AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

SER UM "HOMENZINHO" OU UMA "MULHERZINHA"


Nos tempos em que era miúdo, os adultos, sobretudo pais e professores, usavam com muita frequência uma expressão que de vez em quando recordo, "para ser um homenzinho" ou, na óbvia versão feminina, "para ser uma mulherzinha". Tais expressões constituíam no seu entendimento um dos grandes incentivos ao bom desempenho escolar e, ou, ao bom comportamento definidos como requisito fundamental para se ser "alguém", um "homenzinho" ou uma "mulherzinha".
Como é evidente, para muitos de nós, tais fórmulas não eram particularmente apreciadas mas, sobretudo no que respeita a estudar, os poucos de nós que continuávamos para além da escolaridade obrigatória, percebíamos gradualmente como a escola nos leva ao futuro, ou seja, quando espreitávamos para diante, conseguia-se, com algum esforço é certo, vislumbrar lá bem à frente o "homenzinho" que poderíamos ser.
Hoje, tempos mais sofisticados, falamos de "projecto de vida" ou de "imagem criadora de futuro" algo que, mais do que nunca, é fundamental construir e perseguir.
Neste processo a escola, agora para todos, não só para alguns, tem o papel principal. Sem a escola não se chega a "homenzinho" ou a mulherzinha", prefiro Homem e Mulher, não se constroem projectos de vida viáveis e positivos.
Se fizermos a experiência de inquirir adolescentes sobre o que vislumbram quando espreitam lá bem para a frente, ficamos assustados com a quantidade de nadas que obtemos como resposta. Estas nadas não são, naturalmente absolutos, são feitos de incertezas, de perplexidade e de algum receio.
Por isso a escola, não só a escola mas muito a escola, não pode falhar na sua missão central junto dos miúdos, de todos os miúdos, construir o futuro. Tal responsabilidade exige de toda a gente que proteja a escola, não destrate a escola, cuide da escola e exija da escola para que ninguém chegue ao futuro sem projecto de vida. Todos têm de ter um lugar no futuro.
Os homenzinhos e as mulherzinhas, os Homens e as Mulheres, agradecem.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

