terça-feira, 30 de setembro de 2025

NOTÍCIAS DA INDOMESTICÁVEL VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

 Desculpem a insistência, mas existem matérias que não podem, não devem, sair da agenda de preocupações em termos de cidadania e, obviamente, das prioridades das políticas públicas. A violência doméstica é uma dessas questões e retomo algumas notas.

Entre Abril e Junho, a PSP e a GNR receberam, em média, 86 queixas por dia relativas a violência doméstica, num total de 7713 denúncias que chegaram às autoridades. Estes indicadores revelam uma subida face ao primeiro trimestre, mais 657 queixas, de acordo com dados do Portal da Violência Doméstica, da Comissão para Cidadania e Igualdade.

São dados impressionantes e os tempos que vivemos não permitem grande optimismo. Acresce que, para além de sabermos que a violência doméstica está habitualmente no topo das participações, este mundo é bem mais denso e grave que a realidade que conhecemos, ou seja, aquilo que se conhece, apesar de recorrentemente termos notícias de casos extremos, é "apenas" a parte que fica visível de um mundo escuro que esconde muitas mais situações que diariamente ocorrem numa casa perto de nós.

Por outro lado, para além da gravidade e frequência com que continuam a acontecer episódios trágicos de violência doméstica e como recorrentemente aqui refiro, é ainda inquietante o facto de que alguns estudos realizados em Portugal evidenciam um elevado índice de violência presente nas relações amorosas entre gente mais nova mesmo quando mais qualificada. Muitos dos intervenientes remetem para um perturbador entendimento de normalidade o recurso a comportamentos que claramente configuram agressividade e abuso ou mesmo violência.

Importa ainda combater de forma mais eficaz o sentimento de impunidade instalado, as condenações são bastante menos que os casos reportados e comprovados, bem como alguma “resignação” ou “tolerância” das vítimas face à situação de dependência que sentem relativamente ao parceiro, à percepção de eventual vazio de alternativas à separação ou a uma falsa ideia de protecção dos filhos que as mantém num espaço de tortura e sofrimento. Felizmente este cenário parece estar em mudança, mas demasiado lentamente. Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem mais lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores sociais presentes em cada época.

Torna-se criticamente necessário que nos processos de educação e formação dos mais novos possamos desenvolver esforços que ajustem quadros de valores, de cultura e de comportamentos nas relações interpessoais que minimizem o cenário negro de violência doméstica em que vivemos. A educação, a cidadania e o desenvolvimento que sustentam constituem a ferramenta de mudança mais potente de que dispomos.

É uma aposta que urge e tão importante como os conhecimentos curriculares. Percebe-se, também por estas questões, a importância da abordagem do universo da “Cidadania e Desenvolvimento” na educação escolar e para todos os alunos. Seria ainda desejável que a ignorância e o preconceito não inquinassem a discussão.

Entretanto, torna-se fundamental a existência de dispositivos de avaliação de risco e de apoio como instituições de acolhimento suficientes e acessíveis para casos mais graves, um sistema de protecção e apoio eficiente aos menores envolvidos ou testemunhas destes episódios, e, naturalmente, um sistema de justiça eficaz e célere.

A omissão ou desvalorização destas mudanças é a alimentação de um sistema de valores que ainda “legitima” a violência nas relações amorosas, que a entende como “normal”. Tudo isto tem como efeito a continuidade dos graves episódios de violência que regularmente se conhecem, muitos deles com fim trágico.

Apesar da natureza estranha e complexa dos dias que vivemos, é fundamental não esquecer questões como estas que devastam o quotidiano ou a vida de muita gente. Pode estar a acontecer numa casa ao nosso lado.

Neste contexto, é também de registar a iniciativa há tempo divulgada de criar um primeiro instrumento legal de âmbito europeu para combater a violência doméstica e contra as mulheres.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

DA PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS (MAIS UMA VEZ)

 No Público encontram-se três peças que abordam a situação das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens.

Como é conhecido e aqui comentei, o Ministério da Educação alterou a regulação da mobilidade dos docentes o que implicou a saída de muitos professores que integravam as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens o que, evidentemente, está ter um impacto negativo numa área tão crítica, a protecção dos mais novos em situação de risco. Num dos trabalhos é referida a situação da CPCJ do Montijo que está em sérias dificuldades para responder às necessidades.

É ainda abordado o enquadramento e a enorme falta de recursos das CPCJ. De acordo com o Relatório de Actividade da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e da Protecção das Crianças e Jovens relativo a 2024, apenas 85 de um total de 313 Comissões tinham a composição completa.

A relevância do trabalho das CPCJ que fui acompanhando durante muito tempo através da colaboração em diversas iniciativas de muitas Comissões exige que a capacidade de resposta seja robusta e ficiente.

Ainda segundo Relatório de 2024 vejamos alguns indicadores que, ainda não muito, aqui referi. Foram recebidos pelas Comissões de Protecção e Crianças e Jovens 89008 processos de Promoção e Protecção de crianças e jovens em risco. Este valor traduz um aumento de 5,5% relativamente a 2023.

A negligência é a situação de risco mais denunciado, 19 107 casos, 30,4% do total, depois surge a violência doméstica, 17295 casos, um abaixamento ligeiro comparando a 2023. Em terceiro lugar estão os comportamentos de perigo na infância e juventude com 11795 situações, 18,8% do total e uma subida de 1425 situações face a 2023.

 As Comissões de Protecção identificaram 13.373 crianças e jovens com diagnóstico de necessidade de aplicação de medida de promoção e protecção. A maior prevalência verifica-se na faixa etária dos 15 aos 17, 26,9% do total, com 3599 jovens, 1562 do sexo feminino e 2037 do sexo masculino. As forças de segurança comunicaram 425 das situações e as escolas 18, 8%.

Verificou-se, naturalmente, um maior volume de actividade das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens. Aliás, também no Público se noticia o número de casos de abuso sexual de crianças registados pela PJ, 711 no primeiro semestre, o que indicia um aumento no total do ano face ao verificado em 2024 que também aumentou face ao ano anterior.

Desculpem a insistência, mas de há muito e a propósito de várias questões afirmo que em Portugal, apesar de existirem diferentes dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens e de existir legislação no mesmo sentido sempre assente no incontornável “superior interesse da criança", não possuímos ainda o que me parece mais importante, uma cultura sólida de protecção das crianças e jovens como alguns exemplos regularmente evidenciam.

Por outro lado, as condições de funcionamento as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens que procuram fazer um trabalho eficaz estão ainda longe de ser as mais adequadas e operam em circunstâncias difíceis. Na sua grande maioria, as Comissões têm responsabilidades sobre um número de situações de risco ou comprovadas que transcendem a sua capacidade de resposta como é como no caso da CPCJ do Montijo.

A parte mais operacional das Comissões, a designada Comissão restrita, é composta por muitos técnicos em tempo parcial. Tal dificuldade repercute-se, como é óbvio, na eficácia e qualidade do trabalho desenvolvido, independentemente do esforço e empenho dos profissionais que as integram. A saída de professores que as integram agrava de forma substantiva a insuficiência de recursos.

Muitas vezes tenho aqui referido a necessidade maior investimento e eficiência no âmbito do sistema de protecção de menores. Para além do reforço dos recursos das CPCJ seria desejável uma melhor integração e oportunidade das respostas a situações detectadas, uma adequação às mudanças e novas realidades na área dos Tribunais de Família e Menores, etc. Os serviços de apoio às comunidades, ainda que regulados e escrutinados, deverão ser suficientes e adequados em recursos e procedimentos.

Este cenário permite que ocorram situações, frequentemente com contornos dramáticos, envolvendo crianças e jovens que sendo conhecida a sua condição de vulnerabilidade não tinham, ou não tiveram, o apoio ou os procedimentos necessários. É então provável que, depois de se conhecerem episódios mais graves, possamos ouvir expressão que me deixa particularmente incomodado, a criança estava “sinalizada” ou “referenciada”, mas dessa "sinalização" não decorreu a adequada intervenção.

Sinalizamos e referenciamos com relativa facilidade, a grande dificuldade é mesmo minimizar ou resolver os problemas das crianças referenciadas ou sinalizadas. Importa ainda não esquecer as que passam mal em diferentes aspectos sem que estejam sinalizadas ou referenciadas. Nos tempos que atravessamos os riscos serão maiores.

Por isso, sendo importante registar uma aparente menor tolerância da comunidade aos maus tratos aos miúdos, também será fundamental que desenvolva a sua intolerância face à ausência de respostas que más opções em matéria de políticas públicas sustentam.

As crianças são resilientes, mas família, afecto, contextos educativos de qualidade, são bens de primeira necessidade.

Como afirma, Benedict Wells em “O fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se sabe quando nos vai atingir”.

domingo, 28 de setembro de 2025

OUTONO

 Chegou o Outono ao meu Alentejo, não só porque o calendário o determina, mas porque as tarefas mudam. Das do Verão mantém-se, por enquanto, alguma rega, apesar das noites já trazerem algumas branduras que refrescam as plantas.

Estamos no fim-de-semana da festa que comemora a Senhora D’Aires e confirmou-se a tradição, o Velho Zé Marrafa sempre a sublinhava, se não chovesse pela feira de Ferreira, certamente choveria na semana seguinte, a da Festa da Senhora D'Aires. E assim aconteceu, uma chuva não muito grada, bem chovida, sem muito vento que deixou a horta regada e o pasto molhado, mas a terra ainda não dará para fabricar.

É tempo de outra tarefa de Outono, apanhar as primeiras azeitonas, das mais gradas para conserva. Depois de uns dias debaixo da nascente, outro privilégio aqui do Monte, a água corrente rapidamente lhes tira o amargo, é só pôr sal, temperar e ... costumam ficar óptimas.

