sábado, 30 de novembro de 2024

SÓ APRENDE QUEM SE RI

 São preocupantes os dados sobre as circunstâncias sociais e económicas em que vivem muitas, demasiadas, crianças em Portugal. Apesar de frequentemente aqui abordar estas questões, é preciso insistir.

Num relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e da Ciência, “Assimetrias entre Escolas: Ensinos Básico e Secundário, 2022/23”, agora divulgado, evidenciam-se assimetrias muito significativas entre escolas no que se refere ao contexto de vida dos alunos. A situação é mais grave no 1.º ciclo, mas verifica-se em todos os ciclos, bem como no secundário e no ensino profissional.

Sem surpresa os maiores contrastes verificam-se nas regiões de Lisboa e Porto. Relativamente a Lisboa, considerando 82 escolas de 1.º ciclo analisadas, em metade existem mais de 50% de alunos que beneficiam da Acção Social Escolar e em pelo menos cinco o número é superior a 80%.

Considerando a escolaridade das mães, variável utilizada em estudos desta natureza, 85% das mães de alunos com ASE não têm o ensino secundário face a 3% de mães de alunos sem apoios sociais

No Porto a situação é da mesma natureza, a percentagem de alunos do 1.º ciclo com apoio da ASE varia entre 77% e 7% e das 46 escolas analisadas, em 37% metade ou mais dos alunos beneficia da ASE sendo que seis destas escolas têm taxas superiores a 70%.

É na verdade preocupante, precisamos de insistir e repito o que há pouco aqui escrevi.

Há pouco tempo diversas organizações da sociedade civil divulgaram e chamaram a atenção para o aumento do risco de pobreza entre as crianças portuguesas requerendo a atenção das políticas públicas sectoriais. De acordo com os dados mais recentes do INE referentes a 2023 verifica-se "um aumento da taxa de pobreza infantil com 347 mil crianças em risco de pobreza monetária". "São mais 44 mil do que no ano anterior", de referem os subscritores desta iniciativa.

É ainda de registar que a "taxa de risco de pobreza infantil em 2023 foi de 20,7%", correspondendo a um regresso aos valores de 2017, o que coloca as crianças como o "grupo etário que regista a maior taxa de risco de pobreza e também aquele em que se observa uma evolução mais desfavorável deste indicador",

Parece, assim, que estamos longe de conseguir minimizar os riscos de pobreza e exclusão importa insistir e apelar a que estas matérias constituam preocupações sérias das políticas públicas em diversas áreas.

Sabemos que a educação tem um papel crítico neste processo. Retomando notas que aqui recentemente deixei, recupero o relatório, “Portugal, Balanço Social 2023”, realizado pela Nova SBE Economics for Policy. De acordo com o trabalho, 82% das crianças pobres com três anos ou menos não frequentam pelo menos 30h de creche. Também no intervalo entre 4 e 7 anos são também as crianças mais pobres que não frequentam educação pré-escolar.

Apesar da gratuitidade da frequência da creche em 2022, a insuficiência de vagas dificulta o acesso das famílias de menor rendimento apesar de alguns efeitos decorrentes do Programa Creche Feliz.

Está bem estudada a relação entre a situação económica, laboral e nível de literacia familiar no trajecto pessoal. E também sabemos que situações de "guetização da pobreza" são um obstáculo à sua minimização.

Também sabemos que a pobreza tem claramente uma dimensão estrutural e intergeracional, as crianças de famílias pobres demorarão até cinco gerações a aceder a rendimentos médios, um indicador acima da média europeia.

A escola é certamente uma ferramenta poderosa de promoção de mobilidade social, mas, por si só, dificilmente funciona como elevador social. Muito menos o fará em circunstâncias em que a maioria vive em piores condições.

O impacto das circunstâncias de vida no bem-estar das crianças e em aspectos mais particulares como o rendimento escolar ou o comportamento é por demais conhecido e essas circunstâncias constituem, aliás, um dos mais potentes preditores de insucesso e abandono quando são particularmente negativas, como é o caso de carências significativas ao nível das necessidades básicas.

Algumas vezes, quando penso nestas matérias não resisto a recuperar uma história que conto muitas vezes, coisas de velho como sabem, e que foi umas das maiores e mais bonitas lições sobre educação que já recebi. E mais uma vez.

Aconteceu há já uns anos em Inhambane, Moçambique, também conhecida por Terra da Boa Gente. Num início de manhã, eu o Velho Carlos Bata, um homem velho e sem cursos, meu anjo da guarda durante as semanas que lá estive em trabalho, íamos a passar por uma escola para gaiatos pequenos e o Velho Bata, parou a olhar. Não estranhei, era um homem que não conhecia o significado de pressa.

Um tempinho depois disse-me que se tivesse “poderes de mandar” traria um camião de batata-doce para aquela escola. Perante a minha estranheza, explicou que aqueles miúdos teriam de comer até se rir, “só aprende quem se ri”, rematou o Velho Bata.

Pois é Velho, miúdos com fome e que passam mal não aprendem e vão continuar pobres. E infelizes, não se riem.

Ontem, hoje e amanhã. Não podemos falhar.

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