DO ENSINO DOMÉSTICO OU INDIVIDUAL

Foi ontem publicado o novo enquadramento legal do Ensino Doméstico e também do Ensino Individual uma área que poucas vezes merece atenção na agenda da educação.
Regista-se a subida significativa do número de crianças e jovens nesta situação, ensino doméstico ou individual (assegurado por docente habilitado), de 63 em 2012/2013 para 909 em 2017/2018.
Confirmando alguma informação e contrariamente à situação actual que apenas exige a informação à escola da área de residência, os pais deverão apresentar um pedido de autorização à direcção da escola da área de residência que o poderá recusar sem que se conheçam os critérios que informarão a decisão.
Passará a ser exigido o grau de licenciatura ao “Responsável educativo” – figura que de acordo com esta legislação será “o familiar do aluno ou a pessoa que com ele habita e que junto do aluno desenvolve o currículo”. Ao que parece só pessoas com pessoas licenciadas no contexto familiar as famílias poderão aceder a esta opção. Qual a justificação se, como é previsível, o processo académico da criança à medida que progride solicitará algum tipo de apoio em áreas curriculares?
É também exigido um estabelecimento de um Protocolo de Colaboração extenso e com carga de informação pouco “amigável” da sua operacionalidade e eficiência.
Tal como acontece actualmente, os alunos nesta situação realizarão provas de equivalência à frequência no final de cada ciclo, as provas de aferição quando for caso disso e os exames nacionais. Os seus resultados determinarão a transição como noutras modalidades de frequência.
Parece-me de referir que nesta modalidade, ensino doméstico ou individual, existem diferentes tipologias desde situações educativas em contexto familiar mais restrito até à criação de espaços de natureza alternativa onde em grupos muito pequenos e acompanhadas por profissionais as crianças realizam as actividades educativas e de aprendizagem.
É reconhecido que esta opção por parte de algumas famílias, para além de algumas razões de natureza logística menos significativas, radica em dimensões como a recusa ou reserva das famílias relativamente aos conteúdos curriculares centralizados e massificados gerados pela escolaridade obrigatória e universal, entendimento que também se associa por vezes a convicções religiosas, um quadro de valores e visão de educação ou de sociedade desejando algo de diferente para os seus e também a uma apreciação menos positiva dos ambientes escolares e dos seus eventuais impactos nas crianças e adolescentes.
É clara a legitimidade das opções familiares embora se saiba que em alguns países não é permitida e conheço e valorizo experiências positivas que acontecem neste universo e que vão sendo conhecidas. Aliás, quer por razões de legitimidade, quer por razões, aqui sim, relativas à liberdade de educação, ou de sustentação científica, tenho alguma dificuldade em atender aspectos como o pedido de autorização ao director da escola da área da residência para mais desconhecendo os critérios de decisão ou a exigência dirigida ao nível de escolaridade do “Responsável Educativo” que, aparentemente, não será o encarregado de educação.
Dito isto e agora em nome da liberdade de opinião algumas notas retomadas.
A melhor forma de proteger a liberdade de educação é uma fortíssima cultura de qualidade, rigor e exigência na escola pública e uma acção social escolar eficaz e oportuna.
Só a educação e a rede pública de qualidade podem promover equidade e igualdade de oportunidades.
Só a educação e a rede pública de qualidade podem ser verdadeiramente inclusivas e receber todos os alunos.
Só a educação e rede pública pode chegar a todos os territórios educativos e a todas as comunidades.
Só a educação e rede pública de qualidade promovem mobilidade social em circunstâncias de equidade no acesso.
Não cabe neste espaço uma análise mais profunda mas no que respeita ao ensino doméstico ou individual parece-me que apesar de ser um exercício de liberdade é uma resposta a que muitas famílias não poderão aceder pelo que retomo a importância de assegurar a qualidade da resposta que acolhe todos.
Por outro lado julgo que devem ser ponderadas questões como a densidade e natureza da rede social experienciada pelas crianças e adolescentes, a diversidade de actividades, o desempenho e contacto com diferentes papéis e diferentes contextos, a autonomia, os “limites” na acção didáctica (não educativa) dos pais que leva à necessidade de “orientadores” também conhecidos por “professores” embora num contexto físico diferente do mais habitual.
Por outro lado, o ensino doméstico ou individual tem como horizonte temporal toda a escolaridade obrigatória. Será ajustado pensar numa opção desta natureza até ao secundário?
Termino reafirmando o reconhecimento da resposta e da qualidade com que pode ser assegurada mas não posso deixar de afirmar que apesar do que conheço de positivo e menos positivo, a minha opção continua a ser a escola pública exigindo que ela cumpra com qualidade toda a sua imprescindível função.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

POR ONDE ANDA O JUÍZO DE ALGUNS JUÍZES?


Por onde anda o juízo de alguns juízes? Este caso envolve a decisão de um douto juiz que é reincidente na forma inaceitável como trata mais um caso grave de violência doméstica.
Muitas vezes tenho referido no Atenta Inquietude que uma das dimensões fundamentais para uma cidadania de qualidade é a confiança no sistema de justiça. É imprescindível que cada um de nós sinta confiança na administração equitativa, justa e célere da justiça. Assim sendo, a forma como é percebida a justiça em Portugal, forte com os fracos, fraca com os fortes, lenta, mergulhada em conflitualidade com origem nos interesses corporativos e nos equilíbrios da partidocracia vigente constitui uma das maiores fragilidades da nossa vida colectiva.
Como podemos lidar com esta forma de administrar a justiça?

