sábado, 7 de junho de 2025

BRINCAR É UMA ACTIVIDADE MUITO SÉRIA, DESCULPEM A INSISTÊNCIA

 Peço desculpa de voltar à questão do brincar, mas é um tema sério e de relevo no desenvolvimento dos mais novos.

Há dias foi divulgado um estudo realizado pelo IAC em 2024 com indicadores interessantes e a merecer reflexão. Cerca de 52% das crianças brincam menos de uma hora por dia e se procurar quem brinca de duas a três horas diárias são apenas 9%.

Acresce que os pais participam pouco nas brincadeiras das e com as crianças e 40,4% aponta o cansaço “devido à carga de trabalho!”, valor que tem vindo a crescer desde 2018.

O estudo, “Portugal a Brincar” envolveu mais de 1100 famílias e cuidadores de crianças com idades até aos dez anos. 36% dos pais inquiridos desejava que os filhos brincassem pelo menos cinco horas por dia. Metade das famílias entende o tempo livre como factor necessário para permitir o brincar.

No entanto, 47% dos inquiridos reconhecem o brincar como actividade para a imaginação e criatividade e 21,5% como forma de promoção do desenvolvimento emocional.

Quem por aqui passa dá conta da frequência com que aqui abordo a questão do brincar, a actividade mais séria que as crianças realizam e na qual põem tudo o que são e o que virão a ser.

A última vez foi a propósito da entrevista ao Público Jenny Gibsond, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Cambridge e também centrada na importância do brincar no desenvolvimento e na aprendizagem das crianças sublinhando o impacto em crianças problemáticas específicas também no domínio do desenvolvimento.

Não é novo este entendimento nem os resultados do estudo do IAC que, tal como múltiplos outros trabalhos, apontam a necessidade de reflectirmos sobre os estilos de vida e a organização em contextos educativos, escolares e familiares.

 Assim e mais uma vez retomo notas que por aqui tenho escrito.

Durante os últimos anos, provavelmente associada às mudanças nos estilos de vida e quadro de valores, foi-se instalando a ideia de que o brincar é supérfluo, é perda de tempo, o foco deve ser em trabalhar, em rendimento e resultados, em nome da competitividade e da produtividade, condição para a realização e felicidade. Felizmente, nos últimos tempos começam a ouvir-se muitas vozes contrariando este entendimento como agora se regista ma entrevista de Jenny Gibsond. Os que por aqui vão passando reconhecerão a frequência com que aqui refiro esta questão e esta não será certamente a última.

Progressivamente foi-se retirando aos miúdos o tempo e o espaço que muitos de nós na sua idade tínhamos e empregam-nos horas sem fim nas fábricas de pessoas, escolas, chamam-lhes. Aí os miúdos trabalham a sério, a tempo inteiro, dizem, pois só assim serão grandes a sério, dizem também.

Às vezes, alguns miúdos ainda brincam de forma escondida, é que brincar passou a uma actividade quase clandestina que só pais ou professores “românticos”, “facilitistas”, “eduqueses” ou “incompetentes” acham importante.

Muitos outros miúdos vão para umas coisas a que chamam “tempos livres” e que, com frequência, de livres têm pouco, onde, frequentemente, se confunde brincar com entreter e, outras vezes, acontece a continuação do trabalho que se faz na fábrica de pessoas, a escola.

Numa história que já aqui contei ouvi uma mãe que se mostrava muito aborrecida com o Atelier de Tempos Livres em que o filho, gaiato de uns 10 anos, passa boa parte das férias, porque os técnicos responsáveis "dão poucas actividades às crianças e depois elas põem-se a brincar umas com as outras".

Também são encaixados em dezenas de actividades fantásticas, com nomes fantásticos, que promovem competências fantásticas e fazem um bem fantástico a tudo e mais alguma coisa.

É inquietante perceber alguma visão que, de mansinho, se foi instalando também em muitos pais.

