se encontram milhares de cidadãos estrangeiros. Nas primeiras levas surgiram muitos cidadãos oriundos de países de leste e africanos e mais recentemente de países asiáticos.

A escandalosa e irresponsável política (?!) em matéria de agricultura e ambiente estarão gradualmente a transformar o Alentejo, o Algarve também, num deserto, mas que neste momento alimenta quilómetros e quilómetros de culturas intensivas e depredadoras que para já exigem mão-de-obra não existente no país e a prazo condenarão os alentejanos a viver no deserto. Os responsáveis assobiam para o lado e, por vezes, parecem virgens ofendidas face a algo que toda gente conhecia.

Este cenário, o tráfico de pessoas e a exploração quase escravizante, tal como a fome, é das matérias que maior embaraço pode causar em sociedades actuais e deveria ser algo de improvável no séc. XXI em sociedades desenvolvidas. Parece algo “fora do tempo” e de impossível existência nos nossos países, estamos a falar da Europa. Mas existe e é sério o problema que, como não podia deixar de ser, atinge os mais vulneráveis.

Este negócio, o tráfico e exploração de pessoas de todas as idades, um dos mais florescentes e rentáveis em termos mundiais, alimenta-se da vulnerabilidade social, da pobreza e da exclusão o que, como sempre, recoloca a imperiosa necessidade de repensar modelos de desenvolvimento económico que promovam, de facto, o combate à pobreza e, caso evidente em Portugal, às enormes assimetrias na distribuição da riqueza. Também por isso, são recorrentes as notícias de portugueses usados como escravos em explorações agrícolas espanholas ou redes de contratação de trabalhadores da construção civil para países do primeiro mundo europeu.

Estes tempos são marcados por competição, diminuição de direitos e apoios sociais, pressão sobre a produtividade. Tudo isto é submetido a um deus mercado que não tem alma, não tem ética, é amoral e pode alimentar, sem particulares sobressaltos, algumas formas de escravatura mais "leves" ou, sobretudo em casos de particular fragilidade dos envolvidos, bastante pesadas.

As pessoas, muitas pessoas, apenas possuem como bem a sua própria pessoa e os mercados aproveitam tudo. Por isso, se compra e vende as pessoas dando-lhe a utilidade que as circunstâncias, a idade, e as necessidades de "consumo" ou "produção" exigirem. O que parece ainda mais inquietante é o manto de silêncio e negligência, quando não cumplicidade, que frequentemente cai sobre este drama tornando transparentes as situações de exploração ou escravatura, não se vêem, não se querem ver.

Neste universo não conseguimos ouvir o coro dos escravos, não têm voz.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

DEPÓSITOS CLANDESTINOS DE CRIANÇAS

 Lê-se no Público que o Instituto da Segurança Social determinou o encerramento de 72 creches nos últimos quatro anos por falta de licença ou condições de funcionamento. Em algumas situações constituiriam um “perigo iminente” para as crianças que frequentavam essas instituições. Não estão contabilizados os dados de 2025, mas nas últimas semanas já foi determinado o encerramento e retirada de crianças a pelo menos três entidades.

O ano de 2023 teve o maior número de encerramentos, 23, em 190 processos de fiscalização, sendo que em dois espaços o encerramento foi urgente.

Na verdade, é por demais conhecida a existência destes depósitos de crianças. Sabe-se também de situações em que após o encerramento os mesmos responsáveis reabrem rapidamente outros espaços para o exercício da sua actividade.

Em Portugal, para além da insuficiência da resposta, temos um dos mais elevados custos de equipamentos e serviços para crianças o que é, naturalmente, um forte constrangimento para projectos de vida que envolvam filhos. Sobretudo nas grandes áreas metropolitanas, existe uma falta significativa de respostas e recursos a preços acessíveis para o acolhimento a crianças dos 0 aos 3 anos é, como já disse, um dos grandes obstáculos a projectos familiares que incluam filhos, levando aos conhecidos e reconhecidos baixos níveis de natalidade entre nós, sendo que a tendência de ter apenas um filho é crescente.

A alteração dos estilos de vida, a mobilidade e a litoralização do país, levam à dispersão da família alargada o que torna os jovens casais dependentes quase exclusivamente de respostas institucionais que, ou não existem, ou são demasiado caras.

Neste quadro, prolifera a oferta clandestina onde, tal como no caso dos idosos, a preços bem mais acessíveis e sem controlo da qualidade, se depositam os miúdos.

É certo que não fica fácil a fiscalização dos serviços competentes porque a situação também serve às famílias, pelo custo e pela simples existência. Relembro que têm sido conhecidos casos de encerramento tornados públicos devido à falta qualidade e aos tratos dados às crianças, mas com alguns pais a reagir negativamente ao encerramento.

Sabemos todos como o desenvolvimento e crescimento equilibrado e positivo dos miúdos é fortemente influenciado pela qualidade das experiências educativas nos primeiros anos de vida, de pequenino é que ...