NÚMERO DE ALUNOS POR TURMA E NEE


Realiza-se hoje uma audição parlamentar para discutir alterações propostas pelo PCP e o BE ao DL 54/2018, o Regime Jurídico para a Educação Inclusiva que entrou em vigor em Julho do ano passado Nesse âmbito a FNE levantará questão da existência de muitas turmas como um número de alunos com necessidades educativas especiais superior ao estipulado pelo Despacho Normativo n.º 10-A/2018, dois por turma sendo que estas terão 20 alunos no Básico.
Sobre a questão a eventual alteração deixei aqui umas notas há umas semanas.
No que respeita ao número de aluno por turma a questão levantada pela FNE é confirmada por directores de escola referem as dificuldades levantadas pela insuficiência de recursos.
Importa referir que de acordo com a legislação a redução só se verifica quando no “relatório técnico-pedagógico seja identificada como medida de acesso à aprendizagem e à inclusão a necessidade de integração do aluno em turma reduzida, não podendo esta incluir mais de dois nestas condições” e “fica dependente do acompanhamento e permanência destes alunos na turma em pelo menos 60 % do tempo curricular.”
Como disse na altura em que foi definido o quadro anterior que passou a permitir esta medida, Despacho Normativo nº 1-H/2016, para além da não redução do número de alunos por turma, em que tal se justificaria pelas características dos alunos e apenas quando temos os alunos com necessidades especiais pelo menos 60% do tempo curricular esta decisão levanta-me algumas questões desde logo a sustentação dos 60% como critério.
As actividades em que os alunos com necessidades especiais, desculpem a insistência na designação, se envolvem e o respectivo contexto decorrem do seu Programa Educativo que se exige assente em competente e compreensiva avaliação e planeamento adequado e intervenção regulada o que, muitas vezes, não acontece. Também nesta matéria já partilhei algumas situações elucidativas.
Mais uma vez a afirmação de que a inclusão assenta em quatro dimensões fundamentais, Ser (pessoa com direitos), Estar (na comunidade a que se pertence da mesma forma que estão todas as outras pessoas), Participar (envolver-se activamente da forma possível nas actividades comuns) e Pertencer (sentir-se e ser reconhecido como membro da comunidade). Estas dimensões devem ser operacionalizadas numa perspectiva de diferenciação justamente para que acomodem a diversidade das pessoas.
À luz deste entendimento é justo afirmar que temos excelentes exemplos de trabalho em comunidades educativas que, tanto quanto possível e com os recursos de que dispõem, se empenham em estruturar até ao limite ambientes educativos mais inclusivos em que todos, mesmo todos, participem tanto quanto possível.
Temo que recorrendo no cenário actual e com esta “regra administrativa” a educação inclusiva também se integre, agora formalmente, numa espécie de serviços mínimos. Os alunos estão 60% do tempo com os seus pares, tornam-se, assim “redutores” (sim já ouvi esta expressão para referir os alunos com NEE que justificam a redução das turmas). Se os alunos com NEE não forem "redutores" então, na prática, o número de alunos por turma compromete a resposta eficaz à diversidade e dificuldades que “o novo paradigma” e a “inovação” que não “categoriza”.
Por outro lado, a resposta educativa de qualidade e de qualidade para todos exige recursos suficientes e competentes quer nos docentes que, certamente por lapso, o DL 54/2018 ainda designa por “docentes de educação especial” e de técnicos para além de autonomia e regulação na sua utilização por parte das escolas.
É o que parece estar a acontecer em muitas escolas. Apesar das múltiplas boas experiências ainda existem muitos alunos que não estão ou não se sentem a fazer parte da comunidade educativa em que estão, não “integrados” mas “entregados”, por várias razões e nem sempre por dificuldades próprias.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

A MINHA ESCOLA


O Expresso tem um trabalho curioso, “A minha escola”, para o qual pediu a algumas pessoas mais ou menos conhecidas que escrevessem sobre o que foi a sua escola.
Achei piada e lembrei-me que também já aqui escrevi sobre o que foi a minha escola.
Num tempo em que a escola, a educação, está sob perante escrutínio, por boas e más razões, achei que poderia recuperar o que foi a minha escola.
Não me esqueço, antes pelo contrário, que a nossa educação, a escola, como tudo o resto, também tem atravessado, atravessa e provavelmente sempre viverá dificuldades e problemas sérios mas só a falta de memória, uma qualquer agenda ou o desconhecimento sustentam o “antigamente era melhor”. Vejamos, pois, um pouco da escola do meu tempo, conversa de velho, já se vê.
A minha escola lá para trás no tempo não era grande, nem pequena, era triste. A maioria das pessoas que por lá andavam era, naturalmente, triste. É claro que nós miúdos também nos divertíamos e ríamos, como sabem os miúdos são resilientes.
As pessoas que mandavam na escola estabeleciam o que toda a gente tinha de aprender, fazer, dizer e pensar. Quem pensasse, dissesse ou fizesse diferente podia até sofrer algum castigo, mesmo os professores, não eram só os alunos. Não se podia inventar histórias, as pessoas contavam só histórias já inventadas. Às vezes, os miúdos e os professores, às escondidas, inventavam histórias novas.
Eu andei nesta escola lá para trás no tempo.
E na escola do meu tempo nem todos lá entravam e muitos dos que o conseguiam saíam ao fim de pouco tempo, ficando com a segunda ou terceira classe, como então se chamava. Chegava.
Alguns outros, nem se entendia que deveriam estar na escola, eram pessoas com deficiência, ainda não se tinha inventado que tinham necessidades educativas especiais, que iriam fazer para a escola.
E na escola do meu tempo os rapazes estavam separados das raparigas.
E na escola do meu tempo havia um só livro e toda a gente aprendia apenas o que aquele livro trazia.
E na escola do meu tempo levavam-se muitas reguadas, basicamente por dois motivos, por tudo e por nada.
E na escola do meu tempo ensinavam-nos a ser pequeninos, acríticos e a não discutir, o que quer que fosse.
E na escola do meu tempo eu era “obrigado” a ter catequese, religiosa e política.
E na escola do meu tempo aprendia-se que os homens trabalham fora de casa e as mulheres cuidam do lar e dos filhos.
E na escola do meu tempo não aprender não era um problema, quem não “tinha jeito para a escola, ia para o campo”. Quanto menos estudassem, menos perguntas e dúvidas teriam.
E na escola do meu tempo não se falava do lado de fora de Portugal. Do lado de dentro só se falava do Portugal cinzento e pequenino.
Na escola do meu tempo eu era avisado em casa para não falar de certas coisas na escola, era perigoso.
Quem mandava no país achava que muita escola não fazia bem às pessoas, só a algumas. Ao meu pai perguntaram porque me tinha posto a estudar depois da quarta classe, não era frequente naquele meio, para ser serralheiro como ele não precisava de estudar mais.
Sim, eu sei, não precisam de me dizer que a escola deste tempo tem muitas coisas, embora com outras vestes e discursos, que nos recordam a escola do meu tempo. Mas o caminho é melhorar a escola deste tempo não é, não pode ser, querer a escola do meu tempo.
Eu andei naquela escola lá para trás no tempo.
Por isso, quando falam da escola hoje, penso, nunca mais voltarei a andar naquela escola. E não quero que os meus netos e os outros miúdos andem numa escola como aquela, a minha escola, lá para trás no tempo.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