O brincar da infância vai-se encurtando, algum dia os miúdos vão nascer crescidos para já não precisarem de brincar. Importa ainda lembrar que também existem crianças, muitas, em que a infância é encurtada, diria roubada, porque são mão-de-obra barata e coisificada.

Era bom escutar os miúdos. Se lhes perguntarem, (das diferentes formas de fazer perguntas e ouvir respostas), vão ficar a saber, como disse acima, que brincar é a actividade mais séria que realizam, em que põem tudo o que são, sendo ainda a base de tudo o que virão a ser e a saber.

Em 2018 a Academia Americana de Pediatria recomendou aos pediatras que na sua prática clínica prescrevam “tempo para brincar”, um bem de primeira necessidade para o bem-estar dos mais novos com impacto em diferentes dimensões.

Insistem que não se trata de uma ideia “frívola” e os actuais estilos de vida de muitas famílias, por diferentes razões, tornam ainda mais importante que se reafirme a importância de brincar.

No caso mais particular, mas também essencial do brincar na rua sabemos que as questões da segurança e, sobretudo dos estilos de vida e a mudança verificada nos valores e nos equipamentos, brinquedos e actividades dos miúdos, o brincar na rua começa a ser raro.

Embora consciente das questões como risco, segurança e estilos de vida das famílias, creio que seria possível alguma oportunidade de “devolver” aos miúdos o circular e brincar na rua, talvez com a supervisão de velhos que estão sozinhos, as comunidades e as famílias conseguissem alguns tempos e formas de ter as crianças por algum tempo fora das paredes de uma casa, escola, centro comercial, automóvel ou ecrã.

Como muitas vezes tenho escrito e afirmado, o eixo central da acção educativa, escolar ou familiar, é a autonomia, a capacidade e a competência para “tomar conta de si” como fala Almada Negreiros. A brincadeira, a rua, a abertura, o espaço, o risco (controlado obviamente, os desafios, os limites, as experiências, são ferramentas fortíssimas de desenvolvimento e promoção dessa autonomia.

Curiosamente, se olharmos às nossas condições climatéricas, Portugal é um dos países com valores mais baixos no tempo dedicado a actividades de ar livre, situação com implicações menos positivas na qualidade de vida, nas suas várias dimensões, de miúdos e crescidos.

Talvez, devagarinho e com os riscos controlados, valesse a pena trazer os miúdos para a rua, mesmo que por pouco tempo e não todos os dias.

É, pois, importante que todos os que lidam com crianças, em particular, os que têm “peso” em matéria de orientação, pediatras, professores, psicólogos, etc. assumam o brincar como uma das “guide lines” para a sua intervenção.

Os mais novos vão gostar e faz-lhes bem.

Desculpem a insistência e a extensão, mas brincar é mesmo uma coisa séria.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

A ESCOLHA ACERTADA

 Lê-se Público que não se verificará no 1.º e 2.º ciclo a utilização de manuais digitais. A decisão decorre da avaliação da experiência do projecto-piloto em curso desde 20/21 e também considerando as experiências de outros países. Para os restantes ciclos continua em análise a utilização dos manuais digitais.

Anda bem o Ministério ao assumir esta decisão. Repetindo-me, continuo cada vez mais convencido da necessidade de inflexão relativa à utilização precoce de manuais digitais. reflexão sobre esta questão. Um Relatório da Unesco divulgado em 2023, “Technology in education: A tool on whose terms?” é um bom contributo para sustentar esta decisão assim como o que vai conhecendo de iniciativas e análises em diferentes sistemas educativos que pretendem repensar a utilização dos recursos digitais casos da Noruega e Suécia.

Na verdade, parece em perda o inquietante “deslumbramento digital” e alguma evidência robusta sugere a maior prudência relativa à “transição digital” que, enquadrando de forma ajustada a inevitabilidade de incorporar estas ferramentas nos processos educativos, também volta a defender a importância de abordagens metodológicas ou didácticas “antigas”, “conservadoras”, tais como escrever à mão, desenhar, brincar na rua, ler em suporte papel, interagir presencialmente ou promover relações afectivas literalmente mais próximas, tudo ferramentas importantes de desenvolvimento e aprendizagem.

