AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

UM ANO NOVO, MESMO NOVO

Por uma vez, o Ano Novo poderia ser mesmo Novo. Por exemplo.
Poderia ser Novo no respeito efectivo pela dignidade, pelos direitos básicos das pessoas e no combate às desigualdades e à exclusão e pobreza.
Poderia ser Novo na gestão da coisa pública com transparência, justiça e ao serviço das pessoas.
Poderia ser Novo na definição de políticas dirigidas às pessoas e não ao sabor dos endeusados mercados e da agenda da partidocracia.
Poderia ser Novo no recentrar das grandes questões da educação na qualidade dos processos educativos e no sucesso do trabalho de alunos e professores.
Poderia ser Novo no combate ao desperdício e à iniquidade de mordomias insustentáveis.
Poderia ser Novo nos discursos e padrões éticos das lideranças políticas, económicas e sociais.
Poderia ser mesmo Novo, estão a ver? 
 
De repente, lembrei-me do Zé, um jovem com uma deficiência motora significativa com quem me cruzei há anos, que quando falava dos seus desejos de futuro terminava sempre da mesma maneira, “sonhar não custa nada, viver é que custa”. 
 
Que o Ano Novo vos (nos) seja leve.

domingo, 30 de dezembro de 2012

2012, ANO PARA ESQUECER OU PARA RECORDAR?

É habitual nestes dias em final de ano recordarmos em jeito de balanço o que nos trouxe este tempo. De uma forma telegráfica e em termos globais, creio que o ano ficou marcado por um brutal ataque à dignidade de alguns milhões de portugueses em nome de uma política de empobrecimento que nos levará, dizem, a um futuro promissor mas que dificilmente vislumbramos.
Um nível de desemprego que atinge bem mais de um milhão de portugueses, cortes nos rendimentos e ajustamento em baixa dos apoios sociais, colocaram milhões de portugueses numa situação de pobreza e risco de exclusão que a maioria não antecipava. Para centenas de milhares de portugueses a sua vida transformou-se numa luta diária pela sobrevivência e pela dignidade que depende da solidariedade das comunidades, das instituições de solidariedade social que dificilmente conseguem acolher todas as necessidades.
Em termos mais particulares e dada a minha relação com o universo da educação, umas notas avulsas sobre o ano que termina.
Do meu ponto de vista, o MEC promoveu alterações em áreas que delas careciam mas as alterações, muitas delas, não foram no sentido que me parece o mais desejável ou seja, fazer as coisas certas nem sempre significa fazer certas as coisas. As mudanças parecem ter como princípio fundador a contabilidade e não a qualidade do trabalho de alunos e professores.
A necessária reordenação da rede escolar não justifica a opção e insistência na constituição de mega-agrupamentos, cujos riscos e ineficácia, existe evidência e experiências de outros países, não permitem sustentar. Acresce a decisão sobre o aumento do número máximo de alunos por turma que com os agrupamentos será quase sempre atingido e que, em boa parte dos territórios educativos, está longe ser um contributo para a qualidade. Parece subjazer a estas medidas a economia de recursos humanos que destroçou a situação profissional de milhares de professores a que acresceu nesta matéria um desastrado processo de colocação.
A necessária e urgente reforma curricular ficou aquém do desejável, promoveu e alimentou uma ordenação de estatuto entre as disciplinas que não é útil e parece, como toda a política educativa, ter como eixo central a diminuição de custos com professores.
Numa área que me é particularmente próxima, os alunos com necessidades especiais, o cenário manteve-se, falta de formação específica, falta de técnicos, designadamente psicólogos, e indefinição ou ausência de estratégias relativas à educação deste grupo de alunos situação que se complicou com o alargamento da escolaridade obrigatória e que o MEC tentou gerir com um modelo sobre qual tenho sérias reservas. De tudo isto resultou que muitos alunos não têm a resposta adequada e muitos professores de ensino regular não têm qualquer apoio para acolher as dificuldades de alguns dos seus alunos.
E, naturalmente, temos os exames. É evidente que a avaliação rigorosa e regular das aprendizagens é imprescindível mas, mais uma vez, a evidência e a experiência de outros países não sustentam que a instituição de exames, muitos exames, logo no 4º ano, algo de muito raro no espaço europeu, contribua, só por si, para melhorar a qualidade que está mais dependente da mobilização oportuna, eficaz e suficiente de dispositivos de apoio a alunos, professores e famílias do que de exames, muitos exames.
Uma referência ao novo Estatuto do Aluno e Ética Escolar que, assente num ambíguo e pouco claro reforço da autoridade dos professores, não permitindo, no entanto, perceber com isso acontecerá. Uma medida emblemática, multas e suspensão de apoios a pais de alunos com absentismo ou indisciplina parecem, obviamente, incapazes de alterar substantivamente o cenário complicado que atravessamos em matéria de comportamentos escolares.
Uma nota final, o espaço é curto, para a última pérola da PEC – Política Educativa em Curso, a importação da versão alemã de “ensino dual” que não responde à necessidade de há muito sentida de diversificação dos percursos educativos. A ”escolha” do MEC recai justamente num modelo que a OCDE e a UNESCO avaliam negativamente, pois a via profissional precoce mantém a desigualdade social e é dificilmente reversível.
Na verdade, o ano que agora finda trouxe uma carga que nos fará não esquecer dele. Até porque o 2013 se adivinha bem mais complicado e como o povo costuma dizer, “atrás de mim virá, quem bom de mim fará”.

OBRIGADO BRUXELAS

Ao abrir o Público on-line bato com os olhos na primeira referência, “A água da torneira é segura confirma Bruxelas”. Ao que parece a Comissão Europeia encerrou um processo de pré-contencioso, expressão do mais fino recorte burocrático, sobre a qualidade da água de consumo em Portugal.
Não sei bem porquê, mas fiquei logo mal disposto.
Eu sei que isto, o país, é uma feitoria administrada por uns feitores sem mandato para tal e que a soberania é algo em extinção, mas porque milagre ou mistério são os burocratas de Bruxelas a decidir que a água da torneira é boa?
A teia burocrática europeia, em nome dos feitores e da sua agricultura determina a dimensão da fruta, do peixe, dá cabo da nossa agricultura e pesca e decide que a água é boa, os nativos, como diria Vasco Pulido Valente, podem bebê-la sem perigo. Obrigado Bruxelas.
Os agricultores algarvios produzem laranja excelente que se estraga porque não responde ao calibre determinado pelas burocratas de Bruxelas, importamos laranja engraxada e de estufa sem qualidade e autorizam-nos a beber a nossa água porque ela tem qualidade. Obrigado Bruxelas.
Devo ter acordado mal disposto com a expectativa de sair de um mau ano velho para entrar num péssimo ano novo, mas não consigo entender porque é que a rapaziada cá do burgo não será capaz de saber que a água que bebe tem qualidade sem que os burocratas que nos parasitam metam o bedelho.

sábado, 29 de dezembro de 2012

AS PALAVRAS MAL DITAS

Já não vai sendo fácil contabilizar as afirmações de governantes que, a propósito das mais variadas situações, quase sempre de dimensões de mal-estar e fragilidade na vida das pessoas, são de uma insensatez e insensibilidade notáveis e graves, bem entendido.
O Secretário de Estado Adjunto da Saúde, Leal da Costa, é um bom exemplo de como é útil e inteligente pensar antes de falar. Lembram-se certamente das suas afirmações de há meses sobre o não financiamento de terapias para o cancro de “eficácia duvidosa”. Pensei que se referiria à actividade de “curandeiros” mas o Secretário de Estado precisou tratar-se de considerar se se devem realizar actos médicos, cirurgias por exemplo, que apenas prolonguem a vida dos doentes por pouco tempo, assim mesmo, seria mais eficaz e, sobretudo barato, deixar morrer logo, seria só poupança. Ainda no campo da saúde recordo ainda a famosa intervenção de Manuela Ferreira Leite sustentando que as pessoas com mais de 70 anos deveriam suportar elas os custos da hemodiálise, os velhos são uma carga inútil para o SNS, uma outra pérola do mais fino recorte científico, moral e ético.
A afirmação do Secretário de Estado foi fortemente contestada quer pelo Bastonário da Ordem dos Médicos quer por elementos de Associações de doentes como não podia deixar de ser.
Hoje, o Secretário de Estado Leal da Costa voltou ao palco. Afirmou que se utilizarmos o SNS este deixará de ser sustentável. Não basta pagar impostos, uma carga brutal de impostos, para que ele se sustente. Afirma que temos de recorrer menos vezes aos serviços Temos de o usar menos vezes e temos que aumentar a prevenção para não ficarmos doentes.  
Como é evidente ninguém discordará da importância da prevenção pelo que o próprio Ministério da Saúde deveria apostar fortemente na prevenção mas colocando a questão nestes termos. Ninguém adoece porque quer e deveríamos assumir comportamentos mais saudáveis em nome do bem-estar sendo a poupança na saúde a consequência e não o objectivo.
Será que esta gente não consegue entender que os problemas das pessoas devem ser abordados com, no mínimo, respeito pela sua dignidade?
Sabemos que os tempos não estão fáceis e que exigem contenção. Mas sabemos, sentimos, que boa parte das políticas, sendo amigas do défice, ainda assim sem grande resultado ao que se conhece, sendo amigas dos mercados, são inimigas das pessoas, fazem mal às pessoas, mesmo algumas das políticas de saúde.
A questão é que os líderes políticos, os que verdadeiramente são líderes, apesar de não possuírem, felizmente, o dom da infalibilidade e da perfeição, não podem, não devem proferir determinadas palavras e persistirem teimosamente na sua afirmação.
São palavras mal ditas.
A afirmação do burocrata Leal da Costa, ao que parece médico(!), é apenas mais uma daquelas que são proibidas e que numa terra de líderes políticos com espinha, exigiria, pelo menos, um pedido de desculpas.