Assim, a eficiência da fiscalização e penalizações para este tipo de actividade, mas, sobretudo, o aumento significativo da resposta ao nível da creche a custo acessível é, seguramente, uma aposta no futuro e, por isso, parece ser o caminho para minimizar a criação dos depósitos clandestinos de crianças.

terça-feira, 29 de julho de 2025

A VOZ DAS MINORIAS

 Foi divulgado o Relatório Anual de 2024 sobre Prática de Actos Discriminatórios em Razão da Deficiência e do Risco Agravado de Saúde elaborado pelo Instituto Nacional para a Reabilitação. Foram registadas 257 queixas de violação da lei que “proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência e da existência de risco agravado de saúde”.

Este número significa algo como uma média de cinco queixas por semana. Em 2023 registaram-se 201 e em 2022 foram recebidas 159.

A maioria das queixas por discriminação está associada a acessibilidades, "recusa ou limitação de acesso aos transportes públicos, quer sejam aéreos, terrestres ou marítimos", 78 casos, 32% do total, "recusa ou limitação de acesso ao meio edificado ou a locais públicos ou abertos ao público", 62 casos que correspondem a 25% do total.

É certo que as queixas conhecidas sobre eventual discriminação, tal como noutras áreas, são sempre uma parte pequena do que na verdade acontece e também não é claro se estamos em presença de um aumento de casos de discriminação, se de mais queixas apresentadas ou de ambas as hipóteses como me parece mais provável.

De facto, como muitas vezes refiro, a voz das minorias é sempre muito baixa, ouve-se mal, existem variadíssimas áreas de dificuldades colocadas às pessoas com deficiência, designadamente saúde, acessibilidades, educação, apoio social, qualificação profissional e emprego, em que a vulnerabilidade e o risco de exclusão são enormes. 

Importa também sublinhar que os direitos fundamentais não são de geometria variável em função de contextos ou hipotecados às oscilações de conjuntura.

Muito já se conseguiu, muito já se mudou.

Está ainda quase tudo para fazer.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

DO SUCESSO E DA RETENÇÃO

 A Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), divulgou o relatório “Educação em Números” analisando as taxas de retenção e abandono no ensino básico e no secundário relativas a 23/24. Os dados mostram alguma proximidade com os resultados de 22/23 com um ligeiro agravamento no 2º ciclo.

No 1.º ciclo verificou-se 1,9% de retenção e abandono, no 2.º ciclo, 3,9%, no 3.º ciclo, 6,2% e no secundário, 9,6%.

Importa referir que estes valores englobam retenção e abandono, mas tratando-se da escolaridade obrigatória a retenção será a base das taxas referidas.

Retomo o que aqui tenho referido com alguma regularidade. Estas taxas de retenção, ou dito de outra maneira, o sucesso que também mostram, a “passagem de ano”, traduzem-se, de facto, na aprendizagem de competências e conhecimentos ou teremos de considerar que ter sucesso é a “a passagem de ano” na velha fórmula de “transita, mas não progride”? Conhecem-se relatos de escolas em que se verifica alguma “pressão” para a “transição”.

Esta questão é sustentada pelas discrepâncias sérias entre os resultados dos percursos de sucesso, as avaliações internas e os resultados dos nossos alunos em estudos internacionais ou nas provas de aferição, agora MoDa, e exames nacionais, a avaliação externa.

Dito isto, também quero com muita clareza que levantar esta questão não significa a defesa da retenção como ferramenta de sucesso e qualidade. Não é, sabemos que o “chumbo”, só por si, não gera sucesso e qualidade. Nenhuma dúvida sobre isto. No entanto, basta olhar para as caixas de comentários a textos da imprensa sobre esta matéria, para perceber como esta crença está instalada.

Vejamos algumas referências. Recordo um Relatório do CNE de 2017 no âmbito do Projecto aQeduto em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos, em que se realizou uma análise ao custo de medidas de combate ao insucesso escolar. Parece-me perfeitamente actual do ponto de vista da reflexão necessária.

 Em termos económicos e recorrendo aos estudos já desenvolvidos o impacto económico da retenção é estimado em cerca de 6000€ por aluno em cada ano. Adaptando o modelo desenvolvido pela Education Endowment Foundation, o Projecto aQeduto identifica o grau de eficácia e custo económico de um elenco de medidas de combate ao insucesso. Das medidas analisadas, a retenção tem o custo mais elevado e a eficiência é negativa, promove um atraso de 4 meses. Ensinar a estudar é a medida mais económica, 87€, e mais eficiente, promove um ganho de 8 meses de aprendizagem.

 

Estes dados são importantes, mas a sua substância não é nova.

Também no Relatório “Low-Performing Students - Why They FallBehind and How To Help Them Succeed” divulgado pela OCDE em 2017 se referia que o “chumbo”, a retenção, é para os alunos portugueses o principal factor de risco para os resultados na avaliação posterior, dito de outra maneira, os alunos chumbam … mas não melhoram.

