domingo, 10 de dezembro de 2023

"NÃO CONSIGO FAZER NADA DELE". DA EDUCAÇÃO FAMILIAR

 No Público encontra-se uma peça que aborda um problema que parece estar em crescimento, a agressão ou maus tratos de filhos jovens aos pais. Parece algo de improvável, duro de conhecer, mas acontece.

Algumas notas em torno da educação familiar, o contexto em que podem nascer estes comportamentos.

Nos estilos de vida actuais, as famílias expressam uma enorme dificuldade em compatibilizar o que ainda entendem ser o seu papel educativo com a pressa e o pouco tempo que assumem ter para o realizar. Tenho conhecido dezenas de pais que se sentem culpados e fragilizados por entenderem que não têm para os filhos a disponibilidade de tempo e atitude que julgam necessária. Esta culpa e fragilidade é, com frequência, a base inconsciente que impede alguns pais de serem consistentes e firmes na definição de regras e limites imprescindíveis às crianças, pois “temem estragar” o pouco tempo que têm com elas devido a um eventual conflito.

Também sei que apesar da proliferação de materiais que parecem querer assumir este papel não existem, nem irão existir e ainda bem “manuais de instrução” para a educação familiar.

Também sabemos que as famílias vão assumindo novas configurações que colocam novos desafios à parentalidade.

E sabemos que existem muitas famílias que, transversalmente aos patamares sociais que sentem enormes dificuldades e inquietações no dia-a-dia com os filhos.

A estas famílias, a estes pais e a estas crianças e adolescentes, também nós que profissionalmente ou de outra qualquer forma nos relacionamos com este universo, precisamos de estar mais atentos, de ler, de perceber comportamentos, discursos ou omissões que sejam sinais de mal-estar para crianças e pais.

Acontece ainda que os contextos familiares são sempre específicos. Recordo a ideia de Tolstoi em “Anna Karenina”, “as famílias felizes parecem-se todas. As famílias infelizes, cada uma é-o à sua maneira”. Mais difícil, mas ainda mais importante se torna estarmos atentos.

Demasiadas vezes intervimos para responder, nem sempre conseguimos responder bem e intervimos para prevenir menos que o necessário. Não pudemos ou não soubemos perceber o que estava a acontecer ou para acontecer.

Considerando todo este universo e não acreditando na educação perfeita da criança perfeita acredito num princípio fundador da educação familiar, a promoção da autonomia e da auto-regulação desde bebé, sim desde bebé, até …  sempre.

Neste sentido e de há muito, sempre que penso ou falo de educação me lembro de um texto de Almada Negreiros em que se afirma "... queria que me ajudassem para que fosse eu o dono de mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si". Este enunciado ilustra, do meu ponto de vista, a essência da educação, seja familiar ou escolar, em qualquer idade como, aliás, aqui reafirmei recentemente.

Um processo educativo terá com eixo estruturante a construção de gente que sabe tomar conta de si própria da forma adequada à idade e à função, actividade ou contexto em que se encontra. Este entendimento traduz-se num esforço contínuo de promover a autonomia das crianças e jovens para que "saibam tomar conta de si próprios", no fundo, a velha ideia de "ensinar a pescar, em vez de dar o peixe".

Parece-me fundamental que adoptemos comportamentos que favoreçam esta autonomia dos miúdos e dos jovens. No entanto, é minha convicção que por razões que se prendem com os estilos de vida, com os valores culturais e sociais actuais, com as alterações das sociedades, questões de segurança, por exemplo, estamos a educar os nossos miúdos de uma forma que não me parece, em termos genéricos, promotora da sua autonomia e auto-regulação.

Tenho também a convicção de que os pais são, de uma forma geral, intuitivamente competentes. Mais "asneira", menos "asneira", mais uma "festinha", menos um "ralhete" e o caminho cumpre-se sem grandes problemas. Um discurso social excessivo em torno da "psicologização" ou induzindo a ideia de que só indo a uma "escola de pais" e lendo vários "manuais de instruções" poderemos ser bons pais, pode ser mais fonte de inquietação que de ajuda.

Ainda relativamente ao comportamento de crianças e adolescentes, costumo dizer, independentemente das idades, é preciso tomar conta deles porque … eles não sabem (não querem) tomar conta de si. Isto levanta a questão central de, como na educação escolar e na educação familiar estamos a lidar com uma das “irredutíveis necessidades das crianças”, o estabelecimento de regras e limites. De facto, é minha convicção, estamos a lidar mal com o não, o que promove miúdos e adolescentes a funcionar com uma latitude excessiva face a regras e limites. No seu funcionamento diário temos assim muitas crianças e adolescentes que, conhecendo, naturalmente as regras e os limites do funcionamento, por exemplo em sala de aula, não são regulam, por si, o seu comportamento obrigando a que, permanentemente, os adultos, professores ou pais, tenham de proceder a essa regulação.

Temos, assim, que reajustar a nossa acção, com uma particular atenção à definição das regras e dos limites que, embora de forma flexível, são imprescindíveis ao bem-estar de crianças e jovens.

É frequente ouvir dizer que as crianças hoje em dia têm muitos mimos que as “estragam”, dito de outra maneira, têm “afecto” a mais ou ainda “gosta-se de mais” das crianças. Estes discursos, que alguns profissionais destas áreas também subscrevem, merecem-me alguma reserva pois assentam, do meu ponto de vista, num equívoco.

De uma forma geral, as crianças não terão afecto, mimos, a mais, poderão, isso sim, ser objecto de “mau afecto” ou se quiserem, de "maus mimos". É essa falta de qualidade que lhes poderá ser prejudicial. Não é mau por ser muito, é mau porque asfixia, é tóxico, não deixa que os miúdos cresçam, distorce a percepção da criança de si própria e do seu funcionamento, não permite o estabelecimento de uma relação saudável, protectora e promotora da autonomia das crianças, uma condição fundamental para o seu desenvolvimento positivo.

Insisto, as crianças não têm elogios ou mimos a mais. Na verdade, oque se passa mais frequentemente é que recebem “nãos” de menos. Na verdade, muitos adultos, pais, sendo quase sempre capazes de dar os mimos, mostram-se muitas vezes incapazes de dar os “nãos”, de estabelecer os limites e as regras que, como sempre digo, são tão necessárias às crianças como respirar e alimentar-se. Estes “nãos” e para utilizar a mesma terminologia, são outros mimos imprescindíveis na educação de crianças e adolescentes nos seus diferentes contextos de vida.

As regras e os limites são bens de primeira necessidade. Tal como com os afectos, nenhuma dieta educativa pode prescindir de regras e limites.

Ficando sem “nãos” muitas crianças, a coberto da ideia dos “mimos a mais”, transformam-se em pequenos ditadores que infernizam a vida de toda a gente, a começar pela sua própria vida. Não crescem saudavelmente.

Neste cenário complexo da educação familiar, continuo a afirmar a necessidade de que os pais falem entre si sobre as suas experiências, sem receio de que os julguem maus pais. Importa inda que na relação com os técnicos ligados à educação as conversas não incidam quase que exclusivamente sobre "se está bem ou mal na escola", mas que se abordem as questões educativas também no contexto familiar de forma aberta e serena. Os "manuais de instruções" não são a solução, são, alguns, apenas mais uma ajuda.

Pais atentos, pais confiantes, são pais que educam sem especiais problemas. Paradoxalmente, alguns "manuais" e alguns discursos "científicos" podem aumentar a insegurança e a ansiedade de alguns pais.

Desculpem o texto tão longo.

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