O SILÊNCIO DO CORO DOS ESCRAVOS

A imprensa de hoje dá relevo a uma matéria que é de há alguns anos conhecida no Alentejo e que tem vindo, por várias razões, a aumentar, a situação de escravatura em que caiem muitos cidadãos estrangeiros, designadamente romenos, “contratados” por redes mafiosas do seu país que os sub-alugam para a apanha da azeitona que, com o incremento da plantação intensiva no Alentejo, exige mão-de-obra insuficiente na região.
Cada vez são mais frequentes situações inaceitáveis de exploração e maus tratos como hoje são notícia.
Este cenário, o tráfico de pessoas e a escravatura, tal como a fome, é das matérias que maior embaraço pode causar em sociedades actuais e deveria ser algo de improvável no séc. XXI em sociedades desenvolvidas.
A escravatura parece algo “fora do tempo” e de impossível existência nos nossos países, estamos a falar da Europa. Mas existe e é sério o problema que, como não podia deixar de ser, atinge os mais vulneráveis.
Este negócio, o tráfico de pessoas, um dos mais florescentes e rentáveis em termos mundiais, alimenta-se da vulnerabilidade social, da pobreza e da exclusão o que, como sempre, recoloca a imperiosa necessidade de repensar modelos de desenvolvimento económico que promovam, de facto, o combate à pobreza e, caso evidente em Portugal, às escandalosas assimetrias na distribuição da riqueza. Também por isso, são recorrentes as notícias de portugueses usados como escravos em explorações agrícolas espanholas ou redes de contratação de trabalhadores da construção civil para países do primeiro mundo europeu, como o Holanda, Bélgica ou Reino Unido.
Estes tempos, marcados por competição, diminuição de direitos e apoios sociais, pressão sobre a produtividade. Tudo isto é submetido a um deus mercado que não tem alma, não tem ética e é amoral e pode alimentar, sem particulares sobressaltos, algumas formas de escravatura mais "leves" ou, sobretudo em casos de particular fragilidade dos envolvidos, bastante pesadas.
As pessoas, muitas pessoas, apenas possuem como bem, a sua própria pessoa e o mercado aproveita tudo, por isso, compra e vende as pessoas dando-lhe a utilidade que as circunstâncias, a idade, e as necessidades de "consumo" exigirem.
O que parece ainda mais inquietante é o manto de silêncio e negligência, quando não cumplicidade, que frequentemente cai sobre este drama tornando transparentes as situações de escravatura, não se vêem, não se querem ver.
Neste universo não conseguimos ouvir o coro dos escravos, não têm voz. 

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

ELES, OS GAJOS

Há alguns dias e porque o passar dos anos obriga a estar atento ao corpo e à sua revisão anual, passei algum tempo na sala de espera de um centro de saúde o que é sempre uma experiência interessante e estimulante.
Durante o tempo de espera, razoável, deve dizer-se, as conversas, ainda que variando de tema, tinham quase sempre os mesmos protagonistas, eles.
Os "eles", também conhecidos na versão mais popular por "os gajos", são uma entidade indefinida que nós portugueses elegemos como fonte e responsáveis de tudo e por tudo o que de menos bom nos acontece.
Esperamos tanto tempo pelos exames ou por consultas porque eles não dão condições nenhumas, falta tudo.
A vida está difícil porque eles não pensam no povo, eles estão lá é para se encher. Eles, fazem o que querem e a gente é que se trama.
Quando pela janela se viram cair algumas fortes bátegas de chuva alguém comentou, eles dão cabo do clima e depois é o que dá.
Que me lembre, ainda percebi que eles, os gajos, também têm responsabilidade sobre os transportes que não chegam e são caros, os assaltos que não páram e é um horror e o preço do peixe que está pela hora da morte.
Bom, finalmente chamaram-me para os exames. Antes de sair ainda ouvi que quem devia estar ali à espera eram eles, os gajos, não fazem nada, têm tempo para esperar.
Eles, os gajos, os outros, são assim.

E É ESCREVER ASSIM DESACORDADAMENTE (Continuação)

Confirma-se que, conforme já fora noticiada a possibilidade, o Governo brasileiro decidiu adiar a obrigatoriedade do Acordo Ortográfico para 2016, depois de ouvir professores de português, de constatar a confusão e dificuldades e de considerar a necessidade de mudanças nos conteúdos.
Felizmente, a questão do Acordo Ortográfico permanece viva e enquanto assim for continuarei a afirmar a minha discordância. Gostava de acreditar que esta decisão do Brasil fosse um contributo para que se pudesse reconsiderar este processo incompreensível e para muita gente insustentável.
Neste quadro, enquanto a questão não estiver definitivamente encerrada retomo, e retomarei, a minha breve e não técnica reflexão sobre o que me parece estar em causa e expresso teimosamente o meu profundo desacordo com o Acordo. Embora já o tenha feito várias vezes, entendo que a defesa da Língua Portuguesa, nas suas várias e importantes variações, o justifica.
Do que tenho lido e ouvido, nada me tem convencido da sua bondade ou necessidade. Entendo que as línguas são estruturas vivas, em mutação e isso é importante. Neste cenário, é clara a necessidade de ajustamentos, por exemplo, a introdução de palavras novas ou mudanças na grafia de outras o que não me parece sustentação suficiente para o que o Acordo Ortográfico estabelece como norma. Já estou cansado do argumento da “pharmácia”quando se pode verificar que em todos os países, e são muitos, em que o termo tem a mesma raiz, a grafia é com “ph” e nada de muito grave acontece. A introdução ou mudança na grafia tem acontecido em todas as latitudes e não tem sido necessário um Acordo com os conteúdos bizarros, alguns, que este contém.
Por outro lado, a grande razão, a afirmação da língua portuguesa no mundo, também não me convence pois não me parece que o inglês e o castelhano que têm algumas diferenças ortográficas nos diferentes países em que são língua oficial, experimentem particulares dificuldades na sua afirmação, seja lá isso o que for. De facto não tenho conhecimento da perturbação e do drama com origem nas diferenças entre o inglês escrito e falado na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas isto dever-se-á, certamente, a ignorância minha e à pequenez irrelevante daquelas comunidades anglófonas. O mesmo se passa entre a comunidade dos países com o castelhano como língua oficial.
Por outro lado, a opinião dos especialistas não é consensual, longe disso, temos regularmente exemplos disso mesmo, e eu sou dos que entendem que em todas as matérias é importante conhecer a opinião de quem sabe. Aliás, é interessante analisar a natureza da argumentação dos especialistas favoráveis ao Acordo. Algumas vezes assenta, sobretudo, no porque sim, porque é novo. É pobre.
Neste quadro e como sou teimoso vou continuar a escrever em desacordo até que o teclado me corrija. Nessa altura desinstalo o corrector que venha com o acordo e vou correr o risco de regressar à primária, ou seja, ver os meus textos com riscos vermelhos por baixo de algumas palavras, os erros.
Não é grave, errar é humano.
No entanto, como toda gente, não gosto de errar, pelo que preferia continuar a escrever desacordadamente.

O PROFESSOR BAPTISTA DA SILVA E O DOUTOR MIGUEL RELVAS

Continuo, como já afirmei, sem perceber o alarido causado pela figura do Senhor Professor Doutor Artur Baptista da Silva, Funcionário do PNUD, Consultor da ONU, Professor da Universidade de Milton Wisconsin, etc., etc.
Num País que tem o Senhor Doutor Miguel Relvas e mais uns engenheiros e doutores com currículos obtidos como prémio de alpinismo social e aparelhístico ou através de malabarismos manhosos, apenas há que sublinhar a criatividade, a capacidade empreendedora e a assertividade do Senhor Professor. 
O alarido aparece, creio, não porque o Senhor Professor Baptista da Silva afirme ser o que não é. O que nos incomoda a todos é a facilidade com que gente respeitável, conhecedora do mundo e das matérias, fazedora de opinião se deixou enrolar, essa é que é a questão. Nós perdoamos-lhe e até lhe achamos "piada", não nos perdoamos a nós próprios por sermos tão ingénuos e acreditarmos.
Por outro lado, o Senhor Professou anda à procura de uns minutos de glória e de uns retratos na imprensa que o façam feliz, a outra gente é mais perigosa, a sua missão é o poder, os vários poderes com os resultados que todos conhecemos.
Deixem o Senhor Professor Baptista da Silva ser um prestigiado Consultor da ONU, é inofensivo e fica feliz.
Indignem-se com as outras figuras que nos assaltam e nos insultam por ser como são, fazendo o que fazem.
O que Eça de Queirós se estará a divertir a assistir a esta peça do mais fino recorte literário, ético e científico.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O MALABARISTA

Um dia destes numa roda de conversa as falas giravam, estranhamente, em torno das dificuldades que atravessamos e como em cada dia nos surpreendemos com novos problemas que se juntam e avolumam os já existentes.
Às tantas e a este propósito, meu amigo Manel citou a conversa que teve com um amigo seu, rapaz dedicado às artes circenses, particularmente versado nos feitos malabaristas, manipulando bolas e conseguindo com uma eficácia e aparente e invejável facilidade manter em movimento umas quantas bolas sob um domínio perfeito.Dizia o Malabarista que a vida das pessoas se assemelha à sua performance com as bolas. Perante a estranheza do meu amigo Manel, o Malabarista explicou nos termos que tento recuperar da memória da conversa relatada.
"Consigo sem grandes dificuldades manter todas as bolas em movimento e controladas. Quando me aparece uma outra bola a consequência nunca é deixar cair essa e apenas essa que veio de novo, é deixar tombar todas, tudo fica incontrolável". Tal e qual a vida das pessoas, aparece mais um problema e não é só esse problema. O resto também não se contém.
Na verdade, a vida de muita gente vai-se parecendo com a inquietação do Malabarista. Tentam manter todas as suas bolas em movimento e sob controlo. O problema é que todos os dias somos confrontados com novas e preocupantes dificuldades, bolas, para incorporar no nosso número. Como bem avisa o Malabarista, o grande risco não é a dificuldade de controlar mais uma bola, a que apareceu com ou sem surpresa. O grande risco é que tudo se desmorone.
O Malabarista tem razão, quantas pessoas se desmoronam diariamente por incapacidade para manter em movimento e equilíbrio todas as bolas que se movem nas suas vidas.