De facto, definitivamente, não adianta discutir se o chumbo transforma o insucesso em sucesso. Não transforma, repetir só por repetir não produz sucesso, aliás gera mais insucesso conforme os estudos mostram.

Confesso sempre alguma surpresa e dificuldade em compreender quando ao discutir-se os efeitos pouco positivos da retenção algumas vozes, mesmo dentro do universo da educação, clamam que se está a promover o "facilitismo" ou a defender que "então passam sem saber".

Nesta conformidade e do meu ponto de vista, a questão central não é o chumba, não chumba, e quais os critérios ou o número de exames, mas sim que tipo de apoios, que medidas e recursos devem estar disponíveis para alunos, professores e famílias desde o início da percepção de dificuldades com o objectivo de evitar a última e genericamente ineficaz medida do chumbo.

Este discurso não tem rigorosamente a ver com "facilitismo" e, muito menos, com melhoria "administrativa" das estatísticas da educação, uma tentação a que nem sempre se resiste. Pelo contrário, “facilitismo” é acreditar que a retenção resolve o problema do insucesso.

É essencial promover e tornar acessíveis a alunos, professores e famílias apoios e recursos adequados e competentes de forma a evitar a última e genericamente ineficaz medida do chumbo. É fundamental não esquecer que o insucesso continua a atingir fundamentalmente os alunos oriundos de famílias com pior condição económica e social pelo que inibe o objectivo da mobilidade social. A associação entre o insucesso e a pobreza em Portugal é, aliás, a mais forte entre os países europeus. Em Portugal os bons alunos são os que mais trabalham em casa, TPCs e explicações, dado a que, evidentemente, não é alheio ao nível de escolaridade dos pais e ao estatuto económico.

É claro que mudanças estruturais têm custos pelo que será de considerar a necessidade de investimento sério em educação, 6% do Produto Interno Bruto o que está definido pela UNESCO como meta para 2030.

Uma primeira referência à dimensão associada aos professores, modelo de carreira valorizada, justa e atractiva.

É imprescindível é dotar as escolas de forma continua e estável dos recursos necessários para minimizar tanto e tão rápido quanto possível as dificuldades que identificam.

É necessário promover a desburocratização asfixiante e reflectir sobre modelos de governança das escolas mais adequados, competentes e participados.

Com real autonomia, com mais recursos e com modelos organizativos mais adequados e desburocratizados as escolas poderiam certamente fazer mais e melhor. que quem vem de fora numa passagem transitória, mais ou menos longa, mas transitória. Sim, tudo isto deveria ser objecto de escrutínio, regulação e avaliação também externa, naturalmente.

Escolas com mais auxiliares, auxiliares informados e formados podem ter um papel importante em diferentes domínios.

Directores de turma com mais tempo para os alunos e professores com menos alunos poderiam desenvolver trabalho útil em múltiplos aspectos do comportamento e da aprendizagem.

Psicólogos e outros técnicos em número mais adequado poderiam acompanhar, promover e desenvolver múltiplas acções de apoio a alunos, professores, técnicos e pais.

Mediadores que promovessem iniciativas no âmbito da relação entre escola, pais e comunidade seriam, a experiência mostra-o, um investimento com retorno. Repetindo e sintetizando, os professores sabem como avaliar e identificar as dificuldades dos alunos.

Uma nota final para sublinhar a necessidade de estabilização curricular e da questão da avaliação e percurso escolar dos alunos e reafirmar a importância da avaliação externa como reguladora do trabalho realizado.

domingo, 27 de julho de 2025

DEFICIÊNCIA, POBREZA, EXCLUSÃO

 Foi divulgado o primeiro relatório do Sistema de Indicadores de Políticas de Inclusão – SIPI, coordenado pelo Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa que numa primeira fase consideram as respostas de 721 pessoas com deficiência.

Vejamos alguns dados.

Perto de 40% das pessoas com deficiência inquiridas afirmam viver com rendimentos abaixo do salário mínimo. Por outro lado, 20% depende apenas da Prestação Social para a Inclusão (PSI), 324,55 euros.

Em matéria de emprego, 63% dos inquiridos não têm emprego permanente. Em Portugal existe uma taxa de desemprego de pessoas com deficiência de 12,8%, superior ao dobro da média nacional.

Neste estudo, apenas envolvendo pessoas em idade activa, a percentagem de inactividade é próxima de 40%.

Considerando as fontes de rendimento, 39,9% dos inquiridos vêm do trabalho, 36,5% das prestações sociais, 30,4% de pensões de reforma/invalidez (30,4%). Acresce que 8,2% de pessoas que afirmaram depender inteiramente da ajuda de terceiros não auferindo qualquer rendimento.