Apesar do seu enorme potencial as ferramentas digitais não são a poção mágica para o ensino e aprendizagem. Os computadores ou tablets na sala de aula, os smart boards, não promovem sucesso só pela sua existência. A forma como são utilizados por professores e alunos é que pode potenciar a qualidade e os resultados desse trabalho. Aliás, o mesmo se pode dizer de qualquer outro recurso ou actividade no âmbito dos processos de aprendizagem.

É certo que múltiplos estudos e experiências valorizam estes recursos nos processos de ensino e aprendizagem pelo que é importante garantir o acesso pela generalidade dos alunos, mas, não podem passar a ser o tudo no trabalho escolar.

Neste contexto e como já tenho afirmado, com base no que se sabe em matéria de desenvolvimento das crianças e adolescentes, dos processos de ensino e aprendizagem e da sua complexa teia de variáveis, das experiências e dos estudos neste universo, mesmo quando aparentemente contraditórios parece de considerar:

1 – O contacto precoce com as tecnologias digitais é, por princípio, uma experiência positiva para os alunos, para todos os alunos, se considerarmos o mundo em que vivemos e no qual eles se estão a preparar para viver. Nós adultos ainda estamos a pagar um preço elevado pela iliteracia, os nossos miúdos não devem correr o risco da iliteracia informática. Os tempos da pandemia mostraram isso mesmo.

2 – O computador/tablet, kits robóticos, smart boards, etc., na sala de aula são mais uma ferramenta, não são A ferramenta, não substituem a escrita manual e a leitura em papel, não substituem a aprendizagem do cálculo, não substituem coisa nenhuma, são “apenas” mais um meio, muito potente sem dúvida, ao dispor de alunos e professores para ensinar e aprender e agilizar o acesso a informação e conhecimento. Reafirmo a importância atribuída à leitura em papel e à escrita manual em termos de desenvolvimento e aprendizagem.

3 - O que dá qualidade e eficácia aos materiais e instrumentos que se utilizam na sala de aula não é a tanto a sua natureza, mas, sobretudo, a sua utilização, ou seja, incontornavelmente, o trabalho dos professores é uma variável determinante. Posso ter um computador para fazer todos os dias a mesma tarefa, da mesma maneira, sobre o mesmo tema, etc. Rapidamente se atinge a desmotivação e ineficácia, é a utilização adequada que potencia o efeito as capacidades dos materiais e dispositivos.

4 - Para alguns alunos com necessidades especiais o computador pode ser mesmo a sua mais eficiente ferramenta e apoio para acesso ao currículo.

5 – Para além de garantir o acesso dos miúdos aos materiais é obviamente imprescindível promover o acesso a formação e apoio ajustados aos professores sem os quais se compromete a qualidade do trabalho a desenvolver bem como, evidentemente, assegurar as condições exigidas para que o material possa ser rentabilizado. São por demais conhecidas as dificuldades sentidas nas escolas com os recursos e acessibilidade.

6 – Finalmente, como em todo o trabalho educativo, são essenciais os dispositivos de regulação e avaliação do trabalho de alunos, professores e escolas. Estes dispositivos devem incluir avaliação externa.

Como referi acima, não existem poções mágicas em educação por mais desejável que possa parecer a sua existência. Não deixemos que o fascínio deslumbrado pelo que se julga ser as "salas de aula do futuro" faça esquecer os problemas das salas de aula do presente.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

O MESTRE ZÉ MARRAFA PARTIU

 Contrariamente ao que é habitual, o meu Alentejo tem um dia triste, partiu o Mestre Zé Marrafa. Depois de mais de trinta anos a ajudar-nos aqui no monte e após três anos em que o Mestre Zé já não era o Mestre Zé.

É impossível não recordar as lérias, a histórias da vida de um Homem que começou a trabalhar aos nove anos guardando porcos e tinha 85 anos.