SINALIZADOS, REFERENCIADOS, MAS ... MAIS UMA TRAGÉDIA

A tragédia que vitimou as duas crianças em Alenquer acaba por testemunhar o que não pode, não deve, acontecer em matéria de protecção a menores em risco.
Ao que parece os miúdos estavam sinalizados como estando em risco por parte da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens da área mas os pais recusaram apoios dos serviços sociais. Dado que a Comissão não pode intervir sem consentimento, sendo eles eventualmente responsáveis pelos riscos que as crianças enfrentam, o processo é enviado para Tribunal e … ficamos à espera. A decisão pode vir em tempo útil a uma intervenção que de facto proteja os menores ou, como foi o caso, acontece uma tragédia.
De há muito e a propósito de várias questões, que afirmo que em Portugal, apesar de existirem vários dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens e de existir legislação no mesmo sentido, sempre assente no incontornável “supremo interesse da criança, não existe o que me parece mais importante, uma cultura sólida de protecção das crianças e jovens. Poderíamos citar a insuficiência e falta de formação de juízes que se verifica nos tribunais de Família, as frequentemente incompreensíveis decisões em casos de regulação do poder parental, etc.
Temos também em funcionamento as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens que procuram fazer um trabalho eficaz mas em difíceis circunstâncias, para além da falata de agilidade processual na articulação das múltiplas entidades envolvidas como também é frequente entre nós.
Na sua grande maioria as Comissões têm responsabilidades sobre um número de situações de risco ou comprovadas que transcendem a sua capacidade de resposta. A parte mais operacional das Comissões, a designada Comissão restrita, tem muitos técnicos a tempo parcial. Tal dificuldade repercute-se, como é óbvio, na eficácia e qualidade do trabalho desenvolvido, independentemente do esforço e empenho dos profissionais que as integram.
Este cenário permite que ocorram situações, frequentemente com contornos dramáticos, envolvendo crianças e jovens que, sendo conhecida a sua condição de vulnerabilidade não tinham, ou não tiveram, o apoio e os procedimentos necessários. Ouve-se então uma das expressões que me deixam mais incomodado, a criança estava “sinalizada” ou “referenciada” o que foi insuficiente para a adequada intervenção. Em Portugal sinalizamos e referenciamos com relativa facilidade, a grande dificuldade é minimizar ou resolver os problemas referenciados ou sinalizados.
Por isso, sendo importante registar a menor tolerância da comunidade aos maus tratos aos miúdos, também será importância que desenvolva a sua intolerância face à ausência de respostas e surgimento de tragédias como a de Alenquer. 

A BRUTAL AUSTERIDADE NOS NASCIMENTOS

Conforme tem vindo ser anunciado 2012 será o ano com menos nascimentos em Portugal desde que existe registos. Até Setembro registaram-se mais 16500 funerais que nascimentos. Segundo dados do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, até ao final de Setembro deste ano foram realizados cerca de 67 500 testes do pezinho, um indicador seguro dos nascimentos, o que corresponde a menos 6500 que em igual período de 2011.
Esta tendência que se acentua é mais uma preocupação emergente. A renovação de gerações exige 2,1 filhos por mulher sendo que desde 1982 que em Portugal não se atinge tal valor. Temos 1,37 como índice sintético de fecundidade, o segundo mais baixo do mundo, atrás da Bósnia.
É ainda de registar que em 2010, um pouco mais de 10% dos nascimentos são crianças de mães estrangeiras, quando curiosamente temos discursos de governantes que nos aconselham, sobretudo aos mais novos, a emigrar e assim, lá longe, construir um projecto de vida. Os dados mais recentes sobre a emigração confirmam este fenómeno, a saída de muitos jovens.
Estes indicadores comprometem, obviamente, a renovação geracional, potenciando o envelhecimento populacional e o desequilíbrio demográfico. Contrariamente ao que se verifica noutros países que têm as respectivas taxas a subir, em Portugal, o declínio a partir de 2003 tem sido constante.
É ainda interessante sublinhar que trabalhos recentes evidenciam que as mulheres portuguesas são de entre as europeias as que mais valorizam a carreira profissional e a família. Também é sabido de outros estudos que as mulheres portuguesas são das que mais tempo trabalham fora de casa, aliás, são também das que mais tempo trabalham em casa.
Como parece claro, este cenário, menos filhos quando se desejava fortemente compatibilizar maternidade e carreira, exige, já o tenho referido, a urgência do repensar das políticas de apoio à família. Os salários baixos ou o desemprego são uma das razões que “obrigam” a que as famílias revejam em baixa, como agora se diz, os projectos relativos a filhos. Por outro lado, Portugal tem um dos mais elevados custos de equipamentos e serviços para crianças o que, naturalmente, é mais um obstáculo para projectos de vida que envolvam filhos.
Não pode ainda esquecer-se a discriminação salarial de que muitas mulheres, sobretudo em áreas de menor qualificação, são ainda alvo e a forma como a legislação laboral e a sua “flexibilização” as deixam mais desprotegidas. São conhecidas muitas histórias sobre casos de entrevistas de selecção em que se inquirirem as mulheres sobre a intenção de ter filhos, sobre casos de implicações laborais negativas por gravidez e maternidade, sobre situações em que as mulheres são pressionadas para não usarem a licença de maternidade até ao limite, etc.
Toda esta situação torna urgente a definição de políticas de apoio à família com impactos a curto e médio prazo como, por exemplo, a acessibilidade aos equipamentos e serviços para a infância com o alargamento da resposta pública de creche e educação pré-escolar, cuja oferta está abaixo da meta estabelecida. Combater a discriminação salarial e de condições de trabalho através de qualificação e fiscalização adequadas.
Só com uma abordagem global e multi-direccionada me parece possível promover a recuperação demográfica indispensável.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

CARO PEDRO,

Peço desde já desculpa pela familiaridade abusiva do trato. Dado que não o tenho na roda dos meus amigos no Facebook e a minha utilização da rede é breve, apenas agora tomei conhecimento da mensagem que deixou na rede dirigida aos seus amigos sobre o Natal.
O senhor começa por afirmar que este não foi o Natal que merecíamos e refere dificuldades e sacrifícios que muitas pessoas fizeram nestes dias, na linha, aliás, do que têm vindo a fazer.
Concordo com a sua ideia, este não foi o Natal que muita gente merecia. Recordo centenas de milhares de pessoas que nunca viveram acima das suas possibilidades, que nunca tiveram responsabilidades de gestão da coisa pública, que sempre trabalharam e viveram do seu trabalho e que o perderam. E mais, perderam a dignidade. Como não mereciam as crianças que como o Pedro diz, não tiveram presentes, mas que garante, irão ter futuros. Desejamos que sim. Algumas destas crianças também não mereciam chegar à escola com fome, situação.que lhes rouba o presente e lhes ameaça o futuro.
Não se zangue Pedro, este é, também, o país que temos. Sabemos todos, o senhor também, que herdou uma situação muito grave com as contas do país completamente desequilibradas e numa conjuntura internacional altamente desfavorável. Devo, no entanto dizer que começa a ser o tempo de assumir que os dias em Portugal são os que o senhor tem vindo a fazer acontecer. E assim sendo, este Natal foi o Natal que o senhor fez acontecer, o Natal mais frio de que me lembro.
O senhor, para além das medidas de ajustamento (termo fino este) a que a Troika obrigou no excelente negócio que realizou connosco, tem vindo a tomar um conjunto de medidas que justamente produzem os sacrifícios pesadíssimos para as famílias que reconhece na sua mensagem.
Mais uma vez, este caminho, é o caminho decidido por si e por aqueles a quem segue fielmente. Como certamente saberá, muita gente, incluindo seus companheiros partidários e entidades internacionais, sustenta que existem alternativas, que este não é o único caminho como o senhor defende e no qual insensível e insensatamente continua a persistir.
O caminho que o senhor tem escolhido, repito tem escolhido, não promove equidade, os indicadores disponíveis nacionais e internacionais comprovam-no.
A maioria das pessoas não entende como as suas políticas, escolhidas por si, insisto, que deveriam, o senhor afirmou-o, servir para atenuar o desemprego e promover crescimento, antes pelo contrário, repercutem-se negativamente no consumo e aumentam a recessão e, portanto, o desemprego.
O senhor esforça-se por nos passar confiança e optimismo e promessas de “amanhãs que cantam” para utilizar uma expressão conhecida. Já o fez em campanha eleitoral, já o fez em 2011, já se enganou, ou o enganaram, demasiadas vezes para que acreditemos.
Compreendo que os seus amigos, não aqueles que assim trata na mensagem do Facebook, mas aqueles, poucos, a quem, na verdade as medidas de que o senhor é responsável, insisto, é responsável, servem, entendam muito bem e aceitem os sacrifícios que senhor impõe, mas não é para eles que o senhor deveria governar.
Na verdade, Pedro, sou pai, vou ser avô, queria e preciso, precisamos todos, de acreditar que melhores Natais estarão para vir.
Lamentavelmente, o senhor, meu caro Pedro, não me ajuda a acreditar. 