Analisando o rendimento que auferem, 30,7% refere viver com muitas dificuldades ou que o seu rendimento não chega mesmo para fazer face às despesas”.

Lamentavelmente estes dados não surpreendem, “apenas” sublinham o tanto que está por fazer.

Ainda pensando nestes indicadores recordo o relatório divulgado em Abril, "Pessoas com Deficiência em Portugal – Indicadores de Direitos Humanos 2024", da responsabilidade do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos com base no Inquérito Europeu às Condições de Vida e Rendimento relativos a 2023, produzido pelo Serviço de Estatística da União Europeia, Eurostat.

Vejamos alguns dados. Perto de dois terços das pessoas com deficiência com mais de 6 anos estavam em risco de pobreza antes da transferência dos apoios sociais.

Considerando as prestações sociais a taxa de pobreza baixa 41,3% e nos cidadãos sem deficiência 20,3% verificando um maior impacto dos apoios sociais na população com deficiência. No entanto, o volume de apoios disponibilizado continua abaixo do que se verifica na UE.

Parece claro e preocupante que, apesar de alguma evolução, a situação das pessoas com deficiência continua com grande vulnerabilidade face à pobreza e exclusão.

Não é novo, sucessivos relatórios de diferentes entidades vão mostrando o quanto está por fazer e as dificuldades decorrentes da corrida de obstáculos em que se transforma a vida das pessoas com deficiência ameaçando os seus direitos e bem-estar bem como das suas famílias. São por demais evidentes as dificuldades em áreas como, educação, saúde, trabalho e emprego, segurança social, acessibilidades, autonomia, independência ou autodeterminação.

A verdade é que a voz das minorias é sempre muito baixa, ouve-se mal, existem variadíssimas áreas em que são significativas as dificuldades colocadas às pessoas com deficiência, designadamente saúde, acessibilidades, educação, apoio social, qualificação profissional e emprego, em que a vulnerabilidade e o risco de exclusão continuam elevados como este relatório mostra.

Importa também sublinhar que os direitos fundamentais não podem ser de geometria variável em função de contextos ou hipotecados às oscilações de conjuntura ainda que tenhamos consciência da excepcionalidade destes tempos.

Parece necessário reafirmar mais uma vez que os níveis de desenvolvimento das comunidades também se aferem pela forma como lidam com os grupos mais vulneráveis e com as suas problemáticas. Este entendimento é tanto mais importante quanto mais difíceis são os contextos em que vivemos, os tempos actuais mostram discursos e comportamento hostis e agressivos face à diversidade, ameaçam quem é percebido como diferente como se existissem dois seres humanos iguais.

Mas, mais grave é que estes discursos começam a contaminar as políticas públicas dada a mediocridade de lideranças, a negação de valores e culturas que dávamos como adquiridos.

Não passarão.

sábado, 26 de julho de 2025

DOS AVÓS

 Quase sempre passa discretamente, mas de acordo o calendário das consciências determina para hoje o Dia Mundial dos Avós, gente que por norma é discreta. Uma lembrança à minha Avó Leonor, uma Mulher notável com uns olhos claros e uma fala que eram um ninho de aconchego.

A avozice é um mundo mágico no qual entrei há algum tempo com a abençoada chegada do Simão há doze anos e do Tomás há nove. Acho que ainda não consegui acomodar os sentimentos e a magia de acompanhar de perto, tão de perto quanto possível sem o excesso da intrusão inibidora de autonomia, o crescimento destes gaiatos que têm uma geração pelo meio.

Tem sido um divertimento, uma descoberta permanente e a percepção de um outro sentido para uma vida que já vai comprida e também, desculpem a confissão, cumprida.

Neste entendimento e como tem acontecido aqui no Atenta Inquietude a cada 26 de Julho, retomo a minha proposta no sentido de ser legislado o direito aos avós. Isto quer dizer, simplesmente, que todos os miúdos deveriam, obrigatoriamente, ter avós e que todos os velhos deveriam ter netos.

Num tempo em que milhares de miúdos passam muito tempo sós, mesmo quando, por estranho que pareça, têm pessoas à beira, e muitos velhos vão morrendo devagar de sozinhismo, a doença que ataca os que vivem sós, isolados, qualquer partido verdadeiramente interessado nas pessoas, sentir-se ia obrigado a inscrever tal medida no seu programa ou, porque não, inscrevê-la nos direitos fundamentais.

Com tantas crianças abandonadas dentro de casa, institucionalizadas, mergulhadas na escola tempos infindos ou escondidas em ecrãs, ao mesmo tempo que os velhos estão emprateleirados em lares ou também abandonados em casa, isolados de tal forma que morrem sem que ninguém se dê conta, trata-se apenas de os juntar, seria um “dois em um”. Creio que os benefícios para miúdos e velhos seriam extraordinários.

Um avô ou uma avó, de preferência os dois, são bens de primeira necessidade para qualquer miúdo e, deixem-me que vos diga e insista, os avós não estragam os netos até porque gostam deles. Cuidam deles com outro tempo, com outro olhar.