CRIANÇAS E ADOLESCENTES ONLINE. DE NOVO


Foram divulgados resultados relativos a 2018 do projecto EU Kids Online realizado pelas Professoras Cristina Ponte e Susana Batista da Universidade Nova de Lisboa analisando a utilização da net e das redes sociais por crianças e adolescentes. Este trabalho integra um projecto europeu envolvendo cerca de 30 países e os resultados serão publicamente apresentados na próxima semana.
Foram inquiridas 2000 crianças e adolescentes entre os 9 e os 17 anos sobre os seus comportamentos e padrão de utilização.
Não é possível desenvolver aqui uma análise ao extenso volume de dados e informação disponibilizada mas comparativamente aos resultados de 2014 verifica-se uma subida da frequência das situações de risco a que parece também estar a associada a maior operacionalidade e o tempo de contacto permitido pela migração da utilização dos pc para os mais “operacionais” smartphones”. 
Curiosamente no semana que passou integrei um painel de discussão no XXIII Encontro da Adolescência que teve justamente como tema “(Des)ligados”, a relação dos adolescentes com a net e redes sociais.
Foram abordadas questões direccionadas para o impacto desta relação na saúde mental e bem-estar dos adolescente e eu com uma intervenção mais direccionada para o seu impacto nos processos educativos escolares e familiares e, naturalmente, também no bem-estar de crianças e adolescentes.
Para além dos dados do EU Kids Online recordo um trabalho da OCDE de 2018 "Curriculum Flexibility and Autonomy in Portugal – na OECDreview” em que considerando dados de 2012 e 2015 (recolhidos no âmbito do PISA), oito em cada dez adolescentes portugueses afirmam "sentir-se mal" se não estiverem ligados à internet. Apenas os adolescentes franceses e suecos de entre os 31 países envolvidos evidenciam uma taxa superior.
Podemos considerar mais um sinal dos tempos as múltiplas referências ao tempo excessivo e dos riscos associados que que muitas crianças e adolescentes despendem com a ligação à net nas suas múltiplas possibilidades designadamente as redes sociais.
Como os dados do EuKids Online evidenciam os riscos são múltiplos tal como são múltiplas as potencialidades.
Nesta perspectiva e tal como noutras áreas o recurso privilegiado a estratégias proibicionistas não funciona. São mais eficientes a promoção da utilização autoregulada e informada. A net e o mundo de oportunidades, benefícios e riscos que está presente em todas as suas potencialidades é uma matéria que deve merecer a reflexão de todos os que lidam com crianças e jovens embora não lhes diga exclusivamente respeito. É o nosso trabalho.
Em casa, têm durante muitas horas um ecrã como companhia durante o pouco tempo que a escola "a tempo inteiro" e as mudanças e constrangimentos nos estilos de vida das famílias lhes deixam "livre". Também é verdade que a crescente "filiação" em redes sociais virtuais possam “disfarçar”, juntando quem “sofre” do mesmo mal e o tempo remanescente para estar em família, frequentemente ainda é passado à sombra de uma televisão.
De há muitos anos que se sabe que não se cresce só, cresce-se na relação com pares e adultos. É por isso que, embora entenda a expressão, ouvir chamar a este tempo, o tempo da comunicação, me faz sorrir, acho mais apropriado considerá-lo o tempo do estar só ou a assistir à solidão dos outros. Recordo a afirmação de um miúdo de 11 anos colocada num desenho, "a minha consola é que me consola".
Estas matérias, a presença das novas tecnologias na vida dos mais novos, são problemas novos para muitos pais. Considerando as implicações sérias na vida diária importa que se reflicta sobre a atenção e ajuda destinada aos pais para que a utilização imprescindível e útil seja regulada e protectora da qualidade de vida das crianças e adolescentes. Existem demasiadas situações em que desde muito cedo os “smartphones” funcionam como “babysitters”.
Por outro lado, a experiência mostra-me que muitos pais desejam e mostram necessidade de alguma ajuda ou orientação nestas matérias. Sabemos que estratégias proibicionistas tendem a perder eficácia com a idade.
Creio que o caminho terá de passar por autonomia, supervisão, diálogo e muita atenção aos sinais que crianças e adolescentes nos dão sobre o que se passa com elas.
A referência final para um indicador que foi considerado pela primeira vez neste estudo e que me parece positivo e encorajador, crianças e adolescentes percebem que a sua “entrada” neste universo pode não ser por sua iniciativa. Foram inquiridos sobre “sharenting”, partilha realizada pelos pais de conteúdos que envolvem os filhos, e revelam algum desconforto, 28% afirmam que os pais publicaram conteúdos (textos, vídeos ou imagens” sobre eles sem lhes perguntarem se estavam de acordo, 13% sentiram-se incomodados com essas partilhas e 14% solicitaram aos pais que retirassem esses conteúdos.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