PARTAM, O VOSSO FUTURO NÃO MORA AQUI

Cavaco Silva, na constituição pública do Conselho da Diáspora Portuguesa, afirmou acreditar nas potencialidades das comunidades portuguesas como “agentes” do “reforço da reputação, do prestígio e credibilidade de Portugal”. Também acredito e acho mesmo que deste ponto de vista ainda bem que não é boa parte da classe política a emigrar, senão reputação, prestígio, credibilidade … já eram.
Também hoje o I refere com chamada a 1ª página que desde 1998 mais de um milhão de portugueses emigrou sendo que em 2011 se estima, fonte da Secretaria de Estado das Comunidades, que mais de 100 000 portugueses tenham partido, esperando-se que em 2012 o número suba. Acresce que a par da Irlanda, somos o país de onde sai gente com maior qualificação o que é ainda mais preocupante.
Somos um país de emigrantes de há séculos pelo que este movimento, só por si, não será de estranhar. No entanto, creio que é preocupante constatarmos que durante muitos anos a emigração se realizava na busca de melhores condições de vida, a agora a emigração realiza-se à procura da própria vida, muita gente, sobretudo jovens não tem condições de vida, tem nada e parte à procura, não de melhor, mas de qualquer coisa.
Este vazio que aqui se sente é angustiante, sobretudo para quem está começar, se sente qualificado e com o desejo de construção de um projecto de vida viável e bem sucedido.
Alguns inquéritos junto de estudantes universitários mostram como muitos, a maioria, admite emigrar em busca de melhores condições de realização pessoal e profissional apesar de muitos afirmarem que pretendem voltar.
Lembramo-nos ainda da intervenção do Ministro Miguel Relvas, que certamente não precisaria de emigrar, tem o seu futuro garantido dentro de portas por efeitos do alpinismo partidário, ao afirmar, dirigindo-se a jovens qualificados, "ide procurar fora de portas o vosso futuro”.
Parece-me relativamente claro que a questão central nesta matéria não é o movimento que desde há muito os portugueses realizam de procurar trabalho fora do país, trata-se também da construção de um projecto de vida auto-determinado. Sabemos, aliás, que é desejável em diferentes perspectivas, que estes fluxos se realizem.
O que me parece fortemente significativo é o que representa de descrença de tanta gente, de que seja possível desenvolver um projecto de vida viável e com potencial de realização pessoal e profissional no nosso país.
Nesto contexto, como tenho referido, as declarações dos responsáveis políticos assumem particular importância. Não podem assumir que a solução para os problemas das pessoas, por exemplo o desemprego, é abandonar o país, particularmente um país, Portugal, com sérias necessidades de mão-de-obra qualificada, um dos mais baixos níveis de qualificação da Europa e um dos grandes obstáculos ao nosso desenvolvimento, não pode acenar com a “sugestão” de emigração exactamente para a franja mais qualificada da nossa população. Trata-se uma visão absolutamente inaceitável.
Será previsível que muitos destes emigrantes se juntem a outros velhos emigrantes e prestigiem Portugal como afirma Cavaco Silva. Beneficiamos todos com isso.
No entanto, muita desta gente parte com amargura de uma terra, a sua, onde sentem que não cabem e o futuro … é um sonho impossível.

SÓ AS CRIANÇAS ADOPTADAS PODEM SER FELIZES

No Hospital Amadora-Sintra, uma das maiores maternidades do país, durante 2012 ficaram “retidos” 25 bebés por ordem dos tribunais e por “motivos sociais” que decorrem das condições de vida das suas famílias.
Os motivos para tal situação serão múltiplos, incluindo o efeito devastador do conjunto de dificuldades que muitas famílias enfrentam.
Estas crianças começam desde a nascença a sofrer de rejeição ou incapacidade de acolhimento familiar, um enorme factor de risco para uma vida que está apenas a iniciar-se. Esperemos que encontrem uma outra estrada que as leve ao futuro.
São geradas em famílias que não sabem, não querem ou não podem adoptá-las. Sim adoptá-las. Quando penso nestas situações, lembro-me sempre de uma expressão que ouvi já há algum tempo a Laborinho Lúcio num dos encontros que tenho tido o privilégio de manter com ele. Afirma então Laborinho Lúcio que "só as crianças adoptadas são felizes, felizmente a maioria das crianças são adoptadas pelos seus pais”. Na verdade, muitas crianças não chegam a ser adoptadas pelos seus pais, crescem sós e abandonadas.
Estas não chegam a poder ser adoptadas pelos seus pais.
No entanto, por estranho que possa parecer, existe uma outra realidade, menos perceptível em termos globais, mas conhecida por aqueles que lidam de mais perto com as crianças e que remete para a quantidade enorme de situações de crianças abandonadas e rejeitadas dentro das famílias, algumas em famílias com um funcionamento aparentemente normal.
Pode parecer surpreendente esta abordagem, mas muitas crianças vivem em famílias, diferentes tipos de família, que, por variadíssimas razões, as não desejam, as não amam, apenas as toleram, cuidam, pior ou melhor, sobretudo nos aspectos "logísticos". Em alguns casos, são mesmo crianças a que "não falta nada", dizem-nos. Na verdade falta-lhes o essencial, o abrigo de uma família.
Existem mais crianças a viver narrativas desta natureza, abandonadas e ou rejeitadas dentro da família, do que se pode imaginar.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

GOSTAVA DE TER OUVIDO UMA MENSAGEM DE NATAL

O Primeiro-ministro entregou-nos, conforme a tradição, a sua homilia de Natal. Também conforme a tradição, o Primeiro-ministro falou de um país que nós não conhecemos, um país onde "todos foram e continuarão a ser chamados a participar" no "esforço nacional" e em que "todos beneficiarão das novas oportunidades". Convenhamos que um milhão de desempregados e quase três milhões de pessoas em risco de pobreza participam de forma particularmente empenhada no esforço nacional. Também é fácil perceber os mais imediatos beneficiados com as novas oportunidades, basta atentar no andamento dos negócios da relvatização, perdão, da privatização em que se vai vendendo o país.
Este Natal foi o Natal mais frio de que me lembro, aliás, estamos no fim do ano mais frio de que me lembro. Na sequência do que já tinha vindo a acontecer em anos anteriores abateu-se sobre a grande maioria de nós um inferno que nos deixa perplexos, perdidos de desesperança, numa espécie de anestesia que alguns, erradamente, confundem com resignação.
Chegamos ao fim de 2012 com cerca de um milhão de desempregados, tragédia que afecta mais de um terço dos nossos jovens e muitos, muitos milhares de famílias. Acresce que mais de metade dos desempregados não auferem subsídio e aguardam ansiosamente pelas novas oportunidades, expressão mal escolhida, anunciadas por Passos Coelho.
Acabamos o ano com muitas dezenas de milhares de pequenas empresas falidas cujo "participação" no "esforço nacional" teve consequências nos números do desemprego.
Durante o ano de 2012 fomos assistindo a uma devastadora política de austeridade e corte nos rendimentos que produz pobreza, mesmo entre a população que mantém o luxo de um emprego e que claro vai beneficiar das novas oportunidades de continuar a pagar impostos para além do sustentável.
Fomos ouvindo durante o ano sucessivos alertas de todos os quadrantes sociais e políticos sobre as consequências devastadoras das opções políticas de que nos querem convencer não haver alternativas. Existem alternativas, uma política que produz miséria e exclusão tem que ter alternativas. A mensagem de Natal do Primeiro-ministro evidencia, para não variar, a persistência insensível e insensata neste caminho.
O ano foi também trazendo gravíssimas necessidades de milhares de pessoas que batem desesperadamente à porta das instituições de solidariedade social, já sem o pudor da "pobreza envergonhada", na busca do aconchego de uma refeição ou de um tecto e ao mesmo tempo aos discursos de importância das instituições para responder a todos os apelos. Foi justamente esta gente que foi chamada a participar no "esforço nacional" e com um preço altíssimo.
O ano de 2012 trouxe-nos a inaceitável situação dos miúdos, milhares de miúdos que chegam à escola com fome. Esta gente mais pequena também foi chamada a participar no esforço nacional numa duríssima aprendizagem de cidadania.
Estes tempos trouxeram para a agenda, pelos piores motivos, as discussões sobre caridade, solidariedade social, assistência, estado social, direitos humanos. Uma discussão cheia de equívocos e de gente responsável a afirmar e a promover o inaceitável e demitida do que se espera de quem governa.
Sucederam-se apelos, à doação, à solidariedade dos portugueses, a Segurança Social, o Governo, retoma e aumenta as cantinas sociais, estrutura um programa para proporcionar pequeno-almoço e refeições nas escolas aos milhares de crianças sinalizadas como "carenciadas" e apela às empresas para que alimentem estes miúdos. Simultaneamente, vai promovendo cortes e anunciando novas medidas de diminuição nos apoios sociais que podem minimizar o drama de muitas famílias.
Enfim, tudo circunstâncias que transformam, como disse, este Natal no Natal mais frio dos últimos anos.
Uma última nota, gostava de ter ouvido uma mensagem de Natal por parte do Primeiro-ministro.

O GOVERNO, A IGREJA E OS MOMENTOS

D. Manuel Martins, bispo emérito de Setúbal, afirma em entrevista ao JN que o Governo não está à altura do momento, considerando também que a Igreja está "atrasada" e não presta atenção às "transformações do mundo".
Na verdade, D. Manuel Martins tem razão, o Governo, por não estar à altura do momento tem vindo empenhadamente a arrasá-lo, já quase não há momento. Tudo ficará da mesma altura, o Governo e o momento.
Quanto à posição da Igreja que D. Manuel Martins também considera estar atrasada face aos momentos, recordo-me do conhecido enunciado "no entanto ela move-se". Ao que a história ou a lenda rezam, no séc. XVII Galileu Galilei reagiu com esta mítica afirmação à sua condenação no Tribunal do Santo Ofício pela defesa do modelo heliocêntrico, a Terra move-se em volta do Sol.
Do meu ponto de vista, a reconhecida perda da influência da Igreja Católica, sobretudo nos países mais desenvolvidos, deve-se também ao seu imobilismo, à forma conservadora como não reage às óbvias mudanças sociais, políticas, económicas e culturais sustentando um progressivo afastamento da vida das pessoas, como reconhece D. Manuel Martins.
Um dia, talvez a instituição Igreja aceite e perceba a necessidade de mudança no discurso sobre a anti-concepção, o casamento, o celibato dos padres, a abertura do sacerdócio às mulheres, a ostentação visível em parte da hierarquia da igreja, etc.
Eppur si muove.

