sexta-feira, 16 de abril de 2021

DO BATER NAS CRIANÇAS. DE NOVO

 Na secção Ímpar do Público está uma entrevista ao The Washington Post da psicóloga Liz Gershoff que merece leitura e reflexão sobre um tema que muitas vezes abordo e que continua a merecer atenção, os castigos físicos como “ferramenta” de educação familiar. Aliás, sempre que intervenho com grupos de pais ou escrevo sobre isto surgem sempre comentários que mostram como é necessário insistir.

Na verdade, não é, de facto uma matéria fácil, mas os tempos que atravessamos com crianças e muitos pais estiveram muito tempo em casa todo o tempo em casa potenciaram risco de alterações nos comportamentos e no bem-estar e que talvez acrescentem oportunidade e importância a este texto.

(…)

Para mim, é apenas mais uma prova de que a forma como somos pais dos nossos filhos realmente os afecta. E se os pais estão na dúvida sobre o castigo físico, isto é apenas mais uma prova de que não está a fazer nenhum bem às crianças, e na realidade parece estar a piorar o seu comportamento. E isso, por sua vez, torna o nosso trabalho mais difícil como pais — essa é a ironia. As pessoas estão a tentar melhorar o comportamento dos seus filhos quando estão a usar o castigo físico, mas na realidade estão a piorá-lo.

(…)

Como disse, a questão do recurso aos castigos físicos ou às agressões verbais e humilhação como forma de educar é recorrente e está sempre presente na agenda de qualquer encontro ou conversa entre e com pais sendo, aliás, frequentes os discursos de legitimação destas “estratégias educativas”.

Se estivermos atentos reparamos que quando na imprensa generalista se abordam questões relativas a comportamentos menos positivos de crianças ou adolescentes são inúmeros os comentários e discursos sobre a alegada falência das famílias na definição de regras e limites nos comportamentos de crianças e adolescentes. Muitos destes discursos e comentários são normalmente acompanhados de referências ao facto de não se recorrer a umas “palmadas”, à “pedagogia do chinelo”, “uma boa palmada dada a horas” ou outras variações no mesmo tom, com uns “tabefes” a coisa resolvia-se.

As alusões às dificuldades das famílias ou da escola na regulação dos comportamentos de crianças e adolescentes podem ser justificáveis, mas a ideia de lidar com estas dificuldades através do bater e dos castigos severos parece-me na verdade preocupante para além da sua potencial ineficácia como o trabalho de Liz Gershoff mostra. Ninguém pode garantir que foram ou que são as “tareias” que constroem pessoas de bem.

É de recordar que em 2018 a Academia Americana de Pediatria produziu novas orientações sobre a parentalidade afirmando veementemente que bater nas crianças, insultá-las, humilhá-las ou envergonhá-las são comportamentos a banir. Os efeitos positivos são nulos e os negativos estão bem demonstrados. Esta posição é, aliás, recuperada na peça do Público

Uma outra referência  a um trabalho desenvolvido pela Universidade de Pittsburgh nos EUA divulgado na Child Development em 2017 que considerando diferentes variáveis seguiu 1482 alunos durante nove anos e evidenciou uma relação sólida entre o que foi considerado “parentalidade severa” (recorrer com regularidade ao gritar, bater ou outro tipo de comportamento coercivo, além de ameaças físicas e verbais como forma de punição) e baixo rendimento escolar e problemas de comportamento nas crianças envolvidas nesse “modelo” de educação familiar. O mais recente trabalho de Liz Gershoff é bastante elucidativo sobre a mesma questão.

Sabemos e não esquecemos que os “castigos corporais” podem ir da mais ligeira palmada à mais pesada tareia e também sabemos que bater é um tipo de comportamento inscrito na prática de muitas famílias na sua relação educativa com os filhos.

Na verdade, os castigos corporais ainda são uma "ferramenta" educativa em muitas famílias e, é conhecido, também em instituições que acolhem crianças sendo que mesmo que no âmbito da justiça a questão é complexa como algumas decisões judiciais ilustram.

A ver se nos entendemos, bater ou castigar severamente as crianças não é uma actividade educativa, gritar ou agredir verbalmente de forma regular não é uma actividade educativa. O comportamento gera comportamento e adultos que não se auto-regulam dificilmente ajudam crianças a ser auto-reguladas. Aliás, também se sabe que crianças que foram batidas tornam-se frequentemente pais que batem.

No entanto e dito tudo isto, também entendo que pontuais comportamentos inadequados ou incompetentes não significam necessariamente que estejamos perante pessoas, pais, más ou incompetentes.

Todos nós, alguma vez, agimos de uma forma menos ajustada ou adequada com os nossos filhos e isso não nos transforma em pessoas más, significa que somos apenas pessoas, que não somos perfeitos como perfeitos não são os nossos filhos.

Assim sendo, creio que devemos ser cautelosos, quer na defesa da "estalada educadora" ou “palmada educativa”, quer na diabolização definitiva de pais que numa situação eventualmente esporádica e de tensão assumem um comportamento de que podem ser os primeiros a arrepender-se.

Esta nota, não branqueadora ou desculpabilizante de nada, pode não ser particularmente simpática, mas estou cansado, tanto de discursos de legitimação do efeito "educativo" da violência física ou verbal dirigida a crianças, como de discursos demagógicos e, por vezes hipócritas, que clamam pelo "crucificação" cega de uma pessoa, o outro que bate, mas são produzidos por gente desatenta ou mesmo autora ou apoiante doutros comportamentos dirigidos a miúdos tão indignos quanto a "estalada" ainda que menos visíveis.

Finalizando, embora saiba que a legislação mesmo quando é imperativa é entendida como indicativa e, portanto, desrespeitada como temos tantos exemplos em várias matérias, é bom não esquecer que estamos a falar de direitos, não de opiniões.

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