Já agora recupero uma história com avô dentro. Como sabem contar histórias é mesmo coisa de avós e às vezes repetem-nas, é o caso desta, já aqui a contei.

De há uns tempos para cá apareceu uma moda naquela terra que “impede” as pessoas de falarem em brincar nas escolas da terra, é proibido brincar nas escolas.

A moda foi fabricada por uma gente ignorante de miúdos, obcecada com trabalho e produtividade, mesmo infantil, uns infelizes escravos convencidos de que são livres e que também querem escravizar os outros.

Mas naquela terra ainda existem uns professores, muitos, que não se deixam enganar, sabem ler os miúdos e percebem que eles aprendem porque também brincam e brincam porque também aprendem. Aliás, brincar e aprender são as coisas mais sérias que os miúdos fazem, sorte a deles, a de alguns, felizmente muitos.

Um dia, um desses professores lembrou-se, que sacrilégio, de dizer aos seus alunos para trazerem para a escola o seu brinquedo preferido. A Maria trouxe uma boneca. O João apareceu com a consola nova. A Sara vinha vaidosa com umas bonecas que o pai tinha mandado vir estrangeiro. A Irina trazia o Noddy. O Carlos vinha com uns olhos quase tão grandes como a bola de futebol que trazia debaixo do braço. O David, sempre pronto para as lutas, trazia uns bonecos lutadores de wrestling. A Joana não ligava a ninguém com o seu dispositivo com as músicas de que gosta. Enfim, por um dia, toda gente veio para a escola com um brinquedo, o seu preferido.

O último a chegar foi o Manel.

Feliz e sorridente entrou na sala de aula com o avô pela mão.

PS - No Público está uma peça com avós e netos muito bonita e com a memória de Abril, aquele Abril, que está a ser atraiçoado.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

DO MAL-ESTAR DOS DOCENTES

 A FNE realizou um inquérito no final de Julho que envolveu 4638 docentes do pré-escolar ao secundário construindo um olhar sobre a profissão em diferentes dimensões. Para estas notas consideremos alguns indicadores.

Verifica-se um nível levado, 95,8%, de insatisfação relativamente ao estatuto remuneratório face ao volume de trabalho exigido, 94,4% afirmam que gostam da profissão, mas 73,2% não incentivariam um jovem a ser professor. No entanto, cerca de oito em cada dez docentes diz sentir-se realizado no exercício profissional.

O comportamento dos alunos é uma fonte de preocupação significativa, 96,3%, sendo que 51% entende que o grau de indisciplina na sala de aula aumentou significativamente face ao ano anterior. Como mais preocupantes problemas no comportamento são referidos a incapacidade de seguir regras, 63,2%, com a conversa em sala de aula, 33,6%, a não realização do trabalho incluindo os trabalhos de casa, 15,3%. É ainda referido o abuso na utilização dos telemóveis (ex: mensagens de texto, câmaras fotográficas), 14,8%.

Este conjunto de dados não é surpreendente e sublinha o mal-estar na lasse docente estando em linha com os resultados encontrados no estudo divulgado  em Dezembro de 2024 realizado pelo Observatório da Saúde Psicológica e do Bem-Estar, da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência relativo a 2024, coordenado pela Professora Margarida Gaspar de Matos, que envolveu 390 professores e que apesar da prudência face à dimensão da amostra vai no mesmo sentido que os dados agora conhecidos no trabalho da FNE.

Numa escala de 1 a 10, 62% dos docentes referem portam uma satisfação com a vida igual ou superior a sete. No entanto, metade afirma sentir-se nervoso, 50,4%, triste, 48,4%, irritado ou de mau humor, 49,2%, pelo menos uma vez por semana. É ainda de considerar que 18,3% refere frequentemente está tão triste que parece não aguentar.

Como sinais de mal-estar, 45,6% refere dificuldades em adormecer, dois terços dizem que recentemente sentiram agitação, dificuldade em relaxar, assumindo ter reagido excessivamente a determinadas situações e sentido irritabilidade.

É ainda interessante recuperar os dados do estudo anterior da FNE, divulgados em Agosto de 2024 com a participação de 3750 docentes.

Em termos globais, quase 90% entendem que a profissão não é socialmente reconhecida, 53,1% afirmam gostar muito de ser professor, mas apenas 12% se sentem valorizados. Dos inquiridos, 89% identificam como dimensões críticas, as pouco ou nada atractivas perspectivas de carreira que 95% consideram não estar ao nível das competências e qualificações que lhes são exigidas.

É ainda referido por 86% o excesso de trabalho e a carga burocrática. A avaliação de desempenho constitui uma preocupação para dois terços dos respondentes e três em cada quatro afirmam-se preocupados ou muito preocupados com a progressão na carreira.