AS FRAUDES LEGAIS

O Tribunal de Contas veio ao fim de sete anos questionar a legalidade da inaceitável continuidade das subvenções vitalícias e dos subsídios de reintegração pagos aos ex-deputados da Assembleia Legislativa da Madeira quando tal regalia foi abolida há sete anos e respeitada nos Açores e no Parlamento da República.
Se isto acontecesse num qualquer país a sério seria de espantar, quer a posição tardia do Tribunal de Contas, quer a delinquente situação decida e mantida pela rapaziada que segue o inimputável e grotesco Alberto João que acumula prebendas e regalias numa comunidade mergulhada em dificuldades e pobreza.
Num país a sério também seria estranho que sucessivos governos e a Presidência da República fossem assumindo por negligência ou calculismo político próprios da partidocracia, uma conivência criminosa com estes desmandos.
Eu sei, a situação é velha, que a rapaziada que nos parasita a todos se encosta a umas interpretações manhosas das leis que eles próprios fazem ou encomendam quando lhes falta o engenho e arte para tal tarefa. Também não estranho, o povo costuma dizer que "quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte". E arte para estas coisas sobra a esta gente, são mesmo uns verdadeiros artistas.
Como é evidente, ninguém minimamente conhecedor da realidade esperaria outro funcionamento, estamos demasiado habituados a que a esperteza e a manha que alimenta relvismos, felgueirismos, isaltinismos, loureirismos ou jardinismos desta natureza permitam que sejam realizados sempre no estrito "cumprimento da lei". Tornam-se no que eu costumo designar por fraudes legais.
O que incomoda é justamente a convicção de que parece impossível contrariar esta torrente que consegue levar o despudor, a arrogância e a delinquência ética a patamares de excelência que julgávamos já terem sido ter atingido por outras correntes do pensamento e comportamento políticos mais recentes ou mais antigos.
Na verdade, preocupa-me aquilo a que habitualmente chamo a pegada ética, isso mesmo, pegada ética. Os comportamentos e valores que genericamente mobilizamos têm, obviamente, uma consequência na qualidade ética da nossa vida que não é despicienda. Os maus-tratos e negligência que dedicamos aos princípios éticos mais substantivos provocam um empobrecimento e degradação do ambiente e da qualidade de vida das quais cada vez parece mais difícil recuperar.
Mas talvez esta feitoria já não seja mesmo um país a sério.

DE PIN EM PIN ATE À DESTRUIÇÃO FINAL

Depois de termos o litoral algarvio praticamente destruído e betonizado em nome de uma massificação turística de má qualidade que passou como um rolo compressor por boa parte da costa, e que actualmente tem milhares de camas sem procura, parece ter chegado a vez de destruir a parte do Algarve que se mantinha bonita e íntegra, o barrocal e a serra.
Apesar de todas as questões e reservas de natureza ambiental, da sua integração na Rede Natura, o Governo atribui o estatuto de Projecto de Interesse Nacional a uma zona situada no concelho de Loulé com a óbvia concordância do município em nome do desenvolvimento, justificação suficiente para boa parte da destruição realizada em Portugal nas últimas décadas. Como também seria previsível, estamos em Portugal, os interesses envolvidos no Projecto são estrangeiros, no caso árabes do Kwait ,onde há semanas o incansável Dr. Portas esteve a defender o interesse nacional.
Eu sei, não tenho nenhuma visão fundamentalista, do peso económico que a actividade turística tem em Portugal e de como deve ser cuidada essa importância. No entanto, creio que corremos o sério risco de como diz o povo "matar a galinha dos ovos de ouro" por mal cuidarmos da qualidade da oferta criada e da destruição de uma parte do país com custos que a prazo podem revelar-se pesados.
Apesar de ainda há pouco tempo o Algarve  ter sido considerado o melhor destino europeu para praia e Portugal o melhor destino para golfe, este caminho deixa uma sensação de amargura quando penso na vida actual da maioria dos portugueses e no que parece ser o seu futuro. Lembrei-me de muitos outros "destinos" a que muitos de nós se deslocam e encontram "ilhas" de bem-estar e luxo cercadas por um oceano de pobreza, de que se livram a elite do costume e a meia dúzia que subservientemente serve os "turistas" e torna a sua estadia "fantástica", numa terra "fantástica" que, nas mais das vezes, nem visitam, não saindo dos "resorts" "fantásticos para não "ver misérias". Ah, claro, também achamos que as pessoas desses "destinos" são "fantásticas", mesmo simpáticas.
Talvez seja esse o nosso destino, como alguns defendem, a Flórida da Europa, "destino" muito interessante para visitar, mas pouco atractivo para viver.
Com um lema SPA – Portugal (Simpatia, Profissionalismo,Atenção) ninguém nos bateria como destino turístico e não só no ALL Garve. Vejam. Com a introdução do inglês no 1º ciclo extraordinariamente bem-sucedida, a comunicação com estrangeiros já não é um obstáculo. Com o sucesso das Novas Oportunidades, os portugueses profissionalizaram-se e o tempo do pano às costas e um palito na boca nos serviços de restauração acabou. Tudo quanto é paisagem interessante passa a PIN (Projecto de Interesse Nacional) e, consequentemente, transformam-se em resorts fantásticos e campos de golfe fantásticos em cada distrito, concelho ou freguesia ou bocadinho de praia ou campo ainda não destruídos.
Ao mesmo tempo, cada turista passa, ele próprio, a ser também um PIN (Projecto de Interesse Nacional) daí o ser tratado com Atenção. Temos pobres e zonas degradadas que poderão dar um ar de exotismo permitindo excelentes fotografias em safaris especializados, um nicho de mercado com muitos clientes que depois mostram aos amigos as fotografias que tiraram aos indígenas, até com algum risco, convém dizer para impressionar. Temos o Special One, o CR7 para além do fado e do vinho do Porto que espelham a nossa qualidade.
Por fim, somos respeitadores e bem comportados com os estrangeiros, especialmente com os que cá metem dinheiro, e ainda temos uma polícia de costumes a ASAE de uma eficácia inultrapassável que zelará pela qualidade de vida de turistas e empregados, nós.
 
PS – Temos uns políticos assim para o fraquinho mas podemos prometer que não os deixamos incomodar os turistas, nós já estamos habituados. Pede-se à ASAE uma ajuda.

UM CONTO DE NATAL PEQUENINO E UM BOCADO SEM JEITO, POR ASSIM DIZER

De acordo com a tradição naquela família, ao fim da noite de Natal chegava o momento mais aguardado, a abertura dos presentes que estavam empilhados em grande número ao pé da árvore de Natal.
Como também era habitual e devido à impaciência da espera, os mais novos eram sempre os primeiros.
Assim, o Francisco, com a autoridade dos seus oito anos, começou ansiosamente a desembrulhar os muitos presentes que lhe estavam destinados. A cada um a euforia aumentava. Ficou delirante com o telemóvel e a consola nova que os pais lhe ofereceram e não fosse a vontade de conhecer o resto das prendas, já não largaria os novos companheiros o resto da noite.
Recebeu ainda um portátil mais pequeno e mais recente do que já tinha, uma série de videojogos já adaptados à nova consola e uns fones de última geração.
O Francisco estava verdadeiramente nas nuvens ou, por assim dizer, completamente submerso pelo espírito natalício.
Por fim, apenas restava por abrir o presente do Avô Velho, um embrulho pequeno e discreto. O Francisco, com a agitação ao alto, abriu-o e mostrou um caderninho de capa dura e bege que tinha escrito na capa com a letra certinha e redonda do Avô Velho "As minhas histórias". O Francisco deitou-lhe um olhar rápido e pousou-o num canto onde ficou o resto da noite.
Quando toda a gente se foi deitar o Avô Velho ficou mais um pouco na sala, releu duas ou três das suas histórias e percebeu que já não era deste mundo.
Devagarinho, para não acordar ninguém, enfiou-se pela chaminé e partiu.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O NATAL JÁ NÃO É O QUE ERA

Estava o Burro tranquilamente a tomar uma bica numa esplanada ao solzinho da tarde, quando entrou a Vaca com quem já tinha trabalhado várias épocas. Depois dos cumprimentos da praxe, o Burro lamentou-se.
Nunca me tinha acontecido tal, no desemprego nesta altura. Como sabes, já trabalhámos juntos, a questão habitual era escolher bem entre as muitas ofertas. A tradição já não é o que era. Ninguém liga a presépios. Para dar ainda mais cabo do negócio parece que o Papa disse qualquer coisa sobre haver animais nos presépios, do que havia de se lembrar. As poucas famílias que os fazem optam por produtos contrafeitos vindos lá da China. Onde é que já se viu? Burros em plástico? Dão cabo das tradições e a ASAE a isso não liga, tantos Burros portugueses com capacidade para aguentarem três árduas semanas de companhia ao Menino Jesus e vamos para o desemprego. O que vale é que algumas Câmaras ainda fazem uns presépios, mas também não adianta muito, empregam os Burros ligados ao partido que manda na Câmara, sem critérios transparentes de mérito na selecção. É Vaca, isto está mesmo mal. E tu, também não devias estar aqui nesta altura. Também te está a correr mal a vida?
Não me digas nada, Burro. Estou com os mesmos problemas que tu e, para piorar as coisas, desde que foi a crise das minhas primas loucas, nunca mais confiaram em nós como antigamente. Para os poucos empregos que ainda vão aparecendo exigem atestado veterinário de sanidade, que é caro e é uma burocracia para tratar e, na volta, não nos dão o emprego. E ainda vai ficar pior, ouvi dizer que iam proibir os presépios por causa do Menino Jesus. Dizem que obrigar o miúdo a ficar três semanas nas palhinhas, mal aquecido, é maus-tratos e exploração de mão-de-obra infantil. Então é que vai ficar mesmo mal para a gente, não sei mesmo o que fazer, só sei trabalhar em presépios. Na volta ainda vou ter que pedir a reforma antecipada ou um subsídio de desemprego de longa duração. E tu, Burro?
Se as coisas continuarem assim, vou inscrever-me no Centro de Emprego, espero que me chamem para formação profissional para me certificarem em qualquer coisa, recebo um computador, como fizeram a um primo meu quando havia  o Novas Oportunidades e assim, mais qualificado talvez consiga qualquer coisa. Quem sabe, com uma cunha do Menino Jesus até poderia entrar para um banco para brincar com os filhos dos administradores. Era um bom emprego. Vaca, achas que consigo?
Deixa-te de sonhos Burro, o Natal já não é o que era.