Para a semana temos as nozes, este ano muitas parecem estragadas, vamos ver o que dá. Vamos esperar pelas águas que o Outono certamente trará e que permitirão começar a fabricar a terra.

Sempre que acontece a festa da Senhora D’Aires me lembro de uma história já de alguns anos. Precisando de renovar o calçado de trabalho fui feirar. Nas bancas do calçado observava a oferta variada e procurava umas botas como as do costume, sola de pneu.

Um feirante ia sugerindo tudo o que lá tinha e às tantas pareceu perceber o que eu queria mesmo, botas com sola de pneu que já não se encontram muito facilmente. Foi à ponta da banca e traz-me com ar de vendedor satisfeito o produto que eu queria. Olhei para as botas um pouco desconfiado pois não pareciam ser as velhas botas com sola de pneu.

O vendedor mostra-me então que eram, sim senhor, o que eu queria. As botas tinham inscrito na sola, feita com borracha vulgaríssima, a marca "PENEU". Fiquei perplexo a olhar para as botas que, lá num cantinho, tinham ainda um discreto "made in China".

Arranjei uma desculpa e desandei esmagado pelo empreendedorismo de uma economia global. Botas com sola "PENEU", ainda não digeri, é de mais para mim numa feira do Alentejo.

E são assim os dias do Alentejo, agora no Outono.

sábado, 27 de setembro de 2025

A NÃO REUTILIZAÇÃO DOS MANUAIS DO 1.º CICLO

 Finalmente a decisão acertada, no 1.º ciclo os manuais não serão reutilizados, o que deveria ter acontecido desde o início da sua gratuitidade. Muitas vezes aqui tenho abordado a questão dos manuais escolares, incluindo a reutilização, e retomo algumas notas.

Por várias razões e de natureza diferente, continuo a entender que o nosso modelo de trabalho, apesar das excepções e das mudanças, ainda se pode considerar excessivamente “manualizado” ou seja, assenta talvez demais em práticas pedagógicas pouco diferenciadas muito decorrentes de conteúdos curriculares demasiado extensos, prescritivos e normalizadores. Seria desejável atenuar a fórmula predominante, o professor ensina com base no manual o que o aluno aprende através do manual que o pai acha muito importante porque tem tudo o que professor ensina. Não esqueço, no entanto, que variáveis como a natureza e conteúdos curriculares, o número de alunos por turma ou ainda a cultura pedagógica de décadas, influenciam este cenário.

Estou convicto de que sem aligeirar o peso do manual no trabalho em sala de aula, os níveis de diferenciação necessários como forma mais robusta à diversidade dos alunos ficam comprometidos.

Neste contexto, parecia claro que os manuais do 1.º ciclo não poderiam, não deveriam, ser reutilizados. Conhecem-se referências a “expedientes” usados pelos pais para “apagar” o rasto que os seus filhos deixaram nos manuais.

Como tantas vezes afirmo, a entrada na escola, no 1º ciclo, será dos poucos processos que quando correm mal já não é possível voltar atrás e recomeçar com a esperança de que a coisa vá correr melhor.

Torna-se, pois, essencial que este processo de entrada na escola seja pensado e orientado, que crie as rotinas, a adaptação e a confiança em miúdos e em pais, indispensáveis à aprendizagem bem-sucedida.

É fundamental não esquecer que os miúdos à entrada na escola não estão todos nas mesmas condições pelas mais variadas razões, ambiente e experiências familiares, percurso anterior, características individuais, etc., o que exige desde o início uma atenção diferenciada que combata a cultura de que devem ser todos tratados da mesma maneira que alguma opinião publicada e ignorante defende.

Antes de, com voluntarismo e empenho, se tentar ensinar aos miúdos as coisas da escola é preciso, como sempre afirmo, dar tempo, oportunidade e espaço para que aprendam a escola. Depois de aprenderem a escola estarão mais disponíveis para então aprender as coisas da escola.

É neste contexto que julgo que os manuais devem ficar com os alunos, permitindo que possam ser usados como suporte do seu trabalho sem que este entendimento, comprometa o que disse acima sobre o excesso de peso pedagógico atribuído ao manual. Acresce ainda que apesar de alguma “disciplinarização” dos conteúdos curriculares, incluindo o recurso a manuais para cada conteúdo, e a lógica de ciclo contida na LBSE, a continuidade da relação dos alunos em diferentes patamares de aprendizagem e desempenho ao longo do ciclo com o trabalho desenvolvido também aconselharão a que se mantenham os manuais que vão utilizando.

Esta manutenção dos manuais terá ainda um valor de natureza menos tangível, diria afectivo, pois acabam por ser um registo, um diário de bordo da sua aprendizagem e um instrumento de relação com o trabalho escolar.

Como é óbvio este entendimento não belisca a necessidade do recurso a actividades e materiais diversificados num já referido modelo de diferenciação pedagógica.

Definitivamente, nos primeiros anos a relação com os manuais é de natureza diferente da que estabelece em fases posteriores da escolaridade obrigatória em que a reutilização é bem mais “tranquila”, por assim dizer.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

NOTÍCIAS DA CHAMADA EDUCAÇÃO INCLUSIVA

 Volto hoje à questão da educação de crianças e jovens com necessidades especiais. Foram 47 anos de uma carreira profissional sempre associada a este universo e o interesse e a inquietação permanecem.

Há dois dias, por iniciativa do Movimento por uma Inclusão Efectiva que envolve pais de e jovens com necessidades especiais realizou uma manifestação em frente ao MECI em protesto pela falta de condições existentes nas escolas e centros educativos para incluir estes alunos. Para além de pais, participaram também técnicos e educadores. O Ministro em intervenção pública reconheceu os problemas referindo e informou estarem em realização alguns estudos que sustentarão alterações necessárias. No entanto, lamento a dúvida, os estudos do Ministério da Educação estão mais frequentemente associados a problemas que a soluções. A ver vamos.

O Movimento para a Inclusão Efectiva foi criado por pais de crianças e jovens com necessidades educativas especiais e há pouco tempo promoveu a petição pública, “Por uma Inclusão Efectiva nas Escolas”, que exigia a fiscalização do Decreto-Lei 54/2018 referente à escola inclusiva e que contou com mais de 10 mil assinaturas.

O Movimento por uma Inclusão Efectiva também promoveu no início deste ano um inquérito a pais nesta situação para conhecer a sua percepção de como decorre o processo educativo dos filhos ao abrigo do quadro legal definido pelo decreto-lei 54/2018. Alguns indicadores que na altura aqui citei.

Considerando as 1036 respostas válidas, 73% entendem a situação nas escolas não melhorou desde a entrada em vigor do DL 54/2028. A maioria dos pais, 58%, refere que as terapias necessárias não estão a ser realizadas e as que se realizam são consideradas insuficientes por 96%.

Uma outra questão considerada crítica prende-se com a sobrelotação das turmas levando sobrelotação com reflexos negativos no tempo de permanência das salas de aula e no tempo para apoio directo.

Foi também realizado um inquérito a profissionais que acompanham as crianças, 453 respostas, sendo que 58% consideram também que a situação não melhorou com a mudança de legislação.

Apesar de entender que a leitura e interpretação destes dados deve ser prudente, também entendo que merecem atenção e reflexão. Com uma carreira profissional de quase 50 anos ligada a este universo é inevitável a reflexão sobre estas matérias.

Lamentavelmente são recorrentes as vozes de pais, professores, técnicos ou directores escolares e algumas referências na imprensa relativamente a essas dificuldades e, como se dizia há uns anos, … a luta continua.

Algumas notas retomadas, não vale a pena inventar.

Segundo dados da DGEEC, no ano lectivo passado, estavam cerca de 90000 alunos ao abrigo de medidas selectivas e/ou adicionais de acordo com o DL 54/2018.

Recordo que em 2018, a entrada em vigor do novo enquadramento normativo, o ME decidiu que já não podíamos referir alunos com “necessidades educativas especiais” porque a designação não era conforme a “educação inclusiva”, categorizava alguns alunos o que não é uma boa prática. Assim, determinou que os alunos que revelavam algum tipo de dificuldade eram objecto de medidas educativas arrumadas em três categorias, as medidas “universais”, as medidas “selectivas” e as medidas “adicionais”. Isto parece que é uma outra forma de categorizar, mas não é. Na educação inclusiva é assim que se faz.

Também acontece que temos alguma dificuldade em interpretar os dados que vão sendo divulgados, aumenta o número de alunos com dificuldades de alguma natureza ou aumenta o número de alunos com medidas aplicadas. E quais as dificuldades dos alunos que se inscrevem nas medidas “universais” uma vez que são … “universais”.

São habituais as preocupações com a insuficiência preocupante dos recursos humanos, professores e técnicos, designadamente psicólogos e terapeutas, auxiliares educativos bem como o crescimento significativo do número de alunos sinalizados com algum tipo de dificuldade. Aliás, também se conhecem situações em que professores com funções de apoio assumem outro trabalho minimizando a falta de professores.

 Deste quadro resulta a impossibilidade de assegurar a muitos alunos aquilo que é “apenas” um direito e não um privilégio, uma resposta educativa de acordo com as suas necessidades. Sim, eu sei que não é fácil, e também sei que existem responsáveis pelas políticas públicas de diversos sectores envolvidas nestas questões.

A verdade é que torturar a realidade não a obriga a confessar. Muitos alunos não, não estão incluídos nem sequer integrados, estão “entregados” com as consequências que professores, técnicos e pais bem conhecem. E não estou a considerar apenas os “Selectivos”, os “Adicionais” ou os “Universais” do 54/2018.