Como tantas vezes aqui tenho abordado e recuperando notas já escritas, os problemas que envolvem a classe docente e as suas consequências a curto e médio prazo, sendo conhecidos de há muito, são agora claramente reconhecidos apesar de algumas tentativas de torcer a realidade. Nos últimos anos têm sido recorrentes as referências, relatórios e estudos evidenciando a preocupante falta de professores, o envelhecimento da classe, os níveis de cansaço e de exaustão emocional, a baixa atracção dos mais jovens pela profissão associada a modelos de carreira, contratação e valorização pouco motivadores e justos. Os professores passam por dispositivos de avaliação pouco transparentes e competentes que desmotivam, causam mal-estar e climas institucionais pouco amigáveis, para ser simpático na adjectivação.

O modelo de governança das escolas é também apontado com frequência como motivo de mal-estar e desmotivação.

Por outro lado, existem algumas sombras que podem sugerir um parece ter-se desenhado um processo questionável e preocupante de “desprofissionalização”. No entanto, também é de registar que de uma forma geral continuam a merecer a confiança das comunidades.

Este quadro, de um mal-estar reconhecido, não pode deixar de ter impacto. Como muitas vezes afirmo, crianças, enquanto grupo social, e professores, enquanto grupo profissional, constituem dois grupos nucleares nas sociedades contemporâneas. Os mais novos porque são o futuro e os professores porque, naturalmente, o preparam, tudo (quase) passa pela escola e pela educação. Entre nós, este entendimento ainda me parece mais justificado porque, devido a ajustamentos na organização social e familiar e, é minha convicção, devido a políticas públicas sociais e educativas inadequadas, os miúdos passam tempo excessivo na escola, alterando a dinâmica educativa familiar o que sobrevaloriza o papel da escola através dos professores.

Nunca a profissão docente esteve tanto em foco como nos últimos anos bem como a necessidade de defender a qualidade da escola pública e a valorização de todos os profissionais que a “constroem” diariamente. Os tempos que vivemos sublinham uma questão e outra de forma crítica.

Múltiplas acções e decisões políticas, bem como alguma imprensa e "opinion makers" têm contribuído para degradar a sua função, fragilizar a sua imagem social e comprometer o clima e a qualidade do trabalho desenvolvido nas escolas apesar dos professores continuarem a ser uma das classes profissionais em que os portugueses mais confiam.

A atenção que tem estado centrada nos professores advém de boas e más razões. Não cabe aqui um balanço, e entendo que, tal como os miúdos, os professores não têm sempre razão, os discursos dos seus representantes são, por vezes parte do problema e não parte da solução e também sei que existem alguns professores que o não deviam ser. No entanto, a verdade é que a esmagadora maioria dos docentes são ... Professores, muito bons Professores.

A valorização social e profissional dos professores em diferentes dimensões é uma ferramenta imprescindível a um sistema educativo com mais qualidade. A valorização e reconhecimento passam também pela necessidade de modelos de carreira e de avaliação justos e transparentes que sustentem, reconheçam e promovam competência, empenho e atracção pela profissão.

Urge o ajustamento nas políticas públicas de educação, e não só. Este caminho está a esgotar-se e o futuro parece comprometido, atentemos nos resultados mais recentes da avaliação dos alunos. Não vale a pena negar a realidade.

E o futuro não pode esperar.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

A LER

 A ler, a reflectir e a divulgar o texto de Madalena Sá Fernandes no Público, “Governo pornográfico

(…) O Governo decidiu retirar os conteúdos sobre sexualidade e saúde reprodutiva das aulas de Cidadania. Quando questionado, o ministro da Educação disse que o tema era “muito complexo”. Aparentemente, complexo demais para ser tratado na escola, por professores especializados. Sabem o que também é complexo?

Complexo é engravidar aos 13 anos sem saber como. Complexo é um rapaz achar que insistir é um gesto romântico, que um não é um talvez, que o desejo do outro é sempre um dado adquirido. Complexo é seres abusada por alguém da tua família e não saberes que aquilo tem nome, que não é culpa tua, que há um depois possível.

(…)

quarta-feira, 23 de julho de 2025

PERCEBE-SE PORQUÊ

 É inevitável. Umas notas sobre a decisão do Ministério do Ensino, perdão, da Educação, da Ciência (alguma) e da “I”rradicação, perdão, da Inovação, relativa aos conteúdos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento erradicando a abordagem à saúde sexual e sexualidade.

Andou bem o MECI, vejamos porquê.

Como é reconhecido os estilos devida actuais permitem, felizmente, uma enorme disponibilidade de tempo dos pais para o contacto com os filhos e também sabemos que a generalidade das famílias assume essa disponibilidade evidenciando uma forte e contínua relação e diálogo familiar. Acresce que, apesar de algumas excepções sem significado, são reconhecidamente sólidas as competências educativas da generalidade das famílias.