Até aos oitenta e dois sempre esteve com agente aqui na lida e muitas vezes me “envergonhei” com a resistência e capacidade. O que aprendi sobre o campo, os calendários, a utilização do tractor, as tradições deram-me um mundo de encantamento com o Alentejo. O Mestre Zé fazia parte de um dos Coros de Viana e cultivava o Cante, a alma do Alentejo.

Era um artesão uma vez, pelo Natal, apareceu no Monte com dois presentes. Duas miniaturas em madeira feitas por ele, um chambaril, dispositivo que se usa na época da matança para pendurar o porco para desmanchar e uma bota de ceifeira alentejana. Ainda ali estão a lembrá-lo.

 Era um Homem vontadeiro, um dos muitos termos que aprendi com ele, e com um sentido de humor fino que lhe fazia brilhar os olhos pequenos. Dois exemplos.

Lembro-me de uma vez, num dia quente com os deste tempo, ele se queixar de uma dor no joelho, queixas que nele eram raras. Sem saber como ajudar e para me meter com ele fiz aquele comentário inteligente e habitual em situações em que a queixa provém de alguém já com uma estrada longa, por assim dizer, "é da idade Mestre Zé".

O Velho Marrafa olhou para mim e no seu jeito de sempre decretou:

“Não Sô Zé, isto não é da idade, o outro joelho não me dói e eles são os dois da mesma idade”.

Noutra ocasião também em tempo de calor lhe disse que estava anunciado um alerta vermelho. O Mestre Zé olhou para mim e comenta, “alerta por causa de calor no Verão?! Se viesse muito frio é que deviam avisar, no Verão do Alentejo querem o quê”.

Pois é Mestre Zé, já não vamos cumprir o que combinámos.

Lembra-se que plantámos uns sobreiros em 2011 que deveriam dar cortiça 25 anos depois e nós cá estaríamos para tirar a primeira cortiça e eu já não faria golpes no tronco por mau uso do machado.

E agora Mestre Zé? Um dia vou ter consigo.

Até lá obrigado pelo que foi para nós, pela ajuda, pelo exemplo, pelo ensino … por ser o nosso Mestre Zé.

Até esse dia.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

SEMENTES DE MAL-ESTAR

 É impossível não ficar impressionado com o grave episódio agora conhecido envolvendo um jovem de Santa Maria da Feira, com 17 anos, que através de uma rede social conseguiu convencer vários menores no Brasil a realizar atrocidades incluindo um massacre escolar que motivou a morte de uma aluna e a tortura de animais de companhia. Estão também em causa a partilha de vídeos de abuso sexual de menores, incluindo bebés, divulgando cenários de violência e brutalidade impressionantes.

É ainda causa de grande perplexidade a ocorrência de uma situação desta natureza desencadeada por alguém com 17 anos.

Dito isto, também sabemos que nos tempos que correm o clima social, relacional e emocional nas comunidades de que fazemos parte nem sempre é muito amigável e cria caldos de cultura relacional em que o clima nas comunidades é ele próprio menos favorável ao bem-estar. Acresce o mundo que se esconde nos alçapões da net, designadamente nas redes sociais

Apesar de em Portugal estes casos de violência extrema serem menos frequentes e de menor gravidade que noutros países, levam-nos a questionar os nossos valores, modelos educativos, códigos e leis pela perplexidade que nos causam.

Esta perplexidade exige a necessidade de tentarmos perceber um processo que designo como "incubação do mal" que se instala nas pessoas, muitas vezes logo na infância e adolescência, a partir de situações de mal-estar que podem passar relativamente despercebidas, mas que insidiosamente começam a ganhar um peso interior insuportável cuja descarga apenas precisa de um gatilho, de uma oportunidade e, cada vez mais, a net está ali à mão, discreta e potente ferramenta para acções em múltiplos sentidos, neste caso o pior.  

A fase seguinte pode passar por duas vias, uma mais optimista em que alguma actividade, socialmente positiva, possa drenar esse mal-estar, nessa altura já desregulação de valores, ódio e agressividade. Uma outra via em que aumenta exponencialmente o risco de um pico que pode ser um ataque numa escola ou noutro espaço público ou uma investida contra alguém arriscando a entrada numa espiral de violência cheia de "adrenalina", em nome de coisa nenhuma a não ser de um "mal-estar" que destrói valores e gente.