Este cenário de insuficiência de recursos tem sido referenciado em trabalhos diversos incluindo da Inspecção-Geral de Educação e Ciência.

Como tenho afirmados e escrito inúmeras vezes, acompanhei com esperança e expectativa a mais do que necessária, reafirmo, mudança legislativa desencadeada no âmbito da Educação Inclusiva que se traduziu no DL 54/2018 ele próprio associado a todo um quadro de mudança envolvendo, designadamente a definição do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, das Aprendizagens Essenciais ou o Decreto-Lei n.º 55/2018 relativamente ao currículo. Todo este edifício potenciaria a inovação, a mudança de paradigma, de vários paradigmas aliás, e alguns falavam mesmo da revolução que estava em marcha e anunciavam os amanhãs que cantam.

Com confiança em algumas virtudes do novo quadro aguardei expectante pela revelação da anunciada escola inclusiva de 2ª geração. No entanto, para meu desconforto e cansaço, o que fui conhecendo e vai sendo divulgado não me ajudou a perceber o que seria.

Continuo a verificar que, tal como aconteceu com o velho 319/91, (nesta altura eu já trabalhava neste universo há 15 anos), quer com o 3/2008 e depois com o actual 54/2018 existiam e existem professores, técnicos e escolas a realizar trabalhos notáveis que devem ser conhecidos e reconhecidos.

A avaliação dos alunos, a definição dos apoios nas diferentes tipologias (já usadas como categorização uma vez que a outra categorização já não existe), o funcionamento das Equipas, os recursos disponíveis, a organização da intervenção, os papéis ou a articulação dos intervenientes continuam com inúmeros sobressaltos. Recebo muitos testemunhos e, como referi, os dados conhecidos também não são particularmente animadores.

Apesar de agora estar já desligado em termos profissionais, o interesse e a paixão por este universo não se reforma, mantêm-se e apesar do cansaço, sempre me animo quando conheço situações muito positivas que, felizmente, acontecem todos os dias em tantas escolas.

No entanto, nem tudo vai bem, muito longe disso. Insisto, não torturem a realidade que ela não vai confessar, alterem-na, é o que espera de políticas públicas e de promoção de direitos inalienáveis.

Há muito que fazer, muito para caminhar.

 PS – Já agora e mais uma vez, talvez já vá sendo tempo de não insistir no uso da designação "educação inclusiva" para referir a educação dos alunos que têm algum tipo de dificuldade e que se encaixam nas novas "categorias", os "universais", os "selectivos" e os "adicionais" criadas pelo DL 54, a educação inclusiva é de todos e, portanto, deveria ser “apenas” Educação que no nosso quadro constitucional é obrigatória, gratuita e UNIVERSAL.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

DIREITO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA À EDUCAÇÃO - ano lectivo 2025/2026

 Pedindo desculpa pela extensão, mas dada a sua importância crítica, aqui se divulga o parecer enviado pelo Mecanismo Nacional de Monitorização da Implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Me-CDPD) ao Ministro da Educação, Ciência e Inovação relativo ao cumprimento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em particular no universo da educação.

O Me-CDPD é um organismo nacional português, criado em 2019 e dependente da Assembleia da República. As suas principais funções são promover, proteger e monitorizar a implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, emitindo pareceres sobre legislação, propondo alterações, e colaborando com outras entidades nacionais e internacionais.

O parecer merece leitura atenta.

“Ao Ministro da Educação, Ciência e Inovação

Lisboa, 15 de setembro de 2025

Assunto: Direito das pessoas com deficiência à educação – ano letivo 2025/2026

Exmo. Senhor Ministro,

O Mecanismo Nacional de Monitorização da Implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Me-CDPD), vem, pela presente, manifestar profunda preocupação relativamente às notícias veiculadas e testemunhos de famílias relativamente às lacunas persistentes na efetivação do direito à educação inclusiva, consagrado no artigo 24.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) - Educação, ratificada pelo Estado português em 2009, no início deste ano letivo 2025/2026.

A CDPD, complementada pelo Comentário Geral n.º 4 do Comité da ONU (2016)¹, estabelece que os Estados têm a obrigação de assegurar um sistema educativo inclusivo, sem exclusões, discriminações ou práticas segregadoras, garantindo a todas as crianças, incluindo as com deficiência, igualdade de oportunidades, acesso a recursos adequados e ambientes de aprendizagem seguros.

Contudo, a realidade reportada por famílias, associações e confirmada em estudos recentes revela um afastamento preocupante desses compromissos.

1. Recursos humanos insuficientes e desigualdade territorial

O artigo 24.º da CDPD impõe ao Estado a obrigação de disponibilizar os apoios necessários, em ambientes inclusivos, para que todas as crianças com deficiência possam aprender em igualdade de circunstâncias. O Comentário Geral n.º 4 (ONU, 2016) sublinha que a adequação de recursos humanos especializados é condição essencial para garantir a qualidade e a não discriminação.

Todavia, na realidade continuam a persistir disparidades territoriais significativas, quanto à distribuição do número de professores de ensino especial por escola e turma; bem como, quanto ao número de alunos acompanhados em sala de aula, o que compromete seriamente a qualidade pedagógica e a individualização dos apoios.

O Estudo do ISCTE (2023), “O Estado da Arte da Educação Inclusiva em Portugal” revela que mais de 60% das famílias inquiridas consideram insuficiente o número de recursos humanos disponíveis nas escolas, e que cerca de 10% dos alunos não beneficiaram de qualquer recurso humano específico de apoio à aprendizagem e inclusão. Simultaneamente, a manutenção de rácios desajustados, incluindo de assistentes operacionais – não revistos há anos – põe em risco não apenas o direito à aprendizagem, mas também a segurança física das crianças, violando o princípio da proteção consagrado no artigo 7.º da CDPD – Crianças com deficiência.

À luz das lacuna e dificuldades reiteradas ao longo dos últimos anos, entende do Me-CDPD, que a preparação do início do presente ano letivo deveria ter assegurado:

Um levantamento nacional atualizado das necessidades de recursos humanos, permitindo a colocação de docentes de educação especial e técnicos em número adequado a cada território e contexto escolar;

A revisão imediata dos rácios de assistentes operacionais, com ajustamentos proporcionais ao número de alunos com deficiência e ao grau de apoio requerido;

A implementação de mecanismos de afetação diferenciada, corrigindo as assimetrias regionais que penalizam sobretudo as escolas da região da zona de Lisboa e do sul do país;

Um plano de monitorização pública e transparente, envolvendo famílias e organizações representativas, de modo a verificar se os recursos atribuídos estão efetivamente presentes nas escolas e disponíveis para os alunos.

A ausência destas medidas no arranque de mais um ano escolar representa a repetição de falhas já amplamente identificadas pela investigação académica e pelos relatórios de monitorização, contrariando a obrigação do Estado de adotar medidas imediatas e eficazes para a plena realização do direito à educação inclusiva (artigo 4.º, n.º 2 da CDPD²).

2. Apoios educativos tardios e incompletos

O Comentário Geral n.º 4 da ONU estabelece que os Estados devem assegurar uma avaliação adequada e contínua das diferentes necessidades, para que nenhum aluno inicie o ano letivo sem os apoios ajustados.

Contudo, segundo o Estudo do ISCTE (2023), apenas 32% dos encarregados de educação foram convocados para reunião com a Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva (EMAEI) no início do ano, e 32% dos alunos nunca foram ouvidos ao longo do ano letivo, em clara contradição com o direito da criança a ser ouvida (artigo 7.º, CDPD).

Relativamente ao presente ano letivo, de acordo com as notícias veiculadas, esta ausência de planeamento atempado através da implementação dos Relatórios Técnico-Pedagógicos (RTP) e Programas Educativos Individuais (PEI), criando descontinuidade nos apoios e aumentando o risco de exclusão.

Face à experiência acumulada em anos anteriores e às conclusões dos estudos nacionais, no início do presente ano letivo deveria estar assegurado que:

Todas as crianças com deficiência entrassem no novo ano escolar já com RTP e/ou PEI atualizado e em vigor, resultante de reuniões preparatórias realizadas no final do ano letivo anterior;

As reuniões das EMAEI fossem obrigatoriamente convocadas antes do início das atividades letivas, com envolvimento efetivo das famílias e participação ativa dos alunos, em conformidade com a CDPD e com a Observação Geral n.º 12³, sobre o direito das crianças a serem ouvidas;

Os apoios previstos nos documentos fossem imediatamente operacionalizados desde o primeiro dia de aulas, evitando períodos de vazio de resposta que comprometam aprendizagens e inclusão;

Existisse monitorização externa e independente do cumprimento destes prazos e obrigações, de forma a garantir a responsabilização das escolas e a não repetição dos atrasos recorrentes.

A ausência destas medidas no início de mais um ano letivo confirma a persistência de práticas administrativas e pedagógicas que contrariam os objetivos da escola inclusiva, prolongando a exclusão e adiando a concretização do direito à educação em igualdade de oportunidades, em violação do artigo 24.º da CDPD.

3. Segregação e isolamento em estruturas de apoio

A CDPD (artigo 24.º, n.º 2, alinea b) proíbe expressamente a exclusão do ensino geral e determina que os alunos com deficiência tenham acesso à aprendizagem em salas regulares, com os seus pares. O Comentário Geral n.º 4 do Comité da ONU (§40) reforça que práticas de segregação, mesmo que justificadas como medidas de apoio, configuram violação direta da Convenção.

Segundo o estudo do ISCTE (2023), os dados demonstram que 48,1% dos alunos apoiados pelos Centros de Apoio à Aprendizagem passam a maior parte do tempo afastados da turma regular, sem contacto suficiente com professores de diferentes disciplinas. Tal realidade não só contraria os objetivos da escola inclusiva, como perpetua práticas de isolamento institucional que a ONU já considerou incompatíveis com os direitos humanos.