REFORMADOS ... MAS POUCO

A condição de reformado, a idade de passagem à reforma e os rendimentos dos reformados entraram na agenda por variadíssimas razões, desde a sustentabilidade dos sistemas de segurança social, à demagogia insensata e insensível do Primeiro-ministro sobre a relação entre descontos e reformas ou a mais antiga e disparatada referência de Cavaco Silva ao seu insuficiente rendimento de reformado, que, aliás, o fez, inaceitavelmente, preferir o rendimento das suas reformas ao miserável vencimento de Presidente.
No Público de hoje aparece um excelente trabalho com base num Relatório de uma agência europeia mostrando que os preguiçosos portugueses são os que mais trabalham depois dos 65 anos em toda a União Europeia. Tal situação decorre do desejo de se manterem activos, contrariando a tese da preguiça, mas, sobretudo, pela insuficiência da maioria das reformas, perda de rendimentos provocada pela política em curso, ou seja, continuam a lutar pela sobrevivência. Estava a escrever isto e a lembrar-me do Velho Zé Marrafa lá do Meu Alentejo que começou aos nove anos a guardar porcos, já está reformado, mas precisa de continuar na lida seis dias por semana e vai nos 72.
Recordo que em 2009, segundo dados da Segurança Social, existiriam em Portugal cerca de 1,8 milhões de pobres, hoje estão bem acima dos dois milhões, ou seja, com rendimento inferior a 360 €, o limiar de pobreza, e, curiosamente, o mesmo número de pensionistas. Relativamente a estes, o valor médio das pensões era de 385 € e só Lisboa e Setúbal apresentavam valores médios acima do salário mínimo nacional, 450 €, em 2009. A assimetria era fortemente evidenciada pelo facto de a pensão média mais a baixa, a de Bragança, ser de 272 € e a mais alta, a de Lisboa, ser de 504 €. Só quatro concelhos, Lisboa, Setúbal, Porto e Aveiro apresentam valores médios das pensões acima do limiar de pobreza.
A situação actual ter-se-á obviamente agravado para muitos milhares de pessoas sendo que aqueles, poucos, que não viram as pensões ou reformas alteradas as têm com valores baixíssimos e insuficientes para os retirar da situação de pobreza. Trata-se, ao que parece, do início da refundação do estado social.
Considerando todo este cenário e para que conste e antes que a situação se coloque, declaro-me indisponível para me reformar, quero aceder ao estatuto de irreformável. Por várias razões, das quais relevam.
Se os salários já não são muito elevados as reformas são ainda mais baixas e anunciam-se cortes nos seus valores.
Não gosto de jogar sueca e dominó e sou alérgico ao pólen, donde não posso passar o tempo no jardim com outros seniores a jogar debaixo da sombra.
O valor das reformas não permite o acesso a bens de cultura, livros, discos e cinema, por exemplo, que me permitissem ocupar o tempo da reforma. Depressa me deprimiria.
Os miúdos estarão rapidamente a viver 24 horas dentro da escola pelo que já nem tomar conta dos netos é uma actividade que espere pelos reformados.
Provavelmente apelando à responsabilidade social dos reformados, não tardará um apelo a um movimento de voluntariado no sentido de continuarem a trabalhar, mas com o actual salário substituído pela reforma, bem mais baixa, é claro. Gosto muito do que faço, mas quero fazê-lo profissionalmente e não com um estatuto de voluntário com uma pensão de reforma debaixo do braço.
As comunidades, de uma forma geral, não estão preparadas com equipamentos para seniores e os melhores são inacessíveis. O equipamento social mais utilizado pelos seniores é a sala de espera do Centro de Saúde. Não me apetece passar nestes espaços parte substantiva dos meus últimos dias.
Assim, solicito que, enquanto conseguir, me deixem continuar a trabalhar, não me reformem.

domingo, 23 de dezembro de 2012

O PAI NATAL

Aqui há dias, numa roda de família falava-se de como nos tempos de mais miúdos acreditávamos, e até que idade, no Pai Natal. Aliás, faz parte da agenda desta época o surgimento de algumas peças na comunicação social sobre as crenças das crianças no Pai Natal.
Nesses trabalhos é frequente ouvirmos as crianças afirmar convictamente a sua crença no Pai Natal. É verdade, os miúdos acreditam no Pai Natal. Eu sei porque já fui Pai Natal. Nunca percebi muito bem porquê, mas desempenhei várias vezes a função, se calhar a escolha deveu-se à proeminente mochila que carrego à frente e às barbas brancas que de há muito me acompanham.
Não pensem que é uma tarefa fácil, não é não senhor. Passar umas horas dentro de um fato quentíssimo com umas barbas ainda mais quentes que insistem em deixar a boca cheia de pêlos não é muito simpático. Mas os miúdos acreditam no Pai Natal e isso ajuda a aliviar o desconforto. Felizmente ainda não tinha sido inventada a moda do Pai Natal trepador de varandas, então desistiria mesmo.
Numa das vezes, há já muitos anos, cena de que ainda possuo uma memória perfeita, lembro-me do ar aflito e preocupado de um gaiato que insistiu o tempo todo junto de mim para que não me esquecesse do que queria como presente, Moto Ratos, umas personagens de banda desenhada em voga na altura. E o miúdo, sempre que me lembrava os Moto Ratos, explicava-me com os olhos muito abertos como se ia para casa dele para eu não me enganar no caminho. Confirmei depois que ele recebeu os desejados Moto Ratos, claro, o Pai Natal cumpre.
Deve ser bom acreditar no Pai Natal. Aliás, deve ser bom acreditar.
Eu já não acredito.

FAMÍLIA PRECISA-SE. URGENTE

No Público é abordada a falta de eficácia do dispositivo designado por apadrinhamento civil pois desde Dezembro de 2010, quando foi definido, apenas se registaram cinco casos. A medida do apadrinhamento civil tem como destinatárias crianças que não tendo um projecto viável de adopção também não têm condições de vivência na sua família biológica. Os casos foram residuais o que surpreende ainda assim alguns especialistas que explicam a pouca adesão a este modelo pela falta de informação sobre o mesmo, incluindo profissionais que desempenham funções nesta área. Existem várias dezenas de crianças que estão institucionalizadas e que reúnem condições para o apadrinhamento civil.
A este propósito, recordo que um trabalho, creio que de Março, sobre esta matéria colocava uma outra questão que poderia também ajudar a explicar a situação.
Desde que a possibilidade se instituiu, levantou-se a questão de que o facto da lei não prever incentivos às famílias que apadrinhassem crianças institucionalizadas poderia suscitar fraca adesão. Prevaleceu o entendimento de que não seria desejável "pagar" algo que, entende-se, será da natureza dos afectos e dos valores.
Na verdade a questão é complexa. É certo que já existem famílias de acolhimento que recebem temporariamente crianças durante processos de "reabilitação" das famílias biológicas, verificando-se situações em que o acolhimento dura até ao limite legal, 21 anos. Estas famílias recebem um montante pecuniário pelo "serviço" prestado às crianças.
Embora entenda as posições que recusam incentivos pecuniários às famílias, penso que seria de considerar a sua existência sendo que os "padrinhos" poderiam prescindir desses incentivos.
Creio que importa promover a desinstitucionalização das crianças por múltiplas e bem diversificadas razões. Como exemplo, um estudo recente da Universidade do Minho aponta no sentido de que as crianças institucionalizadas revelam, sem surpresa, mais dificuldade em estabelecer laços afectivos sólidos com os seus cuidadores nas instituições. Esta dificuldade pode implicar alguns riscos no desenvolvimento dos miúdos e no seu comportamento.
A conclusão não questiona, evidentemente, a competência dos técnicos cuidadores das instituições, mas as próprias condições de vida institucional e aponta no sentido da adopção ou outros dispositivos como forma de minimizar estes riscos e facilitar os importantes processos de vinculação afectiva dos miúdos.
Apesar de alguma evolução, ainda temos um número de crianças institucionalizadas, muitas das quais sem projectos de vida viáveis pese o empenho dos técnicos. Neste universo, acresce a dificuldade enorme de algumas crianças em ser adoptadas devido a situações como doença, deficiência, existência de irmãos ou uma idade já elevada. Assim, muitas crianças estarão mesmo condenadas a não ter uma família.
Neste cenário, são altamente desejáveis diferentes modalidades que permitam que crianças, sem possibilidade de vivência nas suas famílias biológicas e sem condições de adopção, cresçam em contextos de natureza familiar mesmo que para tal se fosse necessário considerar a existência de incentivos de natureza económica pois, como refere uma técnica do Centro de Direito da Família e do Observatório Permanente da Adopção, "Se uma criança for desinstitucionalizada à custa do apadrinhamento civil já terá valido a pena".
Por outro lado, em muitas circunstâncias, citando Betelheim, "L'amour ne suffit pas".

GASTAR MAL, TIRAR A MUITOS E FINGIR QUE SE AJUDA QUEM PRECISA

Estamos em cima do Natal, o Natal mais frio de que me lembro, aliás, estamos no fim do ano mais frio de que me lembro.
Na sequência do já tinha vindo a acontecer em anos anteriores abateu-se sobre a grande maioria de nós um inferno que nos deixa perplexos, perdidos de desesperança, numa espécie de anestesia que alguns, erradamente, confundem com resignação.
Chegamos ao fim de 2012 com cerca de um milhão de desempregados, tragédia que afecta mais de um terço dos nossos jovens e muitos, muitos milhares de famílias. Acresce que mais de metade dos desempregados não auferem subsídio.
Acabamos o ano com muitas dezenas de milhares de pequenas empresas falidas e com as trágicas consequências nos números do desemprego.
Durante o ano de 2012 fomos assistindo a uma devastadora política de austeridade e corte nos rendimentos que produz pobreza, mesmo entre a população que mantém o luxo de um emprego.
Fomos ouvindo durante o ano sucessivos alertas de todos os quadrantes sociais e políticos sobre as consequências devastadoras das opções políticas de que nos querem convencer não haver alternativas. Existem alternativas, uma política que produz miséria e exclusão tem que ter alternativas.
O ano foi também trazendo gravíssimas necessidades de milhares de pessoas que batem desesperadamente à porta das instituições de solidariedade social, já sem o pudor da "pobreza envergonhada", na busca do aconchego de uma refeição ou de um tecto e ao mesmo tempo aos discursos de importância das instituições para responder a todos os apelos.
O ano de 2012 trouxe-nos a inaceitável situação dos miúdos, milhares de miúdos que chegam à escola com fome.
Estes tempos trouxeram para a agenda, pelos piores motivos, as discussões sobre caridade, solidariedade social, assistência, estado social, direitos humanos. Uma discussão cheia de equívocos e de gente responsável a afirmar e a promover o inaceitável e demitida do que se espera de quem governa.
Sucederam-se apelos, à doação, à solidariedade dos portugueses, a Segurança Social, o Governo, retoma e aumenta as cantinas sociais, estrutura um programa para proporcionar pequeno-almoço e refeições nas escolas aos milhares de crianças sinalizadas como "carenciadas" e apela às empresas para que alimentem estes miúdos, sucedendo-se os casos de miúdos a passar mal. Simultaneamente, vai provendo cortes e anunciando nova medidas de diminuição nos apoios sociais que podem minimizar o drama de muitas famílias.
Enfim, tudo circunstâncias que transformam, como disse, este Natal no Natal mais frio dos últimos anos.
Dito isto, e porque se torna necessário, sempre e apesar de tudo, alimentar o espírito natalício, podemos ainda ir fazer umas compras de última hora.