Um caminho mais difícil de rastrear, percorre-se à frente de um ecrã, com acesso a um sem fim de oportunidades para alimentar, criar e desencadear comportamentos incontroláveis de profunda e múltipla violência.

É evidente que a detenção constitui um importante sinal de combate à sensação de impunidade perigosamente presente na nossa comunidade, mas é minha forte convicção de que só punir e prender não basta para minimizar o risco de episódios desta dimensão trágica.

Sabendo que prevenção e programas comunitários e de integração têm custos, importa ponderar entre o que custa prevenir e os custos posteriores da violência, de delinquência continuada ou de insegurança.

Importa ainda estratégias mais proactivas e eficientes de minimizar, a exclusão, o abandono e insucesso educativos, o “mal-estar” psicológico e problemáticas de saúde mental, a guetização e "quase total" e, muitas vezes, a desocupação de quem não estuda, nem trabalha. Para esta gente, o futuro passa por onde, por quem e porquê?

Finalmente, a importância de uma precoce e permanente atenção às pessoas, ao seu bem-estar, tentando detectar, tanto quanto possível, sinais que indiciem o risco de enveredar por um caminho que se percebe como começa, mas nunca se sabe como acaba.

terça-feira, 3 de junho de 2025

O AVESSO DOS MIÚDOS

 Uma das questões que com alguma frequência me dá que pensar é a constatação de que, com excepções evidentemente, boa parte dos discursos que produzimos sobre crianças e adolescentes são muitas vezes formulados pela negativa, ou seja,  referem-se quase sempre a dificuldades ou características percebidas com negativas e menos vezes com conteúdos positivos.

Este comportamento observa-se tanto em pais como em professores, sobrevalorizamos o que nos parece de menos bom e não referimos como seria desejável o que de positivo observamos nos mais novos.

É verdade que entre adultos tendemos a funcionar da mesma forma, recordo o enunciado de Marguerite Yourcenar no imperdível Memórias de Adriano, "O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em especial, as virtudes que ele não tem e desinteressarmo-nos de cultivar as que ele possui." Dito de outra maneira, o nosso olhar direcciona-se sobretudo para o que de menos bom aos nossos olhos os outros parecem ter, olhamos para o seu avesso e não para o seu direito, por assim dizer.

Voltando às crianças, adolescentes e jovens, isto traduz-se no recurso a uma adjectivação e apreciação muitas vezes negativas sobre eles, "não sabem", "não se interessam", são "distraídos" ou desatentos, "desajeitados", "teimosos", "mal educados", "mal comportados", "ignorantes", etc.

Como é evidente, esta minha conversa não significa um entendimento idealizado e ingénuo sobre os mais novos, apenas significa que, como toda a gente, têm direito e avesso, a minha questão é porque tendemos a ver apenas o avesso.

Tenho ainda a convicção de que qualquer de nós, pequeno ou grande, só aprende a partir do que sabe, só é mais pessoa a partir da pessoa que já é, só cresce a partir do que já cresceu, só faz mais e melhor a partir do que já fez e não a partir do que não aprendeu, não sabe, não é ou não faz.

Conversa de velho, já se vê.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

NA VERDADE ...

 Lê-se no Expresso a referência a um estudo realizado por oito organizações não-governamentais de refere diferentes países europeus agrupado pela Bridge EU envolvendo 63 projectos financiados pela União Europeia em seis países, Bulgária, Chéquia, Grécia, Polónia, Hungria e Roménia.

A substância da notícia é que estes projectos financiados pela UE com pelo menos 1,1 mil milhões de euros violam na sua realização os direitos de minorias ou comunidades marginalizadas.