Tendo em conta as evidências acumuladas nos últimos anos, considera o Me-CDPD, que no início do presente ano letivo, o Ministério da Educação, Ciência e Inovação tivesse implementado medidas claras para corrigir este padrão, nomeadamente:

Garantir que os Centros de Apoio à Aprendizagem funcionem como estruturas de suporte à inclusão na turma regular, e não como espaços paralelos de permanência;

Assegurar que todos os planos educativos individuais (PEI) estipulam tempos mínimos obrigatórios de permanência em sala regular, salvo em casos excecionais devidamente fundamentados e acordados com a família;

Monitorizar, através de mecanismos de avaliação externa e independente, o tempo efetivo de frequência em turma regular, corrigindo práticas de segregação que possam persistir;

Investir na formação contínua dos docentes do ensino regular, para que tenham as competências necessárias à adaptação pedagógica e não deleguem a responsabilidade da inclusão apenas nos docentes de educação especial.

A ausência destas medidas no início de mais um ano escolar representa não apenas a repetição de falhas já identificadas, mas também um incumprimento da obrigação de progressividade de implementação da Convenção (artigo 4.º, n.º 2 da CDPD).

4. Discriminação e violência em contexto escolar

O artigo 16.º da CDPD impõe aos Estados a adoção de medidas eficazes para proteger as crianças com deficiência contra todas as formas de violência, abuso e maus-tratos, que sejam perpetradas por colegas, professores ou outros profissionais em contexto escolar. O Comentário Geral n.º 4 da ONU acrescenta que a criação de um ambiente seguro e livre de violência constitui uma condição essencial para o exercício do direito à educação inclusiva.

Citando, novamente, o Estudo do ISCTE (2023), verifica-se que cerca de 25% das famílias reportaram situações de discriminação ou maus-tratos, perpetrados não apenas por colegas (51,7%), mas também por professores (40,4%) e até por direções escolares (27%). No mesmo sentido, em termos de análise e preocupação, o Relatório do ODDH (2024)⁴ regista a educação como uma das áreas mais visadas em queixas de discriminação, representando 13,7% das queixas apresentadas ao abrigo da Lei n.º 46/2006.

Estes dados evidenciam que, apesar dos compromissos assumidos por Portugal, a proteção efetiva contra a violência e maus-tratos não está a ser assegurada, configurando uma violação grave dos deveres internacionais do Estado. Entende o Me-CDPD, à luz das falhas sistemáticas dos anos anteriores, que no início do presente ano letivo deveria estar assegurado:

Existência de planos de prevenção e resposta a situações de violência e discriminação em todas as escolas, com protocolos claros de denúncia, investigação e acompanhamento das vítimas;

Formação obrigatória de professores, assistentes operacionais e equipas diretivas em matéria de direitos humanos, gestão de conflitos e prevenção de discriminação, conforme recomendado pelo Comité da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência⁵;

Implementação de sistemas independentes de monitorização e auditoria que permitam acompanhar a resposta das escolas a situações de violência e a aposta contínua na prevenção;

Promoção ativa de programas de sensibilização junto da comunidade escolar (pais, alunos e profissionais), de modo a prevenir o bullying e fomentar uma cultura inclusiva, assente no modelo de direitos humanos preconizado pela CDPD.

A inexistência destas medidas no arranque do ano letivo perpetua práticas de exclusão em contexto escolar, contrariando diretamente a CDPD e os Comentários Gerais da ONU, e colocando em causa a credibilidade de Portugal no cumprimento das suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos das crianças com deficiência.

5. Impacto estrutural e compromisso com o futuro

A ausência de respostas educativas inclusivas eficazes compromete não apenas o presente escolar das crianças com deficiência, mas também as suas trajetórias de vida adulta, em clara violação do artigo 24.º, n.º 5 da CDPD ⁶, que determina que a educação deve ser orientada para o desenvolvimento pleno do potencial humano, para a dignidade e para a participação social e profissional em igualdade de oportunidades.

O Relatório do ODDH (2024) confirma que os jovens com deficiência em Portugal continuam a apresentar maiores taxas de abandono escolar e menores níveis de qualificação face à média da população, o que se traduz em taxas de desemprego mais elevadas e em maior risco de pobreza e exclusão social.

Este ciclo de exclusão não representa apenas uma violação de direitos humanos fundamentais: traduz-se também num desinvestimento estrutural do Estado, que adia custos sociais e económicos para o futuro. Os jovens que não beneficiam de uma escolarização inclusiva e de qualidade tornam-se adultos com menor autonomia, o que implica maior dependência de apoios sociais, contrariando a obrigação do Estado de garantir a independência e a plena inclusão na comunidade (artigo 19.º da CDPD - Direito a viver de forma independente e a ser incluído na comunidade).

Considera o Me-CDPD, que no início do presente ano letivo deveria estar garantido a/o:

Definição de planos de transição consistentes para a vida pós-escolar, orientados para a formação profissional, emprego e participação comunitária, e não para a institucionalização, em conformidade com a CDPD e com o Comentário Geral n.º 4 da ONU;

Implementação de sistemas de acompanhamento individualizados desde o ensino básico, que assegurem a progressão académica e a redução das taxas de abandono escolar;

Reforço de articulação interministerial (Educação, Trabalho, Solidariedade e Inclusão), para garantir que a escola inclusiva e o ponto de partida de políticas integradas de empregabilidade e inclusão social;

Disponibilização de dados transparentes e atualizados sobre abandono escolar, sucesso académico e empregabilidade de jovens com deficiência, para fundamentar políticas baseadas em evidência e não em percepções fragmentadas;

Envolvimento sistemático das famílias e das organizações representativas no desenho de políticas públicas que assegurem a continuidade entre a escola e a vida adulta.

A inexistência destas medidas no arranque de mais um ano letivo perpetua a exclusão estrutural e reforça desigualdades já identificadas, contrariando os compromissos internacionais de Portugal e pondo em causa a sustentabilidade social e económica do país a médio e longo prazo.

À luz do exposto e em conformidade com as obrigações assumidas por Portugal no âmbito da CDPD e dos Comentários Gerais do Comité da ONU, o Me-CDPD recomenda:

Reforço urgente dos recursos humanos (professores de educação especial, técnicos especializados e assistentes operacionais), com correção das assimetrias regionais e revisão periódica dos rácios.

Planeamento e operacionalização atempada dos apoios educativos, garantindo que todos os alunos iniciam o ano letivo com Relatório Técnico-Pedagógico (RTP) e/ou Programa Educativo Individual (PEI) em vigor.

Promoção da inclusão plena em sala de aula regular, assegurando que os Centros de Apoio à Aprendizagem funcionam como estruturas de suporte e não de segregação.

Implementação de mecanismos eficazes de prevenção e resposta a situações de violência e discriminação, com formação obrigatória de profissionais e sistemas independentes de monitorização.

Definição de planos de transição para a vida adulta, articulados com políticas emprego, formação e  inclusão social, de forma a garantir a autonomia e a participação comunitária.

Disponibilização de dados fiáveis e transparentes, que permitam monitorizar o impacto das políticas educativas inclusivas e assegurar a sua avaliação independente.

Participação ativa das famílias e organizações representativas na conceção, monitorização e avaliação das políticas públicas em educação inclusiva.

Garantir que os Centros de Atividades de Tempos Livres (ATL) são plenamente inclusivos e acessíveis, assegurando a existência de respostas de apoio que acolham todas as crianças, independentemente das suas necessidades de apoio; disponibilizando recursos humanos especializados e formação contínua dos profissionais que acompanham as atividades; garantindo o apoio às famílias, para que não sejam forçadas a optar por soluções segregadoras ou a assumir isoladamente responsabilidades que pertencem ao Estado e à comunidade educativa.

O direito à educação inclusiva constitui um direito humano fundamental e um pilar de uma sociedade democrática que valoriza todas as crianças e jovens. A situação atual, descrita e sustentada em evidência empírica, demonstra que o Estado português está a falhar na concretização plena do artigo 24.º da CDPD e nas recomendações reiteradas do Comité da ONU.

O Me-CDPD reafirma a sua total disponibilidade para colaborar ativamente com o Ministério da Educação, Ciência e Inovação na articulação de soluções estruturais, no acompanhamento de medidas concretas e na monitorização participada das políticas públicas, em prol da garantia plena dos direitos das crianças e jovens com deficiência em Portugal.

Agradeço a boa continuidade dada a este tema.