sábado, 22 de dezembro de 2012

VÍDEOJOGOS E OUTROS ECRÃS

Como vai sendo frequente, cada vez que ocorre uma tragédia que nos deixa perplexos como a do mais recente episódio nua escola primária americana procuram-se razões para tal monstruosidade. No caso particular dos EUA as atenções voltam-se para a sua peculiar cultura sobre o uso e facilidade no acesso a armas e também, como noutras paragens perante episódios da mesma natureza para o papel potencial que os vídeojogos podem ter nestes comportamentos ultraviolentos de algumas pessoas, sobretudo jovens, que, na verdade, também com regularidade, evidenciam ser fortes consumidores de tal produto. Como também é habitual surgem posições com sinal contrário.
Uns opinam que os estudos sugerem riscos no uso excessivo destes materiais, recordo uma conferência há algum tempo realizada no ISCTE por Bruce D. Bartholow. Por outro lado, alguns socorrem-se de estudos que não encontram nenhuma relação de causa efeito entre o consumo de vídeojogos violentos e o desencadear de comportamentos de extrema violência, sendo ainda que existe quem defenda, em abstracto, o potencial educativo dos vídeojogos. Sobre este último ponto recordo um Relatório de 2009 do Parlamento Europeu coordenado por Toine Manders em que se afirmava, curiosamente, que os resultados “contradizem muitos estudos que sublinham a dependência e a violência que os videojogos podem provocar nos mais pequenos, deixando alguns pais mais tranquilos” e, citando o próprio relatório, os vídeojogos estimulam “a aprendizagem de factos e habilidades como a reflexão estratégica, a criatividade, a cooperação e o sentido de inovação”. O relatório também referia, no entanto, que alguns vídeojogos podem não ser apropriados.
Julgo que se trata de uma matéria em que, por estranho que pareça, todos podem ter razão, ou seja, em muitas crianças, adolescentes ou adultos, comportamentos de enorme violência aparecem ligados ao consumo de vídeojogos violentos mas nem todos os miúdos adolescentes ou jovens que os consomem desenvolvem comportamentos de violência, daí a inexistência de uma relação de causa-efeito.
A questão, do meu ponto de vista, não é sobre se os videojogos fazem mal, é a falta de qualidade e os conteúdos altamente violentos e desadequados às crianças de muitos destes produtos que lhes estão acessíveis. Muitos de nós, especialistas ou não, inquietam-se com o tempo excessivo que muitas crianças e adolescentes passam sós, agarradas a um ecrã, numa espécie de teledependência pouco positiva. Esta preocupação não tem nada a ver com um entendimento definitivo de que os vídeojogos fazem mal. Existem excelentes vídeojogos que, naturalmente, serão úteis e positivos na vida dos miúdos.
Uma outra questão, é o espaço que estes produtos ocupam na vida dos miúdos. Segundo alguns estudos, perto de 50% das crianças até aos 15 anos terão computador ou televisor no quarto, além do telemóvel. Acontece que durante o período de sono e sem regulação familiar muitas crianças e adolescentes estarão diante de um ecrã, pc, tv ou telemóvel. Com é óbvio, este comportamento não pode deixar de implicar consequências nos comportamentos durante o dia, sonolência e distracção, ansiedade e, naturalmente, o risco de falta de rendimento escolar num quadro geral de pior qualidade de vida.
Comer faz bem às crianças, mas comer excessivamente e produtos de má qualidade, provoca sérios problemas de saúde. Que se eduque o consumo, sem se diabolizar ou exaltar disparatadamente o produto.
Estas matérias, a presença das novas tecnologias na vida dos mais novos, são problemas novos para muitos pais, eles próprios com níveis baixos de alfabetização informática. Considerando as implicações sérias na vida diária importa que se reflicta sobre a atenção e ajuda destinada aos pais para que a utilização imprescindível seja regulada e protectora da qualidade de vida das crianças e adolescentes.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A HISTÓRIA DO FRACASSADO

Era uma vez um homem chamado Fracassado. Desde que veio ao mundo nada lhe correu bem. Tudo o que se propunha realizar lhe saía mal.
A escola foi uma etapa mal sucedida na vida do Fracassado, não a terminou. Todas as relações pessoais que foi construindo ao longo da vida não acabaram bem.
As sucessivas experiências profissionais pelas quais passou foram, naturalmente, insucessos.
Finalmente e para que coerentemente vivesse, até na última viagem, a morte, falhou.
Conta hoje a bonita idade de duzentos e trinta e cinco anos e todos os dias nos cruzamos com o Fracassado numa qualquer esquina da nossa vida. Normalmente nem damos por isso, já não estamos habituados a reparar em Fracassados.

E PORQUE NÃO EXPERIMENTAR EM E-LEARNING. Seria ainda mais barato

A imprensa de hoje faz referência ao relatório de avaliação dos nossos governantes, perdão da Troika, que os feitores, perdão, os nossos governantes lhe apresentou relativamente à educação.
Registo que a saída de milhares de professores do sistema permitiu um resultado excelente na diminuição dos recursos humanos na administração pública e para mais nessa subclasse muito chata e desagradável, os professores, que passam a vida a protestar e são uma malandragem que não quer trabalhar.
Parece que o Relatório também insiste no cálculo dos custos por aluno no sistema público e no sistema privado. Também creio que é positivo porque as várias contas que têm sido feitas não agradam a todos e por isso é preciso insistir, martela-se, martela-se ali, um dia saberemos quanto custam os alunos. É importante pois, uma política contabilística, perdão, uma política educativa, deve assentar no rigor e o MEC tem dado múltiplas provas de como é especialista em metodologias rigorosas de que foi um excelente exemplo o processo de colocação de professores.
Também se refere no Relatório a já conhecida intenção de enviar 100 000 alunos para o germânico sistema dual de aprendizagem que se junta ao ensino vocacional para receber aqueles preguiçosos e incompetentes que não querem estudar e não atingem o domínio dos milhares de descritores previstos nas metas curriculares e que passarão a certificar o rigor e a excelência do nosso ensino. Parte dos custos desta via dos incompetentes, cerca de 40 % do seu programa de ensino, deveria, diz o MEC, ser suportada pelos nossos empresários que, dizem os nossos empresários, não poderão fazê-lo por falta de recursos.
Se mesmo assim ainda ficar algum aluno algumas dificuldades nas escolas vão montar-se umas turmas só para essa gente que atrapalha quem quer progredir.
Estamos pois no bom caminho para construirmos um sistema educativo bem mais tranquilo, criam-se condições para professores e alunos saírem da escola, ficando só os mesmo bons e tudo será um paraíso.
Criado este cenário, a tranquilidade de uma escola só com os melhores alunos poderemos ainda dar o salto final para a verdadeira economia de custos e a cereja em cima do bolo da política contabilística, perdão, da política educativa, montar um sistema de e-learning para o qual bastaria meia dúzia de professores por área disciplinar, mais uns mediadores por escola, poucos, que os alunos são bons, e teríamos o sistema perfeito, certamente eficaz, certamente mais barato, certamente mais tranquilo, ...
Agora reparo que estas notas bizarras estão completamente fora do espírito natalício. Desculpem, fico por aqui.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

AS METAS CURRICULARES. Parte da solução ou parte do problema

A propósito do recente despacho do MEC sobre o calendário de operacionalização das metas curriculares, a Associação dos Professores de Matemática vem afirmar que as metas curriculares não só “contrariam substancialmente o programa de Matemática do ensino básico”, em vigor desde 2010 como implicam  “desvalorização de capacidades de exigência cognitiva mais elevada, como a compreensão e a aplicação de conhecimentos e a resolução de problemas”, privilegiando “a memorização dos factos e procedimentos”. Afirma ainda que representam um retrocesso no ensino comprometendo os resultados positivos que os últimos dados dos estudos comparativos internacionais demonstraram.
Ainda sobre este tema, relembro que também os autores do Programa de Matemática expressaram a sua posição crítica, assim como a Sociedade Portuguesa de Investigação em Educação Matemática referiu a desactualização das metas curriculares estabelecidas e criticou o facto de se substituir as metas de aprendizagem em fase de experimentação sem o óbvio processo de avaliação.
Como já referi, não tenho conhecimentos para analisar a bondade de argumentação sobre os conteúdos das metas, mas, como já fiz, retomo algumas notas de natureza mais genérica.
As metas curriculares podem funcionar como uma ferramenta orientadora e muito útil para o trabalho de alunos e professores. Para que tal aconteça, para além do seu ajustamento aos programas em vigor, importa que, lembrando João dos Santos, sejam de simples utilização e operacionalização.
Vejamos o exemplo do 1º ciclo e apenas Matemática.
No que respeita à Matemática são definidos 3 domínios que se desdobram como segue. No 1º ano, em 8 sub-domínios, 13 objectivos e 62 descritores, no 2º ano em 11 sub-domínios, 22 objectivos e 82 descritores, no 3º ano em 11 sub-domínios, 22 objectivos e 98 descritores e no 4º ano em 6 sub-domínios, 15 objectivos e 81 descritores o que em síntese corresponde a 72 objectivos e 323 descritores para Matemática do 1º ciclo.
Se juntássemos Português teríamos um total de 177 objectivos e 703 descritores. Por anos, temos: no 1º ano 33 objectivos e 143 descritores; no 2º, 47 objectivos e 168 descritores; no 3º, 51 objectivos e 202 descritores e no 4º, 46 objectivos e 190 descritores. É obra, uff.
Por outro lado, como também já escrevi, a lógica de elaboração das metas curriculares remete para uma lógica de ano de escolaridade e não de ciclo como prevê a Lei de Bases, ou seja os objectivos são definidos para o ciclo e não para o ano, aliás, os exames, tão caros ao MEC, acontecem exactamente no final de ciclo. A definição exaustiva de metas curriculares por ano de escolaridade faz emergir o risco de uma leitura fechada, relembro que serão obrigatórias a partir de 2013/2014.
Este entendimento pode levar a que o ensino se transforme na gestão de uma espécie de "check list" das metas estabelecidas implicando a impossibilidade de acomodar as diferenças, óbvias, entre os alunos, os seus ritmos de aprendizagem o que culminará, antecipa-se, com a realização de exames todos os anos. Aliás, neste contexto é preocupante a afirmação dos autores das metas curriculares, de que estas estabelecem o que os alunos deverão imprescindivelmente revelar, “exigindo da parte do professor o ensino formal de cada um dos desempenhos referidos nos descritores”.
Este cenário, aplicado a turmas do 1º ciclo, com 26 alunos (os agrupamentos e mega-agrupamentos assim o determinarão em muitos casos), algumas com alunos de diferentes anos de escolaridade, com ritmos e assimetrias nos seus percursos e competências, deixa-me uma imensidade de dúvidas sobre a aplicação das metas curriculares, tal como estão definidas, não esquecendo que ainda faltam as respeitantes às outras áreas do currículo.
Se por acaso algum ou alguns professores do 1ºciclo lerem estas notas, gostava de saber a sua apreciação.
Apesar do MEC acenar com a referência aos modelos anglo-saxónicos como selo de qualidade, o que está longe de acontecer, devo confessar que estou apreensivo tal como os autores do Programa de Matemática e a Sociedade Portuguesa de Investigação em Educação Matemática e a Associação dos Professores de Matemática.