“E SE LHE DISSEREM QUE OS RECREIOS MAIS AMIGOS DA CRIANÇA SÃO AQUELES MENOS PROTEGIDOS?”


A Teresa Campos tem um trabalho na Visão online com o sugestivo título “E se lhe disserem que os recreios mais amigos da criança são aqueles menos protegidos?”
A peça desenvolve a ideia que tantas vezes aqui e na intervenção profissional tenho defendido, os estilos de vida e os espaços que muitas crianças frequentam são pouco amigáveis do seu desenvolvimento e em diferentes dimensões. Já muitos especialistas falam, por exemplo, de iliteracia motora nas crianças por falta de experiências promotoras de desenvolvimento e competências nesta área. Nas crianças com necessidades especiais esta situação é ampliada pelas representações, expectativas e e receios decorrentes da sua condição o que também inibe a participação em experiências essenciais para promoção de competências.
A jornalista tem a gentileza de citar uma das minhas recorrentes afirmações, “educar é ajudar alguém a tomar conta de si próprio e isso aprende-se fazendo. Se as crianças nunca fazem ...”. A peça acentua a pouca utilização de equipamentos e espaços exteriores, a superprotecção das crianças quando estão nestas circunstâncias que inibe a experimentação, o teste de competências e limites e, naturalmente, o desenvolvimento da sua autonomia. Sabemos que existem riscos, devem ser controlados, mas as crianças precisam de se exercitar também na gestão desses riscos.
Como também defende Mário Cordeiro também na Visão, em papel, “As crianças vivem com excesso de vigilância”.
Como ainda há pouco tempo aqui escrevi, só miúdos autónomos, autodeterminados, informados e orientados sobre os riscos e as escolhas serão mais capazes de dizer não ao que se espera que digam não e escolher de forma ajustada o que fazer e como fazer ou pensar em diferentes situações do seu quotidiano. Este entendimento sublinha a importância de em todo processo de educação, logo de muito pequeno, em casa e na escola, se estimular a autonomia dos miúdos.
Creio que este entendimento está pouco presente em muito do que fazemos em matéria de educação familiar ou escolar e para todos os miúdos.
Todos beneficiariam, miúdos e adultos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

