domingo, 24 de março de 2024

A LONGA MARCHA DA DESMATERIALIZAÇÃO

 Segundo o Público está a decorrer uma petição já assinada por mais de duas mil pessoas com o objectivo de pedir o fim do projecto-piloto do uso de manuais digitais nas escolas. A petição será entregue em Abril na Assembleia da República.

Em 23/24 está em curso a 4ª fase do Projecto-Piloto Manuais Digitais envolvendo 160 escolas e 23.159 alunos do 3.º ao 12.º ano de todo o país.

O recurso aos manuais em suporte digital é mais um passo na longa marcha para a desmaterialização ou transição digital como também lhe chamam. É verdade que temos andado enredados numa trapalhada sobre a devolução ou não devolução dos manuais do 3º e 4º ano, na aceitação ou na aceitação dos manuais usados e escritos pelos miúdos, mas isto são minudências no que não atrapalham o deslumbrado chamamento sentido pelo ME.

Continuo cada vez mais convencido da necessidade de reflexão sobre esta questão. Será certamente interessante o acesso a um Relatório de 2023 da Unesco, “Technology in education: A tool on whose terms?”. Também se registam iniciativas e análises em diferentes sistemas educativos que pretendem repensar a utilização dos recursos digitais. Mais perto, volto a sugerir estimulante texto de Francisco Laranjo, “Regresso ao futuro da escola: dos ecrãs aos livros” divulgado no Público há algum tempo e que aqui reflecti retomando as notas da altura.

Apesar do seu enorme potencial as ferramentas digitais não são a poção mágica para o ensino e aprendizagem. Os computadores ou tablets na sala de aula, os smart boards, não promovem sucesso só pela sua existência. A forma como são utilizados por professores e alunos é que pode potenciar a qualidade e os resultados desse trabalho. Aliás, o mesmo se pode dizer de qualquer outro recurso ou actividade no âmbito dos processos de aprendizagem.

É certo que múltiplos estudos e experiências valorizam estes recursos nos processos de ensino e aprendizagem pelo que é importante garantir o acesso pela generalidade dos alunos, mas, não podem passar a ser o tudo no trabalho escolar.

Neste contexto e como já tenho afirmado, considerando o que se sabe em matéria de desenvolvimento das crianças e adolescentes, dos processos de ensino e aprendizagem e da sua complexa teia de variáveis, das experiências e dos estudos neste universo, mesmo quando aparentemente contraditórios:

1 – O contacto precoce com as tecnologias digitais é, por princípio, uma experiência positiva para os alunos, para todos os alunos, se considerarmos o mundo em que vivemos e no qual eles se estão a preparar para viver. Nós adultos ainda estamos a pagar um preço elevado pela iliteracia, os nossos miúdos não devem correr o risco da iliteracia informática. Os tempos da pandemia mostraram isso mesmo.

2 – O computador/tablet, kits robóticos, smart boards, etc., na sala de aula são mais uma ferramenta, não são A ferramenta, não substituem a escrita manual e a leitura em papel, não substituem a aprendizagem do cálculo, não substituem coisa nenhuma, são “apenas” mais um meio, muito potente sem dúvida, ao dispor de alunos e professores para ensinar e aprender e agilizar o acesso a informação e conhecimento.

3 - O que dá qualidade e eficácia aos materiais e instrumentos que se utilizam na sala de aula não é a tanto a sua natureza, mas, sobretudo, a sua utilização, ou seja, incontornavelmente, o trabalho dos professores é uma variável determinante. Posso ter um computador para fazer todos os dias a mesma tarefa, da mesma maneira, sobre o mesmo tema, etc. Rapidamente se atinge a desmotivação e ineficácia, é a utilização adequada que potencia o efeito as capacidades dos materiais e dispositivos.

4 - Para alguns alunos com necessidades especiais o computador pode ser mesmo a sua mais eficiente ferramenta e apoio para acesso ao currículo.

5 – Para além de garantir o acesso dos miúdos aos materiais é obviamente imprescindível promover o acesso a formação e apoio ajustados aos professores sem os quais se compromete a qualidade do trabalho a desenvolver bem como, evidentemente, assegurar as condições exigidas para que o material possa ser rentabilizado. São por demais conhecidas as dificuldades sentidas nas escolas com os recursos e acessibilidade.

6 – Finalmente, como em todo o trabalho educativo, são essenciais os dispositivos de regulação e avaliação do trabalho de alunos, professores e escolas. Estes dispositivos devem incluir avaliação externa.

Como referi acima, não existem poções mágicas em educação por mais desejável que possa parecer a sua existência. Não deixemos que o fascínio deslumbrado pelo que se julga ser as "salas de aula do futuro" faça esquecer os problemas das salas de aula do presente.

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