Com elevada consideração,

Vera Bonvalot Presidente

Mecanismo Nacional de Monitorização da Implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Me-CDPD)”

“Declaração n.º 4/2025/1

Composição do conselho consultivo do mecanismo nacional de monitorização da implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

A Assembleia da República declara, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º 71/2019, de 2 de setembro, que o conselho consultivo do mecanismo nacional de monitorização da implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é composto pelos seguintes membros:

Paula Alexandra Gonçalves de Oliveira Guimarães, representante do Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata;

Ana Sofia Pedroso Lopes Antunes, representante do Grupo Parlamentar do Partido Socialista;

António Filipe Dias Melo Peixoto, representante do Grupo Parlamentar do Chega;

Clarisse Maria Maneca Rabaça Monteiro, representante do Grupo Parlamentar da Iniciativa Liberal;

Jorge Falcato Simões e Joana Filipa Soares Cottim Leite Dias, representante efetivo e suplente do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda;

Henrique Arantes Lopes de Mendonça, representante do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português;

Sara Regina Patrício Pereira Campos Rocha, representante do Grupo Parlamentar do Livre;

Ana Clara de Sousa Birrento Matos Silva, representante do Grupo Parlamentar do CDS - Partido Popular;

Maria Manuela Oliveira Castro Pereira, representante da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores;

Margarida Maria Ferreira Diogo Dias Pocinho, representante da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira;

Odete Severino, representante da Comissão Nacional para os Direitos Humanos;

Liakatali Fakir, representante da Associação dos Deficientes das Forças Armadas;

Celeste Costa, representante da Cooperativa Nacional de Apoio a Deficientes;

José Manuel Lourenço, representante do Comité Paralímpico de Portugal;

Eduardo Almeida Ferreira Sousa Pizarro, representante da Federação Portuguesa de Autismo;

Fausto Pereira, representante da Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência;

Rosa Moreira, representante da Humanitas - Federação Portuguesa para a Deficiência Mental;

Helena Rato, representante da Associação Portuguesa de Deficientes;

Paulo Urbano, representante da Associação Portuguesa de Insuficientes Renais;

Liliana Rute Caridade Sintra, representante da Associação Spina Bífida e Hidrocefalia de Portugal;

Diana Vanessa Conceição dos Santos, representante do Centro de Vida Independente.

Assembleia da República, 14 de fevereiro de 2025. - A Secretária-Geral, Anabela Leitão Cabral Ferreira.”

 

Um importante contributo para a reflexão sobre as políticas públicas e os direitos das pessoas com deficiência.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

A PROPÓSITO DO "PERFIL DO DOCENTE", "QUANTO TEMPO É QUE TE FALTA?"

 Há dias, a Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência divulgou o habitual estudo, "Perfil do Docente", relativo ao quadro de professores de 2023/2024 em Portugal continental.

Apesar de ser uma classe profissional com qualificação cada vez mais elevada, a grande e recorrente preocupação é o seu envelhecimento.

No 3.ºciclo e ensino secundário, a idade média dos professores é de 52 anos, seis em cada dez, 62%, têm 50 anos ou mais sendo que em 2013/14 se verificava 37,3% na mesma situação.

É também preocupante o baixo número de jovens professores. Considerando o grupo mais numeroso, 3.º ciclo e secundário, por cada grupo de 100 professores com menos de 35 anos, havia 1189 com 50 ou mais. Se for analisado por grupos disciplinares temos grupos em que a diferença é bem maior.

Como tem vindo a verificar-se, nada disto é estranho face à deriva política a que o universo da educação tem estado exposto nas últimas décadas, criando instabilidade e ruído permanente sem que se perceba um rumo, um desígnio que potencie o trabalho de alunos, pais e professores. Acresce que sucessivas equipas ministeriais têm empreendido um empenhado processo de desvalorização social e profissional dos professores com impacto evidente no clima das escolas e nas relações que a comunidade estabelece com estes profissionais. Este cenário baixou drasticamente a atractividade da carreira docente e, como sempre, sucessivos responsáveis por estes cenários, esquecem-se do que produziram e ignoram responsabilidades, perorando sobre o que fazer e que não fizeram.

Sabemos que os velhos não sabem tudo e os novos nem sempre trazem novidade. Mas também sabemos que qualquer grupo profissional exige renovação pelas mais variadas razões incluindo emocionais, de suporte, partilha de experiência ou pela diversidade.

A verdade é que as salas de professores são cada vez mais frequentadas, quando há tempo para isso, por gente envelhecida, cansada que se sente desvalorizada sociale profissionalmente, pouco apoiada, e que muitas vezes, demasiadas vezes, pergunta "Quanto tempo é que te falta?"

A propósito, relembro que, há já uns anos largos, uma professora, na altura minha aluna de doutoramento, me perguntava, com um ar meio sério, meio a brincar, se podia desenvolver a sua tese a partir de uma questão que considerava a mais ouvida nas salas de professores, quando no meio da burocracia e das actividades ainda havia tempo para passar na sala de professores, “quanto tempo é que te falta?”. A sua ideia não foi para a frente enquanto doutoramento, mas o que lhe está subjacente é bem claro e bem preocupante. O resultado está à vista.

Na verdade, ser professor é uma das funções mais bonitas do mundo, ver e ajudar os miúdos a ser gente, mas é seguramente uma das mais difíceis e que mais valorização nas diferentes dimensões e apoio deveria merecer. Do seu trabalho competente e valorizado depende o nosso futuro, (quase) tudo passa pela educação e pela escola.

No acesso ao ensino superior para o próximo lectivo registou-se um aumento de inscrições em cursos de formação de professores. É um bom sinal, mas é preciso fazer mais para que os docentes no sistema mantenham a aura e mais docentes novos criem a aura que o Ministro da Educação entende que perdem quando se manifestam pelas suas condições profissionais.

Os sistemas educativos com melhores resultados são, justamente, os sistemas em que os professores são mais valorizados, apoiados e reconhecidos.

Qual é parte que não se percebe?

terça-feira, 23 de setembro de 2025

DAS EXPLICAÇÕES ESCOLARES

 A propósito de um trabalho no JN sobre esta questão, umas notas relativas a uma área da formação escolar que continua bem sucedida, as explicações, ainda que também se reflicta nessa actividade a falta de professores. A procura é suficiente para que alguns centros de explicações tenham lista de espera.

Não tenho dados mais recentes e retomo um relatório divulgado em 2024 pelo Conselho Nacional de Educação com o título sugestivo “Relatório Técnico | Explicações / “'Educação (na) Sombra””, sobre o universo das explicações escolares e deveria constituir um forte contributo para ajustamentos nas políticas públicas de educação.

Vejamos alguns indicadores. Considerando os dados inquérito “Estudantes à Saída do Secundário de 18/19”, cerca de 28 mil, 29% afirmaram recorrer a explicações fora da escola. Mais de metade dos alunos que recorrem a explicações têm pais com formação superior e à medida que decrescem as habilitações familiares baixa a procura por explicações. As razões são óbvias e as consequências também.

Na verdade, nestes últimos anos este nicho do mercado da educação tem estado em alta com uma oferta crescente estimulada pela pressão da busca de apoio escolar externo.

Sendo certo que a pandemia se intrometeu, tenho para mim que são as políticas públicas de educação que têm sido definidas nos últimos anos o que verdadeiramente sustenta este florescente nicho de mercado.

Algumas vezes aqui tenho abordado esta questão. Recordo um estudo, também referido na peça do Público, realizado em 2019 pelo grupo “Ginásios da Educação Da Vinci”, um franchising que gere em Portugal 42 centros respondendo a 5400 alunos num universo estimado em 244 mil que recorrem a estes “serviços”. Destes, cerca de 70% têm “explicadores” particulares, maioritariamente professores que dão explicação num “cantinho” da sua casa num volume de facturação estimado em 200 milhões de euros e que passa, por assim dizer ao lado, das obrigações fiscais, questão que também o CNE coloca incluindo um plano de regulação. Ainda segundo os mesmos dados, existirão à volta de doze mil explicadores e de mil centros de estudo e apoio escolar.

Aliás, também no JN o Presidente do Conselho Nacional de Educação defende que o Ministério da Educação deveria promover maior regulação sobre esta área, designadamente nos requisitos de formação dos “explicadores”

Trata-se de facto de um mercado em expansão e fomentador do empreendedorismo individual e que também contribui para acentuar as desigualdades sociais pré-existentes sem qualquer sobressalto por parte de quem tem sido responsável por políticas públicas.

É um mercado que envolve alunos de todos os anos de escolaridade, mas tem maior procura em anos de exame e no ensino secundário quando está em jogo o acesso ao ensino superior.

Na verdade, é um mercado generalizado como se pode verificar com um passeio pelas proximidades das escolas abundando a oferta de ajudas fora da escola, antes conhecidas por “explicações”, mas agora com designações mais sofisticadas como “Centro de Estudo”, “Ginásio”, "Academia", etc., que, provavelmente, terão mais efeito “catch” no sentido de atingir o “target”, aliás, não são raras as designações em inglês. Ainda temos a oferta mais personalizada, as “explicações” no aconchego caseiro dos explicadores, numa espécie de atendimento personalizado. O mercado está sempre atento e o marketing desempenha um papel importante.

Apesar de nada ter contra a iniciativa privada desde que com enquadramento legal e regulação, o que está longe de existir, várias vezes tenho insistido no sentido de entender como desejável que os apoios e ajudas de que os alunos necessitam fossem encontrados dentro das escolas e agrupamentos. O impacto no sucesso dos alunos minimizaria, certamente, eventuais custos em recursos que, aliás, em alguns casos já existem dentro do sistema emboa saibamos da questão séria da falta de docentes e do  envelhecimento da classe ainda no activo.

Esta minha posição radica no entendimento de que a procura “externa” de apoios, legítima por parte das famílias, tem também como efeito o alimentar da desigualdade de oportunidades e da falta de equidade como tem sido regularmente sublinhado em múltiplos estudos.

Esta questão é também colocada no referido relatório do CNE e noutros trabalhos que evidenciam algo de muito significativo apesar de bem conhecido e reconhecido, nove em cada dez alunos com insucesso escolar são de famílias pobres.

A ajuda externa ao estudo como ferramenta promotora do sucesso não está ao alcance de todas as famílias sendo, portanto, fundamental que as escolas possam dispor dos dispositivos de apoio suficientes e qualificados para que se possa garantir, tanto quanto possível, a equidade de oportunidades e a protecção dos direitos dos miúdos, de todos os miúdos.