Na mesma linha sabemos que à família compete a educação e à escola o ensino ainda que, erradamente, se tenha instalado a ideia “woke” que a escola também educa. Não, a escola deve ensinar a ler e escrever o suficiente para entender o o “digitalês” a actual língua de comunicação de boa parte dos mais novos.

A escola deve também ensinar qualquer coisa no âmbito dos números que seja suficiente para que a generalidade dos alunos possa aceder, lá está, aos dispositivos digitais e IA que resolverá os seus problemas.

Assim, a escola não tem que abordar conteúdos como História, Filosofia, Arte ou domínios das áreas das Ciências Sociais porque, obviamente, são áreas que, sendo imprescindíveis à formação das pessoas, pertencem à área da Educação que, como escrevi acima, é da responsabilidade das famílias que, obviamente, estão na sua generalidade em condições e com disponibilidade para o fazer sem o risco dos seus filhos ficarem à mercê de ameaças ideológicas e aceder a competências, autonomia, conhecimento e  e análise que podem que lhes podem fazer mal.

Neste sentido também se percebe algum movimento de “deskilling”na formação de professores que se tornará muito mais económica e suficiente par poderem tomar contas das crianças na escola e ensinar qualquer “coisinha” enquanto as crianças esperam pela educação dada em casa.

Uma outra justificação que me parece clara para a decisão do “apagão” dos conteúdos das áreas da Educação Sexual e Sexualidade prende-se com o conhecimento de quem se move nestas áreas e comprovado por múltiplos estudos, que as fontes de conhecimento em matéria de Sexualidade por parte dos mais novos são os colegas e os meios digitais. Lá está a necessidade da proficiência do “digitalês”. Assim sendo não se justificará a intervenção da escola pois os crianças e adolescentes têm como aprender, falam entre si e trocam dúvidas e saberes. É bonita a cooperação no desenvolvimento.

Ainda em relação às fontes, em conversas com pais ouvi com alguma frequência algo como “o meu filho(a) ainda não nos perguntou nada” pelo que, presumem, os filhos não têm dúvidas em matéria de sexualidade.

Uma referência ainda ao que é conhecido sobre movimentos nas redes sociais relativos a bullying de género com maior vitimização das raparigas, da  proliferação vídeos e incentivos a comportamentos disruptivos, o fenómeno dos “incels” que, frequentemente têm consequências devastadoras, mas mostra a eficiência da acção educativa das famílias e, obviamente, o erro de permitir a intervenção da escola nestas áreas.

No mesmo sentido, também se sabe que taxa de violência sexual e abusos sobre menores perpetrada, por vezes por menores e maioritariamente sobre as raparigas é residual em Portugal.

Percebe-se, pois, a decisão tomada pelo MECI, que não terá resistido à pressão.

 

Bom, agora mais a sério porque dada a natureza das questões assim deve ser é absolutamente inaceitável esta decisão como muito bem inúmeras pessoas com saber e experiência em matéria de desenvolvimento, comportamento e bem-estar de crianças e adolescentes têm afirmado, por exemplo, a Professora Margarida Gaspar de Matos.

Neste cantinho retomo o que tenho afirmado aqui e em muitos espaços profissionais envolvendo professores, técnicos e pais sublinhando a questão que sustenta as mudanças decididas pelo MECI, a libertação “das amarras de projectos ideológicos ou de facção”.

A proposta em discussão defines oito domínios, direitos humanos, democracia e instituições políticas, desenvolvimento sustentável, literacia financeira e empreendedorismo, saúde, media, risco e segurança rodoviária, pluralismo e diversidade cultural que serão operacionalizados através da definição de aprendizagens essenciais substituem os dezassete temas actualmente definidos para a disciplina.

Sabemos como os estilos de vida actuais têm colocado graves dificuldades às famílias para assegurarem a guarda das crianças em horários não escolares. A resposta tem sido prolongar a estadia dos miúdos nas instituições escolares alimentando o que considero um dos vários equívocos no universo da educação, a afirmação de uma visão de “Escola a Tempo Inteiro” em vez de “Educação a Tempo Inteiro”. O modelo é bem recebido por muitos pais e tolerado por muitos outros por falta de alternativas.

Importa relembrar que para os alunos mais novos e de acordo com o que está definido legalmente, considerando o horário curricular, as Actividades de Enriquecimento Curricular e a Componente de Apoio à Família, a estadia dos alunos na escola pode atingir bem mais de 40 horas semanais se os pais necessitarem. Muitos alunos estão mesmo nas escolas 50h ou mais por semana.

Importa também acentuar que fora dos contextos escolares, o padrão relacional entre adultos, de todas as condições, exprime também com demasiada frequência descontrolo e conflitualidade. O comportamento agressivo, verbal, físico, psicológico, etc., tornou-se quase, um novo normal em múltiplos contextos. Temos elevadas taxas de violência no namoro, são preocupantes os indicadores relativos a abusos e violência sexual sobre menores e entre menores como são inquietantes o volume de casos de violência a través das redes sociais e a problemática em crescimento dos designados “incels”.