RANKINGS ESCOLARES E TRANSPARÊNCIA


Ainda uma nota sobre os rankings escolares.
Como escrevi há uns dias apesar de continuar com dificuldade em defender a sua bondade não tenho uma atitude fundamentalista face à sua construção, sobretudo considerando a evolução que se tem verificado nos últimos anos, quer na disponibilização de informação por parte do ME para além dos “meros” resultados da avaliação externa, quer na forma como essa informação é tratada e divulgada por diferentes entidades.
Tenho também a dúvida expressa por Gil Nata e Tiago Neve do Centro de Investigação e Intervenção Educativas da U. do Porto (Público) que num texto no Público de sábado passado. “Assim, passados 20 anos, a pergunta impõe-se onde estão as evidências de que a publicação dos rankings tenha contribuído para a melhoria do sistema educativo?”
Na defesa dos rankings recorre-se regularmente à importância da transparência pelo que importa o conhecimento que permitem.
A questão da transparência referida no contexto dos rankings escolares parece-me um equívoco.
Não tenho a mínima dúvida em defender que a informação relativa aos resultados escolares e sobre os processos educativos nas diferentes escolas e agrupamentos incluindo as características sociodemográficas deve ser divulgada dentro do quadro legal da protecção de dados, como é óbvio. Estes dados são certamente úteis para estudo e análises de natureza diferenciada.
Os rankings, nas suas diferentes tipologias, são “apenas” mais uma forma de trabalhar a informação disponibilizada criando ordenações e hierarquias que, do meu ponto de vista, terão uma utilidade limitada e servem para alimentar mais equívocos e assimetrias.
Dito de uma forma mais simples, disponibilizar informação robusta sobre a educação e o trabalho e resultados é transparência e importa que aconteça, usar essa informação para criar listas ordenadas, independentemente da sua pertinência ou qualidade relativa não tem rigorosamente a ver com transparência, é outra questão que, naturalmente, merece discussão mas não com a argumentação da transparência.
Até à próxima época, lá para final de Janeiro de 2020.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

DA AVALIAÇÃO DAS ESCOLAS. MAIS UMA INFORMAÇÃO


Numa interessante estratégia de comunicação, através de notas à comunicação social, o ME continua a divulgar informação avulsa sobre o desenho do novo ciclo de avaliação das escolas a iniciar em Abril. Desta vez ficámos a saber que o dispositivo de avaliação incluirá a observação de aulas, ideia que, aliás, não é nova.
Já sabíamos que a “inclusão” será um “indicador-chave” da avaliação através de uma “métrica qualitativa” que ainda não conhecemos mas assente ao que parece na análise dos “percursos directos de sucesso”. Também se sabe que a avaliação das escolas envolverá as escolas profissionais privadas e os estabelecimentos de ensino privado com contrato com o ME sendo que outras instituições privadas também podem ser avaliadas por sua iniciativa.
Depois de ter sido divulgada a mudança na orientação de que para a função de inspector ser seria necessário ser professor, também sabemos que as equipas de avaliação serão constituídas por inspectores e “peritos externos” seleccionados por instituições de ensino
Algumas notas a partir de reflexões anteriores, algumas bem recentes.
A avaliação é, seguramente, uma ferramenta de promoção e regulação da qualidade do trabalho desenvolvido o que a torna imprescindível nos vários patamares do sistema. Em Portugal, no universo da educação, a avaliação, seja de alunos, de professores ou das escolas tem sido um terreno de enorme instabilidade, seja pela incoerência e incompetência de diferentes iniciativas do MEC, seja pela contaminação da normal conflitualidade a que acrescem interesses de agendas diferenciadas. Tal contexto tem-se traduzido numa volatilidade espantosa de decisões, algumas inaceitáveis como a sinistra PACC para avaliar Conhecimentos e Capacidades para o acesso à carreira de professor, mudanças e alterações que nem tempo têm se ser avaliadas antes de ser novamente ... alteradas e sempre recebidas reactivamente.
Gostava também que o novo ciclo avaliativo pudesse desburocratizar a forma como a avaliação interna e externa é realizada, altamente burocratizada, solicitando uma carga enorme de informação, extensa, redundante e parte dela inútil, da forma que é requerida. A produção desta informação consome centenas de horas de trabalho a muitos docentes e que são retiradas à essência do seu trabalho.
O nível de informação solicitada e as regras impostas de funcionamento e organização mostra, de facto, um sistema altamente centralizado, burocratizado e com a tentação de manter um controlo absoluto sobre a organização e funcionamento das escolas.
Integrar a observação das aulas nos dispositivos de avaliação das escolas, como, aliás e de forma alargada na avaliação de professores importante e positivo. Aliás, na grande maioria dos sistemas educativos integrados na OCDE é isso que se passa em matéria de avaliação de escolas.
Recordo um Relatório da rede Eurydice, "Assuring Quality in Education — Policies and Approaches to School Evaluation in Europe" de 2015 sobre a avaliação da qualidade das escolas e dos modelos e dispositivos utilizados em 31 sistemas educativos europeus, todos os da UE bem como Islândia, Noruega, Turquia e Macedónia e no qual se verificava que Portugal é um dos três países que não recorre a esta metodologia.
É verdade que matéria é mais uma das muitas em que a polémica é forte. Recordem-se as discussões sobre a observação de aulas no contexto da avaliação de professores e os discursos, práticas e equívocos instalados.
Neste cenário parece importante que com tempo e com discussão participada se construísse o dispositivo de avaliação incluindo a observação de aulas, as equipas avaliadoras, o método, os conteúdos em avaliação, os critérios a utilizar, a forma como são consideradas as tipologias das escolas face a população e contexto, dimensão e características dos grupos/turmas, etc.
Finalmente e como escrevi há dias, a avaliação, sendo imprescindível na promoção da qualidade é tanto mais eficaz nessa função quanto mais competente e simples possa ser. A avaliação também não pode servir para “certificar” ou “validar” aquilo que já “sabemos” ou “queremos” encontrar para "fabricar" sucesso. Temos tido exemplos estimulantes nesta matéria.
Aguardemos para ver ou pela próxima nota à comunicação social.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR, OBRIGATORIEDADE OU UNIVERSALIDADE DO ACESSO