De uma vez por todas, é necessário contenção e combate ao desperdício, mas em educação não há despesa há investimento. Talvez o investimento canalizado para inúmeros projectos, iniciativas, vestidas de "inovação", consumidoras de recursos e vindas de fora da escola, fosse mais eficiente se utilizado na e pela escola no âmbito da sua autonomia.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

OS TEMPOS DA ABSURDIDADE

 Repetindo-me com uma preocupação crescente, os tempos vão estranhos e inquietantes, veja-se a situação nos Estados Unidos com o impacto mundial que tem e o que se passa noutros países incluindo o nosso.

Os discursos e comportamentos que circulam e se conhecem nos inúmeros suportes de cominicação são excessivamente contaminados por agendas, muitas vezes ocultas, outras explícitas e assustadoras. A produção e circulação de informação e conhecimento são excessivamente determinadas pela “pós-verdade”, pelos “factos alternativos” ou, em inglês que é mais sofisticado, em “fake news”.

Os padrões éticos da nossa vida política, económica e social estão abaixo da linha de água e a mentira, as mentiras, são regra, deixaram de ser excepção seja qual for a designação. Os últimos tempos em múltiplas geografias têm sido particularmente elucidativos e preocupantes.

Neste desassossego crescente, lembrei-me de novo de uma obra pouco divulgada do Professor António Bracinha Vieira, um homem enorme, um Mestre que me marcou e recordo de vez em quando pela sua lucidez e densidade cultural e científica.

O livro, "Ensaio sobre o termo da história - trezentos e sessenta e cinco aforismos contra o Incaracterístico" é um notável ensaio de Bracinha Vieira sobre o que designa como tempo da Absurdidade em que predomina o Incaracterístico e organiza-se em 365 parágrafos antológicos, os "aforismos", que combatem esse personagem dominante, o Incaracterístico. A primeira edição do livro é de 1994, foi objecto de alguma discussão num círculo diminuto e é evidente em muitos dos aforismos uma espécie de premonição do que agora vivemos

Partilho convosco os aforismos 15 e 18.

"Instalou-se no jargon cripto-anglófono do Incaracterístico uma inversão radical do sentido das palavras liberal, liberalismo (ainda presas a um étimo comum com liberdade) insinuando sob o totalitarismo da Absurdidade uma negaça de democracia. Decidido a desnaturar conceitos prestigiosos dos quais nem sequer consegue discernir o alcance, o Incaracterístico investe esses termos de um significado oposto ao que lhes cabia."

"A democracia da Absurdidade exerce-se num cenário oposto ao da cidade-estado: o Incaracterístico elege o Incaracterístico, e todas as alternativas em jogo a ele conduzem. Os sujeitos cujos nomes são designados logo surgem nos ecrãs-circo da Grande Absurdidade, preenchendo hiatos entre a publicidade mercantil, sem se aperceberem que são mercadoria de outras espécies. Dali debitam os seus sirénicos e sorumbáticos cantos e a escolha entre eles é o fiel da liberdade do Incaracterístico".

A pensar.

A pensar.

A pensar.

domingo, 21 de setembro de 2025

O RISCO DA "DESPROFISSIONALIZAÇÃO"

 A Agência para a Gestão do Sistema Educativo (AGSE) comunicou às escolas a orientação para que pudessem ser contratados educadores e professores não profissionalizados para a educação pré-escolar e 1.ºciclo do Ensino Básico.

A medida que procura minimizar a falta de docentes não está contemplada no quadro legal existente que exige que na educação pré-escolar e o 1.º ciclo os educadores e docentes deverão ser profissionalizados, ou seja, terem formação completa, científica e pedagógica para a função.

Reconhece-se, naturalmente, o resultado da incompetência das políticas públicas de educação com responsabilidades conhecidas e não assumidas, a falta de professores.

No entanto, a questão não pode, não deve, resolver-se com recurso à “desprofissionalização”, o trabalho com crianças em idade pré-escolar e no 1º ciclo não é para “amadores”.

Assim e pensando sobretudo nos que estão ou vão iniciar a o seu percurso na escolaridade obrigatória, umas notas recorrentes relativas ao que se espera e deseja que aconteça nos próximos tempos, o trabalho de professores e alunos em sala de aula, as aulas, o que menos me parece ser objecto de reflexão.

Sabemos como para a generalidade das crianças a experiência de educação pré-escolar e a “entrada” na escola, no fundo, o início da escolaridade obrigatória, continua a ser uma experiência fundamental para o lançamento de um percurso educativo e formativo com sucesso.

Em muitíssimas circunstâncias da nossa vida, quando alguma coisa não correu bem, é possível recomeçar e tentar de novo esperando ser mais bem-sucedido. Todos experimentámos episódios deste tipo.

Temos de garantir que os docentes, pré-escolar e 1.º ciclo tenham a formação adequada.

Também sabemos que pode não chegar para evitar dificuldades, mas também sabemos que os profissionais qualificados estarão mais preparados para com elas lidarem.

sábado, 20 de setembro de 2025

A HISTÓRIA DO PAPAGAIO

 Para fugir ao peso de uma agenda que nos assombra os dias, uma história de lá para trás no tempo.

Há quase 60 anos estava eu a assistir à prova oral do meu colega Fernando na disciplina de Ciências Naturais, acho que era assim que se chamava, do 5º ano do antigo curso do Liceu, quando o Setôr Jardim, professor competente, mas demasiado sério para o nosso gosto, disse ao meu colega para ir buscar uma peça que se encontrava numa mesa com materiais de apoio às provas. Tratava-se de um papagaio embalsamado, empoleirado num pequeno tronco.

Com o papagaio na mão do Fernando, o Setôr Jardim exigiu a classificação do bicho. O meu colega respondeu terminando com a referência à pertença ao grupo das Trepadoras, não sei se será ainda uma designação actual. Inquirido sobre a justificação, respondeu que se devia ao facto de estar equipado com dedos opostos nas patas que optimizavam a função de trepar.

Num raro momento de humor, mas mantendo a habitual sisudez, o professor perguntou-lhe como sabia ele tal coisa se desde o início agarrava o papagaio pelas patas. Pois o meu amigo Fernando respondeu tranquilamente que tinha um papagaio em casa. O exame acabou por ali, com sucesso, diga-se.

Tal como naquele tempo, creio que uma parte da nossa escola ainda desconhece, não quer ou não pode, o que os miúdos carregam na mochila, o que já sabem quando se sentam, seja aprendido em casa, nos ecrãs onde se fecham ou noutro qualquer cenário que não a sala de aula. O que há para saber está dentro do manual, dos manuais, dentro da sala de aula. O que os miúdos carregam, bom ou mau, muito ou pouco, ou não é valorizado ou nem sequer é conhecido.

A escola é sempre mais sucedida quando conhece o que os miúdos sabem e os leva a um passo adiante. É verdade que os tempos e os conteúdos impostos a uma escola “obesa” dão pouca margem e tempo para, de facto, conhecer os miúdos.

No entanto, como sempre digo, a gente só aprende a partir do que já sabe. Por isso é que muitos miúdos experimentam sérias dificuldades para darem passos na aprendizagem que, algumas vezes, são maiores que as suas pernas.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

"A CONSPIRAÇÃO PLATAFÓRMICA EM ACÇÃO"

 Estamos no final da primeira semana de aulas e continuamos sem conhecer os dados reais relativamente à falta de docentes nas escolas.

É bem provável que, mais uma vez, a ineficiência dos dispositivos que deveriam assegurar a informação em tempo útil tenha resultado de mais uma acção dessa não tangível entidade terrorista, a “Conspiração Platafórmica". Esta estrutura tem vindo a criar múltiplos problemas em sectores importantes da administração e em diferentes governos. Estamos num tempo em que estes fenómenos parecem um inquietante novo normal.

Estas acções desestabilizadoras da eficácia da administração, cujos operacionais são os conhecidos algoritmos, têm sido em número crescente e exigem respostas adequadas.

Como já aqui escrevi, terá sido constituído um grupo de trabalho coordenado pelo Ministro da Defesa, Nuno Melo, um reconhecido especialista em cibernética e pirataria informática, informação e contra-informação e, naturalmente, em Inteligência Artificial e Inteligência Natural.

Torna-se imperioso conhecer o resultado trabalho do Grupo, mas, ao que parece, terá desaparecido devido a um problema informático, claro, que os algoritmos, os bons, estão a tentar resolver através de outros algoritmos.

Mais a sério, são demasiadas omissões e falhas sem que as responsabilidades sejam devidamente assumidas.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

FAZ DE CONTA

 Passo o tempo a fazer de conta. Mas não sou só eu.

Faço de conta que gosto da escola e que tenho algum interesse pela maior parte das aulas.

Faço de conta que tenho a certeza do que quero fazer quando chegar a adulto.

Faço de conta que estudo a sério, mas apenas me preocupa ir passando.

Os meus pais fazem de conta que ficam contentes, mas bem queriam que eu fosse como a minha irmã, sempre tudo bem feito.

Os meus amigos, muitos deles, também fazem de conta que andam numa boa, mas andam tão às voltas com o caminho como eu.

Alguns professores fazem de conta que se preocupam com a gente e que querem ensinar, mas nunca me perguntaram o que é que eu acho da vida.

O meu pai faz de conta que adora a minha mãe e a minha mãe faz de conta que gosta do meu pai, mas não podem um com o outro, discutem o tempo todo quando a gente não está ao pé.

Às vezes, a gente anda a divertir-se e a fazer disparates a fazer de conta que está tudo bem, mas sabemos que não está.

Um dia gostava de não fazer de conta.

Como é que será?