O DRESSING CODE DO CLIENTE BANCÁRIO. Roupa de sucateiro não é permitida

Recorrentemente surgem notícias sobre as reacções ao estabelecimento em várias instituições de um dressing code para funcionários ou colaboradores. As discussões, nem sempre conclusivas, giram em torno do equilíbrio entre direitos individuais e a razoabilidade e contornos de códigos de conduta ou de vestuário.
No entanto, hoje tivemos conhecimento de uma notícia sobre dressing code inesperada. Uma dependência bancária do Santander Totta na região de Braga recusou atender ao balcão um empresário da sucata por não estar vestido conforme, tinha vindo do seu trabalho e presumo, estava vestido com a sua farda, a farda de sucateiro. É evidente que este conforme não se sabe a quê, mas sabe-se que o gerente veio ao exterior entregar o montante do levantamento que o “mal vestido” queria realizar e que o “mal vestido” apresentou queixa às autoridades.
Como é costume o Banco já informou que vai averiguar o zelo com que os responsáveis da agência protegeram a dimensão estética e ambiental do espaço de trabalho. Talvez este zelo devesse estar presente quando um “bem vestido” entra, não pela porta da agência, mas, por exemplo, pelo Conselho de Administração e depois saca uns milhões com toda a limpeza e respeitando o dressing code sem que nada aconteça. São conhecidos alguns exemplos.
Eu sei que este é um não assunto, que no meio do inferno em que transformámos e transformaram a nossa vida, um episódio desta natureza seria apenas mais um retrato da estupidez e da incompetência de alguma gente que por aí anda, nada de mais e que estranhássemos muito.
No entanto, também é preciso notar e sublinhar que a discricionariedade, arrogância e incompetência com que muitas vezes somos tratados em múltiplas circunstâncias, obrigam a que reflictamos sobre episódios desta natureza e tomemos atitudes como o sucateiro “mal vestido” de defesa dos direitos individuais, protestar.

AS QUEIXAS NO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE

A partir de ontem os utentes e profissionais do SNS têm acesso a um dispositivo informatizado que lhes permite a apresentação de reclamações ou denúncias relativos a incidentes ou problemas sentidos nos serviços, incluindo, presumo, o protesto contra os efeitos dos cortes orçamentais. Este procedimento pode ser realizado sob anonimato com o objectivo de minimizar o risco de represálias.
Numa pequena nota, a afirmação de que, por princípio, não simpatizo com a ideia do anonimato embora seja sensível à argumentação da represália pois, provavelmente, muitos de nós já passámos ou conhecemos situações em que a reclamação ou denúncia face a situações inaceitáveis é inibida pela falta de confiança na ausência de represálias.
Talvez seja coincidência, mas é curioso que o JN apresente hoje, com chamada a primeira página, o resultado de um estudo que revela um aumento de 327 % de queixas contra médicos entre 2001 e 2011, sendo que 21 % destes casos deram lugar a condenações.
Estes dados não devem significar, creio, tanto um aumento dos erros mas mais o aumento da decisão de apresentar queixa face ao erro ou à suspeita de erro. Provavelmente o dispositivo agora instalado fará aumentar o número de queixas envolvendo utentes e todos os profissionais, não só os médicos.
Por outro lado, gostava de recordar que segundo um estudo divulgado em Agosto, creio, e conforme o que é habitual no nosso sistema de justiça, os tribunais portugueses levam cerca de oito anos, em média, a decidir casos de "erros médicos", sendo que estes podem assumir diferentes contornos.
Esta morosidade, que não se estranha, é fruto da teia infindável de esquemas e manhas processuais que dilatam no tempo até ao inaceitável, quando não à prescrição, muitos dos processos, desta natureza e de outras, colocados à justiça. Chamar-lhe justiça é, evidentemente, uma questão de hábito.
Se pensarmos que os casos de "erros médicos" colocados aos tribunais podem conter alguma forma de dano ou consequência para o queixoso(a), percebe-se como este atraso fará parte das consequências e não uma forma de conseguir a reparação de eventual erro de um clínico.
Assim, espera-se que a possibilidade de permitir formas mais ágeis de apresentar queixas e problemas se conjugue com a intenção e os meios para responder em tempo útil e da forma adequada às questões levantadas quer por utentes, quer por profissionais.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

AS ARMAS PROIBIDAS

A recente tragédia numa escola dos EUA, apenas mais uma de uma longa lista, reabriu a discussão em torno da facilidade no acesso às armas que a cultura e a constituição protegem e promovem. Muito provavelmente, depois da poeira assentar, a situação continua sem alterações até o próximo episódio de violência a colocar de novo na agenda.
Embora, felizmente, nesta terra não exista um cenário legal e cultural da mesma natureza no que se refere ao acesso e uso de armas, não deixa de se verificar de uma forma razoavelmente generalizada o recurso a um arsenal bélico que deveria ser repensado.
Não pretendo fazer um discurso de natureza moralista ou um apelo à santidade bem comportada, mas, na verdade, o nível de destruição de algumas das armas usadas por cá obrigam-nos a desejar alguma contenção, quando não inibição na sua utilização. Vejamos alguns, poucos, exemplos.
Uma das mais usadas é a corrupção. Nesta gama existem vários tipos consoante a escala do alvo. Tem um poder de destruição fortíssimo ao nível dos valores e dos princípios éticos.
Uma outra arma cujo uso deveria ser combatido seriamente é o chamado "job for the boys", também conhecido por "aparelhismo" ou, de forma mais popular, por "cunha". É uma arma de grande efeito pois destrói a confiança na igualdade de oportunidades e no mérito.
Uma arma bastante sofisticada e de múltiplas aplicações sempre com grande impacto é a impunidade. E uma arma extremamente potente que afecta gente de todas as idades e de todas as condições.
Poderíamos certamente continuar a enumerar peças de um extenso arsenal bélico que importava controlar. Acontece, no entanto, que à semelhança dos EUA também por cá temos poderosos grupos de interesses que protegem, defendem e sustentam o uso indiscriminado destas armas pelo que a tarefa não será fácil apesar de se elevarem regularmente vozes nesse sentido.
Lá como cá, os episódios sucedem-se, mas o uso das armas proibidas mantém-se. 

OS DESTRATOS AOS VELHOS

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, APAV, veio hoje divulgar um seu trabalho alertando para os maus tratos e violência dirigidos a velhos que muitas vezes ficam sem denúncia o que, aliás, acontece também com situações de violência doméstica e de maus tratos a crianças.
Na verdade, com alguma regularidade vêm sendo noticiadas situações de maus tratos a idosos, de natureza diferenciada, perpetrados por familiares, um exemplo das alterações significativas dos modelos de relacionamento social, sobretudo no que pode considerar-se como a percepção de traços de autoridade que inibem ou regulam comportamentos.
Há algum tempo, a imprensa referia que a linha telefónica do Cidadão Idoso da Provedoria de Justiça recebeu 2142 chamadas durante 2011. Destas chamadas, cerca de seis por cento estavam relacionadas com maus-tratos.
Também há alguns meses, um relatório da OMS identificava Portugal como um dos cinco países europeus, entre 53, em que os velhos sofrem mais maus-tratos. Cerca de 39,4% dos velhos sofrem alguma forma de maus-tratos, que envolvem, por exemplo. extorsão, abuso psicológico, físico ou negligência.
Quer no seio das famílias, quer em instituições para onde alguns velhos são enviados compulsivamente como denuncia a APAV, algumas encerradas por determinação legal, tal é a gravidade das situações, multiplicam-se as referências à forma inaceitável como os velhos estão a ser tratados.
Começam por ser desconsiderados pelo sistema de segurança social que com pensões miseráveis, transforma os velhos em pobres, dependentes e envolvidos numa luta diária pela sobrevivência.
Continua com um sistema de saúde que deixa muitos milhares de velhos dependentes de medicação e apoio sem médico de família.
Em muitas circunstâncias, as famílias, seja pelos valores, seja pelas suas próprias dificuldades ou alterações nos estilos de vida, não se constituem como um porto de abrigo, sendo parte significativa do problema e não da solução. As situações muito complicadas em que milhares de famílias estão envolvidas com o retornar de várias gerações à mesma casa e a tentação de aproveitar os baixos rendimentos dos velhos potenciam o risco de maus tratos.
Finalmente, as instituições, muitas delas, subordinam-se ao lucro e escudam-se numa insuficiente fiscalização além de que, com frequência, os equipamentos de qualidade são inacessíveis aos rendimentos de boa parte dos nossos velhos.
Lamentavelmente, boa parte dos velhos, sofreu para chegar a velho e sofre a velhice.
Não é um fim bonito para nenhuma narrativa.