Como exemplos referem-se, “construção de habitação segregada para comunidades ciganas em áreas periféricas, longe de serviços públicos e sem condições mínimas de habitabilidade, a construção de residenciais para crianças com deficiência, afastando-as das suas famílias em vez de lhes proporcionar apoio em casa ou centros de acolhimento para pedidos de asilo em locais remotos da Grécia, com condições de vida degradantes.”

É mau demais, o mundo anda cruel, as coisas nem sempre são o que parecem, o que pensamos que são ou mesmo o que gostávamos que fossem em múltiplos contextos.

Na verdade, há pais que fazem mal aos filhos.

Na verdade, há filhos que fazem mal aos pais.

Na verdade, há professores que fazem mal aos alunos.

Na verdade, há alunos que fazem mal aos professores.

Na verdade, há velhos que fazem mal aos novos.

Na verdade, há novos que fazem mal aos velhos.

Na verdade, há pessoas que fazem mal a pessoas.

Na verdade, ...

Na verdade, ... o mundo é um lugar estranho e ... às vezes ... muito feio.

domingo, 1 de junho de 2025

O DIA DA CRIANÇA. SERÁ QUE UM DIA SERÃO TODOS?

 A agenda das consciências determina em muitos países, incluindo Portugal, que se cumpra para hoje o Dia da Criança. A liturgia variada associada à efeméride vai acontecer como de costume. As visitas, os passeios, as festas, etc., a oferta de espectáculos de todas as naturezas mostrará uma comunidade preocupada em fazer as crianças felizes. Muitas estão e parecem divertir-se, ainda bem. Algumas outras terão de passar por um dia cansativo.

A imprensa fará eco dos múltiplos eventos dirigidos às crianças, ouvirá por uma vez as crianças e produzir-se-ão, certamente, muitos discursos e referências centrados nos miúdos e ao seu mundo. Esta é mais uma.

Claro, neste dia, ouviremos sobre o que pensam do mundo, do seu mundo e da vida das pessoas, é "giro". É verdade que passa depressa, amanhã já não as ouvimos sobre o que as inquieta e lá voltam os miúdos, muitos, a gritar e a agitar-se para se fazerem ouvir.

Tudo bem, pois que seja, este tipo de efemérides serve também para isso mesmo, a encenação, sempre bem-intencionada da preocupação que descansa as consciências.

É verdade, felizmente, que muitas crianças vivem felizes, por assim dizer, adoptadas pelos pais, acolhidas pela escola e pela comunidade, são o futuro a crescer. É bom que assim seja.

No entanto e nestas alturas, lembro-me com frequência do Mestre Almada que na Cena do Ódio falava sobre "a Pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões". De facto, apesar da vaga de discursos e iniciativas em nome das crianças, muitos passam mal, muito mal, todos sabemos.

Não cabem no Dia da Criança.

Não cabem os que diariamente são vítimas de crimes e maus-tratos.

Não cabem muitos dos que vivem numa instituição esperando por uma família que nunca virá.

Não cabem os que, por várias razões, são alvo de discriminação e a quem são negados direitos básicos.

Não cabem os que vivem em famílias que os não desejam e mal os suportam.

Não cabem os que a pobreza ameaça as suas necessidades básicas.

Não cabem os que vivem em famílias que sobrevivem envergonhadamente na pobreza que nos deveria envergonhar a nós.

Não cabem os que a escola não consegue ajudar a construir um futuro a que valha a pena aceder e sofrem políticas educativas nem sempre suficientemente amigáveis para os todos os miúdos.

Não cabem os que sofrem de solidão e isolamento sem que se perceba como não estão bem.

Não cabem os que vivem em situações de guerra das quais são sempre as vítimas mais vulneráveis.

Na verdade, estes miúdos de que acabei de falar, por vezes, parece que não existem, são transparentes, nem os vemos. Por isso, comemora-se o Dia da Criança com a convicção ingénua ou voluntarista de que, como dizia Pessoa, "o melhor do mundo são as crianças" e que elas são felizes, todas.

O que, obviamente, não corresponde à realidade, mas os poetas ... são uns fingidores.

E sabem o que é mais inquietante?

Este texto não prescreve.