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

"M'ESPANTO ÀS VEZES, OUTRAS M'AVERGONHO"

 No cumprimento do ritual de visita do Ministro da Educação a uma escola no início de cada ano lectivo, aquelas iniciativas no âmbito da chamada política de proximidade, o Ministro Fernando Alexandre afirmou, "Não consigo perceber como é que se desvalorizou tanto, socialmente, os professores. Os professores, durante muitos anos, andaram em manifestações, com razões para isso, mas o professor é alguém que é respeitado na sociedade por ser alguém que sabe, que tem autoridade, que é respeitado por gerações e gerações de alunos. Alguém que anda em manifestações perde toda essa aura".

Lembrei-me de Sá de Miranda, "M'espanto às vezes, outras m'avergonho".

O Senhor Ministro reconhece, claro, a desvalorização social e profissional dos professores, mas não podem manifestar o seu descontentamento, perdem a “aura”.

Não sei bem o que o Senhor Ministro entende por perder a aura, mas a aura perde-se e o mal-estar cresce com as condições de carreira e avaliação, a instabilidade nos trajectos profissionais, a desvalorização sentida, a asfixia da carga burocrática, o clima de escola em algumas situações, entre outras razões.

Não Senhor Ministro, os professores que se manifestam não perdem a aura, manifestam-se justamente para recuperar a aura que as políticas públicas de educação a pouco e pouco lhes foram roubando.



terça-feira, 16 de setembro de 2025

OS ECRÃS, AS OPORTUNIDADES E OS ALÇAPÕES

 Uma das questões mais críticas dos tempos que vivemos é o excesso de tempo passado em frente a um ecrã por parte dos mais novos ainda que não seja apenas nestas idades que tal se verifica.

Na imprensa de hoje surgem duas referências que, mais uma vez alertem para os riscos desta sobreexposição. A primeira referência é de um texto de Pedro Afonso no Observador, “ Scroll infinito: uma nova droga digital” de que deixo o "lead" “A utilização excessiva das redes sociais, para além de danos cognitivos, cria um número crescente de “zombies digitais”. Este embotamento afetivo também é observado na utilização prolongada das drogas." Este texto deveria ser de leitura e discussão obrigatória para todos os que lidam com crianças, adolescentes e jovens.

A outra referência remete para dados de um trabalho realizado com adolescentes e jovens sobre o tempo de exposição a ecrãs. O estudo é do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, da Universidade do Minho, e envolveu 1131 alunos entre os 11 e os 19 anos, do 6.º, 9.º e 12.º ano. A utilização média do telemóvel é de 4 h e três horas nas redes sociais.

De acordo com umas das autoras do trabalho citada no Público, “Alunos sabem que passam “muito tempo” à frente dos ecrãs, mas vício impede-os de se desligarem. Os alunos do 9.º e do 12.º ano admitem que passam muito tempo à frente dos ecrãs e dizem que gostariam de reduzir esse mesmo tempo, mas como é [uma prática] muito viciante, é-lhes muito difícil colocar os telemóveis de lado e desligarem-se.”

Muitas vezes e de há muito que aqui no Atenta Inquietude tenho abordado a questão dos ecrãs, em particular a utilização da net em diferentes formas e circunstâncias por parte dos mais novos. Também foi matéria muitas vezes integrada na minha actividade docente na área da Psicologia da Educação. Para além disso, foi objecto de muitas intervenções com grupos de docentes e de pais.

As questões e os riscos têm motivado diferentes abordagens sendo que em Portugal, a partir deste ano, tal como noutros países, e a partir deste ano os telemóveis estão proibidos nas escolas até ao 6.º ano e em algumas com acesso condicionado para alunos do 3.ºciclo. No entanto, independentemente da proibição escolar, creio que o tempo de ecrã, quer na duração, quer nos conteúdos e potencial impacto negativo se coloca, sobretudo, fora da escola, designadamente, nos contextos familiares.

Toda esta problemática tem sido objecto de trabalhos, notícias e reflexões nos últimos tempos potenciados pelo impacto que a série “Adolescência” teve há algum tempo.

Os dados que múltiplos estudos nacionais e internacionais relativos à utilização da net, considerando tempo e conteúdos, devem ser reflectidos, mas, peço desculpa, do meu ponto de vista e apesar de conhecer riscos e comportamentos graves, cyberbullying, por exemplo, ou questões de saúde mental como refere Pedro Afonso, devemos ter alguma serenidade e evitar discursos extremos.

Para as gerações mais novas não fica muito fácil imaginar um mundo sem a net. No entanto, a verdade é que se a net abriu um mundo inesgotável de oportunidades, também abriu um mundo de alçapões, nos conteúdos e possibilidades abertas e nos riscos da sobreexposição. Ligado desde sempre ao mundo dos mais novos, muitas vezes aqui tenho falado desses alçapões e como, apesar da vulgaridade e massificação da sua utilização, muitos pais me dizem desconhecê-los mesmo sendo eles próprios utilizadores regulares da net.

Em primeiro lugar sublinho que, como é evidente, não está em causa qualquer diabolização destas ferramentas, apenas um alerta para riscos e da necessidade de regulação da sua utilização pelos mais novos. 

Como múltiplos estudos revelam aumentou exponencialmente o tempo que crianças, adolescentes e jovens, tal como muitos adultos, estão em frente do ecrã. Naturalmente os riscos também aumentaram como o cyberbullying que já referi, chantagem e roubo, exposição a conteúdos inadequados às idades, pornografia infantil, etc.

Trata-se de mais um factor de pressão para a supervisão imprescindível, mas muito difícil dos mais novos na sua relação com a net.

É importante sublinhar que dados do Estudo Internacional de Alfabetização em Informática e Informação (ICILS) envolvendo 11 países e divulgados em 2020 sugerem que os alunos portugueses são os mais bem preparados para usar a internet de forma responsável. No entanto, os dados relativos aos riscos que aqui tenho referido, são, de facto, geradores de preocupação como mostram os textos que referi de início.

Nesta perspectiva e tal como noutras áreas o recurso privilegiado a estratégias proibicionistas não funciona. É mais eficiente a promoção da utilização auto-regulada e informada. A net e o mundo de oportunidades, benefícios e riscos que está presente em todas as suas potencialidades é uma matéria que deve merecer a reflexão de todos os que lidam com crianças e jovens embora não lhes diga exclusivamente respeito. É o nosso trabalho.

Sabemos que muitas crianças têm um ecrã como companhia durante o pouco tempo que a escola "a tempo inteiro" e as mudanças e constrangimentos nos estilos de vida das famílias lhes deixam "livre". Também é verdade que a crescente "filiação" em redes sociais virtuais pode “disfarçar” o fechamento, juntando quem “sofre” do mesmo mal e o tempo remanescente para estar em família, frequentemente, ainda é passado à sombra de uma televisão, ou mesmo em modo "cada cabeça, seu telemóvel".

Estas matérias, a presença das novas tecnologias na vida dos mais novos e os riscos potenciais, por estranho que pareça, são problemas menos conhecidos para muitos pais. Aliás, as dificuldades sentidas por muitas famílias na ajuda aos filhos em tempo de ensino não presencial, mostrou isso mesmo, baixos níveis de literacia digital. Considerando as implicações sérias na vida diária importa que se reflicta sobre a atenção e ajuda destinada aos pais para que a utilização imprescindível e útil seja regulada e protectora da qualidade de vida das crianças e adolescentes minimizando os riscos existentes nos “alçapões da net”. Existem demasiadas situações em que desde muito cedo os “smartphones” ou outros dispositivos funcionam como “babysitters”.

Por outro lado, a experiência mostra-me que muitos pais desejam e mostram necessidade de alguma ajuda ou orientação nestas matérias. Sabemos que estratégias proibicionistas tendem a perder eficácia com a idade.

Creio que o caminho terá de passar por autonomia, supervisão, diálogo e muita atenção aos sinais que crianças e adolescentes nos dão sobre o que se passa com elas.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

PÊSSEGOS COM BICHO

 Para fugir à agenda pesada que nos carrega os dias.

Há pouco, no final do almoço comemos uns pêssegos criados no Monte com o ar do Alentejo.

Eram pequenos, alguns tinham um “furinho” que indiciava bicho ou estavam tocados. Mas o sabor da parte sã era notável de bom, mesmo de fruta saborosa e perfumada.

É verdade que não os “curamos” com química, apenas uns borrifos de vinagre. Ainda me lembro do nosso querido Mestre Zé Marrafa insistir em “lavar” a fruta com qualquer coisa. Nunca nos convenceu.

Recordei-me de uma história de há alguns anos e que já aqui contei. Num daqueles encontros na vila com petiscos, lérias e cante, um dos companheiros afirmou que só comia fruta que tinha bicho, "é a que presta".

Perante a nossa estranheza explicou, "essa fruta que se vê aí grande e a brilhar e sem bicho não presta, está carregada de “cobertura”. Então nem o bicho lhe pega e vou eu comê-la? Isso é que era bom, se a fruta não é boa para o bicho, é boa para mim?".

Sendo certo que os olhos também comem, o embrulho nem sempre corresponde ao conteúdo.

Eu também prefiro a fruta lá do Monte, mesmo que tenha umas “imperfeições”, falta de calibre, não pareça que foi “engraxada” ou mesmo com um “bichinho” de um dos lados.

Os pêssegos são excelentes, para nós e para o bicho, certamente. Já me esquecia, os pássaros também acham.

domingo, 14 de setembro de 2025

E O FUTURO?

 Os resultados das colocações na 2.ª fase de colocação no ensino superior vieram acentuar o abaixamento no número de candidatos que, tal como na 1.ª fase, se acentuou no ensino politécnico e nas instituições do interior, o que, naturalmente, terá impacto nas assimetrias regionais.

No total entraram 48.322 estudantes, um abaixamento de 16,5% face ao ano passado e o número mais baio dos últimos dez anos.

Tal como disse após a 1.ª fase, não me parece que a razão para o abaixamento deste ano assente de forma significativa no ajustamento do processo de conclusão e exames do secundário assim como as oscilações demográficas também não o explicarão.