A partir de Setembro deste ano a escolaridade obrigatória em França começará aos 3 anos, Actualmente, tal como em Portugal, é aos 6 anos que se inicia. Em França estima-se que 97% das crianças de 3 anos frequentem a “escola maternal” sendo que a maioria das que não frequentam vivem em agregados familiares com menores recursos económicos. É esta situação que a medida de obrigatoriedade visa combater alicerçando os percursos educativos numa base de maior equidade.
Em Portugal a situação tem os mesmos contornos com algumas diferenças.
No Relatório do CNE “Estado da Educação 2016” verificava-se que a frequência da educação pré-escolar em particular por crianças de quatro e cinco anos entre 2012/2013 e 2015/2016 passou de 97,9% em 10/11 para 94,8% em 15/16.
As razões para tal poderão prender-se, teria de ser confirmado, com os custos demasiado altos para muitas famílias da frequência de estruturas de educação pré-escolar.
No entanto, são mais conhecidos os efeitos positivos da sua frequência por parte das crianças, daí a preocupação com este abaixamento.
É recorrente a divulgação de informação referindo a existência de muitas crianças nas listas de espera de creches e jardins-de-infância no chamado sector social em que as mensalidades são indexadas aos rendimentos familiares. Esta situação afecta sobretudo zonas mais urbanas e a alternativa da resposta privada é inacessível para muitas famílias.
Também o relatório "Starting Strong 2017", divulgado pela OCDE e que já aqui citei mostra que as famílias portuguesas são das que realizam mais esforço para assegurar educação pré-escolar. Dito de outra maneira, Portugal tem um dos mais elevados custos de equipamentos e serviços para crianças em idade de pré-escolar.
O Governo tem afirmado o objectivo de alargar progressivamente a universalidade da educação pré-escolar tentando garantir a resposta universal para as crianças de três anos em 2019. Sabe-se que o processo tem decorrido com algumas dificuldades dada a inexistência de respostas suficientes para a procura designadamente em áreas geográficas de demografia mais densa.
Não tenho certezas sobre a obrigatoriedade da frequência mas tenho a maior convicção no sentido de que garantir a universalidade do acesso à educação pré-escolar aos três anos e criar respostas  de qualidade, acessíveis, logística e economicamente, às famílias para as crianças dos zero aos três anos é imprescindível e urgente. Acentuo a ideia de que este período, até aos três anos, deveria também estar sob tutela do Ministério da Educação e não da Segurança Social pois o acolhimento das crianças deve estar abrangido por um forte princípio de intencionalidade educativa.
Sabemos todos como o desenvolvimento e crescimento equilibrado e positivo dos miúdos é fortemente influenciado pela qualidade das experiências educativas nos primeiros anos de vida, de pequenino é que ...
Assim, existem áreas na vida das pessoas que exigem uma resposta e uma atenção que sendo insuficiente ou não existindo, se tornam uma ameaça muito séria ao futuro, a educação de qualidade para os mais pequenos é uma delas.
No entanto, como frequentemente aqui tenho escrito e frequentemente afirmo, a educação pré-escolar é bastante mais que a “preparação” para a escola e não deve ser entendida como uma etapa na qual os meninos se preparam para entrar na escola embora se saiba do impacto positivo que assume no seu trajecto escolar.
Na verdade, as crianças estão a preparar-se para entrar na vida, para crescer, para ser. A educação pré-escolar num tempo em que as crianças estão menos tempo com as famílias tem um papel fundamental no seu desenvolvimento global, em todas as áreas do seu funcionamento e na aquisição de competências e promoção de capacidades que têm um valor por si só não entendidos como uma etapa preparatória para uma parte da vida futura dos miúdos, a vida escolar.
Este período, a educação pré-escolar, cumprido com qualidade e acessível a todas as crianças, será, de facto, um excelente começo da formação institucional de cidadãos. Esta formação é global e essencial para tudo que virão a ser e a fazer no resto da sua vida.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