Sabemos também que a ideia de que a “família educa e a escola instrói” já não colhe e espera-se que a escola não forme “apenas” técnicos, mas cidadãos, pessoas, com qualificações ao nível dos conhecimentos em múltiplas áreas.

Um sistema público de educação com qualidade, desde há muito de frequência obrigatória e progressivamente mais extenso, é uma ferramenta fundamental para a promoção de igualdade de oportunidades, de equidade e de inclusão. Uma educação global de qualidade é de uma importância crítica para minimizar o impacto de condições sociais, económicas e familiares mais vulneráveis que, evidentemente, não constituem as famílias que ficaram muito inquietas com a abordagem realizada em algumas escolas no âmbito da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, embora, naturalmente, muitos aspectos possam ser discutidos.

Neste contexto parece-me claro a que a abordagem de matérias relativas à Saúde Sexual e Sexualidade associadas aos outros domínios são fundamentais ao longo do processo de formação de crianças, jovens e adultos.

No entanto e como já tenho referido também entendo que a abordagem a estas matérias não tem necessariamente de ser “disciplinarizada”, mas esta é ainda uma outra questão.

Nas sociedades contemporâneas um sistema público de educação com qualidade, desde há muito de frequência obrigatória e progressivamente mais extenso, é uma ferramenta fundamental para a promoção de igualdade de oportunidades, de equidade e de inclusão. É através de uma educação global de qualidade que se minimiza o impacto de condições sociais, económicas e familiares mais vulneráveis.

Ainda uma nota sobre a razão da mudança as “amarras ideológicas. Acho sempre curiosas as discussões em torno das “questões ideológicas” designadamente no universo da educação. Tenho para mim que não existem políticas públicas de educação, ou de outra área, que sejam neutras, assépticas, imunes, etc. em matéria de valores sociais ou ideologia, seja tudo isto o que for.

Como há poucos dias escrevi, ao defender, por exemplo, princípios de educação inclusiva, já me tem acontecido ser “acusado” de produzir um discurso ideológico. Muito provavelmente, os meus interlocutores esperariam que me procurasse “defender” através da evidência científica. No entanto, a minha resposta começa habitualmente com algo como, “ainda bem que fui claro, o meu discurso corresponde a uma visão de sociedade, de educação e de escola. Agora vamos à evidência científica que a sustenta". Provavelmente, nas mais das vezes, ficamos na mesma, cada qual com a sua visão ideológica, pois claro.

Acontece ainda que, com frequência se confunde ideologia com partidarismo. Como já afirmei, tenho uma visão ideológica do mundo que me rodeia, mas não consigo encaixar-me numa visão partidária o que, naturalmente, será uma limitação da minha parte.

A verdade é que já cansa a forma habilidosa como muitas questões são abordadas em função da “ideologia” o que se tem escrito sobre esta mudança é esclarecedor.

Boa parte das pessoas que contestam o que afirmam constituir uma visão ideológica entende que o que defendem não tem carga ideológica, é asséptico, sendo que as ideias contrárias, essas sim, são sustentadas pela ideologia e devem ser combatidas. Os exemplos são múltiplos.

Tantas e tantas vezes tropeço com este entendimento que envolve uma outra dimensão menos explicitada, a ética. Tantos interlocutores me dizem com a maior tranquilidade que quando os estudos ou a experiência não vão ao encontro das suas ideias, certas e pragmáticas, os estudos são mal feios e contaminados pela ideologia ou que a experiência não serve de argumento. Quando discordo, o meu discurso é ideológico e o do interlocutor é correcto, asséptico do ponto de vista ideológico, obviamente, suportado com a evidência científica que ao meu é negado porque os estudos … são ideológicos. Sim, como disse, o que penso tem uma carga ideológica, é assim que entendo o mundo.

Na verdade, não acredito em visões de sociedade sem arquitectura ideológica, ética ou moral. Isso não existe, só por desonestidade intelectual se pode afirmar tal. O actual clima e discursos políticos todos os dias nos mostram exemplos, alguns bem preocupantes em termos de democracia e direitos humanos.

Como disse e reafirmo, há décadas que não tenho qualquer espécie de filiação partidária, não me orgulho nem me queixo, é assim que penso. No entanto, tenho posições que são de natureza ideológica sobre o que me rodeia e o que respeita à vida da gente.

Não as entendo como únicas, imutáveis ou exclusivas, aliás, gosto mais de discutir e aprender com alguém que também assim se posiciona, sem manha, sem a falsidade do “não tenho ideologia” como se isso fosse uma fonte de autoridade. Finalmente e considerando o que já tenho ouvido do actual Ministro, creio que não resistiu à pressão de uma direita não democrática, ignorante e retrógrada. Lamento.

Desculpem a extensão.