Para além de um eventual cenário de desencanto ou ausência em muitos jovens de uma imagem criadora de futuro associada a qualificação de nível superior, creio que os custos de frequência do ensino superior entre propinas, materiais, vida diária e necessidades de deslocação e alojamento difíceis de suportar para muitos jovens e famílias e um dispositivo de bolsas insuficiente um peso significativo neste abaixamento de candidaturas. É também conhecido que o Ministério de Educação já anunciou o descongelamento de propinas nas licenciaturas a partir de 26/27.

Ainda há pouco aqui referi os dados seguintes, mas a realidade não muda e é preciso insistir.

Na verdade, os custos de deslocação e alojamento estarão foram do alcance de muitas famílias. No que se refere ao alojamento, de acordo com dados do Observatório de Alojamento Estudantil, o custo médio nacional de um quarto é de 415 euros e no último mês (Julho)  estariam disponíveis perto de seis mil quartos, mais de metade eram na região de Lisboa, onde haverá cerca de 50 mil estudantes deslocados. Ainda segundo o Observatório um quarto em Lisboa custa, em média, 500 euros por mês, mas pode chegar a 714 euros, o mais elevado do país. No Porto, o custo médio é de 400 euros, em Faro é de 380 euros, no Funchal é 465 euros e em Ponta Delgada, 400 euros. O Governo e algumas instituições de ensino superior têm anunciado a criação de mais camas para estudantes do ensino superior, mas o cenário é muito complicado e dificulta o acesso e frequência do ensino superior.

Aliás, para além deste menor número de alunos a candidatar-se ao superior também se verifica um aumento do abandono de estudantes no final do primeiro ano de frequência.

De acordo com o divulgado no portal Inforcursos  pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, em 23/24, nos cursos técnicos superiores profissionais, CTeSP, 28.1% dos alunos não estavam a frequentar o ensino um ano depois de iniciarem o curso e nas licenciaturas a taxa de abandono é de 11,2%, também superior aos anos anteriores.

A estes indicadores não serão certamente alheios os custos da frequência do ensino superior ou o “desencanto” com a escolha.

Como tantas vezes tenho afirmado, a qualificação é um bem de primeira necessidade e um forte contributo para projectos de vida bem-sucedidos pelo que o elevado abandono é uma questão crítica como crítica será a não candidatura de muitos jovens.

Sabe.se também que se tem verificado um aumento do número de candidatos a bolsa e é também reconhecido que em muitas famílias se tem verificado uma perda de rendimento.

No entanto, apesar destas dimensões poderem constituir alguma justificação a verdade em termos estruturais é estudar no superior é muito caro em Portugal e nem a recente alteração do regulamento de atribuição de bolsas minimizou esta situação.

Volto a um dado já aqui citado. De acordo com o Relatório do CNE, "Estado da Educação 2019", a percentagem de alunos que em Portugal acede a bolsas de estudo para o 1º ciclo do superior está no segundo escalão mais baixo da análise, entre 10 e 24,9%. Para comparação, Irlanda, Países Baixos estão no intervalo entre 25% e 49,9% e a Suécia no superior a 75%. Países como Espanha, França, Reino Unido e muitos outros têm percentagens de alunos com apoio superiores a nós e, sem estranheza, também maior nível de qualificação.

Estudos comparativos internacionais, “Social and Economic Conditions of Student Life in Europe”, por exemplo, também mostram que as famílias portuguesas são das que suportam uma fatia maior dos custos de frequência do superior sendo que ainda se verifica uma forte associação entre a frequência do ensino superior e nível de escolarização e estatuto económico das famílias

Importa ainda referir que em parte significativa de países europeus as propinas não existem ou são muito baixas

Apesar de um abaixamento do valor as propinas no ensino público, as dificuldades sentidas por muitos estudantes do ensino superior e respectivas famílias, quer no sistema público, quer no sistema privado com valores bem mais altos de propinas, são frequentemente consideradas, do meu ponto de vista, de forma ligeira ou mesmo desvalorizadas. Tal entendimento parece assentar na ideia de que a formação de nível superior é um luxo, um bem supérfluo pelo que ... quem não tem dinheiro não tem vícios.

Não é particularmente animador o que a actual Secretária de Estado do Ensino Superior, Cláudia Sarrico, tenha referido em 2022 que, “as propinas de licenciatura são baixíssimas — muito menos do que se paga pelo infantário dos miúdos”, e que o “ensino superior gratuito, ou quase, tem um efeito regressivo”.

A questão é que a educação e qualificação são a melhor forma de promover desenvolvimento e cidadania de qualidade. As políticas públicas deverão ter como objectivo enquadrar e sustentar os processos de educação e qualificação dos cidadãos, de todos os cidadãos.

sábado, 13 de setembro de 2025

NOTÍCIAS DO M.E.

 Neste arranque de ano lectivo duas referências de natureza diferente, uma positiva outra negativa.

Comecemos pela positiva. Foi publicado o Decreto-Lei n.º 105/2025 de 12 de Setembro que, no âmbito das mudanças no MECI, cria  Instituto de Educação, Qualidade e Avaliação, I. P. (EduQA, I. P.). É referido no decreto que no âmbito das suas competências, deverá “assegurar a implementação das políticas educativas no domínio da componente pedagógica e didática da educação dos 0 aos 6 anos”.

Muitas vezes aqui referi que a tutela da intervenção dos 0 aos três que estava atribuída à Segurança Social deveria estar no Ministério da Educação pois o acolhimento das crianças deve estar abrangido desde o início por um forte princípio de intencionalidade educativa.  É certo que existiam “Orientações Pedagógicas para Creche”, documento elaborado por um grupo de trabalho constituído por iniciativa do ME e do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, mas a tuela continuava no neste último.

A segunda referência, a negativa, remete para os exercícios de “wishful thinking” do Ministro da Educação que continua a falar de “normalidade”, arranque de ano “tranquilo” pois “não faltam professores”, em 98%/99% das escolas os professores estão todos colocados, os alunos vão ter aulas a todas asdisciplinas".

A experiência diz-nos que não adianta torturar a realidade até que confesse o que pretendemos ela mostre.

Nada de novo.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

SOBREVIVENTES

 Segundo dados do Relatório de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens (CASA) 2024 divulgados pelo Governo, em 2024 o número de crianças e jovens em risco retiradas à família baixou para 6349, menos 97 face a 2023. Na resposta a estas situações o acolhimento familiar aumentou 37%, 263 para 361, baixou o número de crianças e jovens colocadas em casas de acolhimento,  5983 em 2023 para 5678 em 2024, e também aumentou a colocação em apartamento de autonomização, de 200 em 2023 para 310 em 2024..

É sempre com um sobressalto de inquietação que nos confrontamos com este universo, as famílias que o não são, maltratam os seus filhos e, ou, negligenciam o seu cuidado e de múltiplas forma, por vezes com grande violência.

Registe-se o recente caso de uma criança com 12 anos encontrada na estrada em fuga, descalça, de uma família que o maltrata e cujos efeitos o seu corpo mostrava.

Na sua grande maioria, as famílias maltratantes e negligentes têm no seu seio crianças indesejadas, não amadas, por vezes sem condições económicas e de saúde, e com um sistema de valores desajustado, no mínimo. Neste quadro, as crianças serão uma espécie de fardo em quem se cobra, são fracas, o desconforto e a miséria, física ou psicológica. No entanto, também se pode entender que a necessária medida de protecção das crianças, retirá-las, acaba por ter o efeito perverso de “premiar” as famílias, vêem-se livres daquela criança que não desejaram, de quem não gostam e que é um peso. É certo, insisto, que a retirada se destina a proteger a crianças mas, perversamente, “premeia” e alivia a família, ou seja, o crime compensa, muitas vezes não tem “castigo”

Esta situação ocorre também, por vezes, em casos de violência doméstica, em que se retira a vítima e se mantém o agressor no aconchego do lar.

Caricaturando um pouco em algo de muito sério, gostava de tentar descobrir uma maneira de, em vez de retirar a criança da família e institucionalizá-la, fazer ao contrário, retirar a família à criança e institucionalizar a família, assim como, nos casos de violência doméstica conseguir, por princípio, manter a vítima em casa e retirar o agressor.

Pensando nas crianças e jovens envolvidos em situações desta natureza, não sabemos, evidentemente, o que vai ser o seu futuro embora queira acreditar que na sua maioria vão sobreviver. O mundo está cheio de histórias de crianças sobreviventes, felizmente porque sobrevivem, infelizmente porque trilham uma estrada cheia de obstáculos. Às vezes, tragicamente, inultrapassáveis.

Vão sobrevivendo à pobreza e a famílias que as não merece e delas não cuida, ao insucesso e abandono escolar, a uma institucionalização muitas vezes sem projecto de vida. Importa não esquecer que maus tratos a crianças não acontecem apenas nas famílias mais pobres.

Sobrevivem a maus tratos e negligência que umas vezes são conhecidos mas não minimizados e outras mais são desconhecidos pelos serviços e pela estatística, constituindo aquela percentagem que a sondagem nunca mostra como diz Sam The Kid.

Pois a verdade é que a grande maioria destes putos vai dar a volta por cima, vai construir um futuro que, de alguma maneira, mereça ser vivido. Muitas histórias que conhecemos são de tal forma dramáticas que causam a maior das perplexidades verificar como os miúdos lhes sobreviveram, com base nos seus mecanismos de protecção internos e, certamente para alguns, com um anjo da guarda por perto.

Se estivermos atentos, todos os dias nos cruzamos com um sobrevivente, anónimo, desde sempre, para sempre.