DA AVALIAÇÃO EXTERNA


O texto de Domingos Fernandes no Público, “Para a reconfiguração dos exames e do sistema de acesso ao ensino superior”, parece-me ser um bom contributo para uma discussão que permanece em aberto, a existência, a função esperada ou exigida, os impactos positivos e negativos e os momentos relativos à avaliação externa, também conhecida por exames nacionais mas que incluem actualmente as provas de aferição.
Apesar da abolição dos exames do 1º e 2º anos a questão também aqui se coloca devido à existência das, do meu ponto de vista, incorrectamente chamadas provas de aferição no 2º e o no 5º ano. Digo incorrectamente porque realizadas a meio do ciclo creio que são mais de “diagnóstico” que de aferição.
A questão da avaliação externa é das muitas que em educação é discutida quase em modo “cada cabeça, sua sentença” e muitas vezes mobilizando discursos com agenda implícita. Muitas vezes aqui temos falado sobre isto.
Neste sentido é sempre útil a promoção da reflexão, designadamente, neste caso, o impacto que tem no trabalho do ensino secundário o facto do acesso ao ensino superior estar quase que exclusivamente dependente dos resultados nos exames nacionais, apesar da existência da avaliação interna que, como se sabe, em algumas circunstância é gerida de forma mais “simpática” justamente para “facilitar o acesso a candidatura ao superior com médias finais mais amigáveis.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

CHUMBAR. QUANTO CUSTA E PARA QUE SERVE


Segundo os dados mais recentes do ME continuam em queda as taxas de retenção no 1º e 2º ciclo, dados de 2016/2017. No entanto, o 2º ano continua com valores críticos, 7%. Existem 23 escolas com 100% dos alunos retidos neste ano de escolaridade, boa parte delas, 13, com menos de 20 alunos.
Algumas notas retomadas de escritos anteriores sobre esta questão permanentemente em discussão e sujeita a uma imensidade de opiniões, visões e equívocos, o chumbo escolar.
No final do ano passado o CNE divulgou o Relatório “Estado da Educação, 2017” onde já constavam estes indicadores e analisados em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos no âmbito do Projecto aQeduto incluindo numa vertente económica. Em termos económicos e recorrendo aos estudos já desenvolvidos o impacto económico da retenção é estimado em cerca de 6000€ por aluno em cada ano.
Adaptando o modelo desenvolvido pela Education Endowment Foundation, o Projecto aQeduto identificou o grau de eficácia e custo económico de um elenco de medidas de combate ao insucesso. Das medidas analisadas, a retenção tem o custo mais elevado e a eficiência é negativa, promove um atraso de 4 meses. Ensinar a estudar é a medida mais económica, 87€, e mais eficiente, promove um ganho de 8 meses de aprendizagem.

Estes dados são importantes mas a sua substância não é nova.
Recordo que no Relatório “Low-Performing Students - Why They FallBehind and How To Help Them Succeed” divulgado pela OCDE em 2017 se evidencia que o “chumbo”, a retenção, é para os alunos portugueses o principal factor de risco para os resultados na avaliação posterior, dito de outra maneira, os alunos chumbam … mas não melhoram.
De facto, definitivamente, não adianta discutir se o chumbo transforma o insucesso em sucesso. Não transforma, repetir só por repetir não produz sucesso, aliás gera mais insucesso conforme os estudos mostram.
Confesso sempre alguma surpresa e dificuldade em compreender quando ao discutir-se os efeitos pouco positivos da retenção algumas vozes, mesmo dentro do universo da educação, clamam que se está a promover o "facilitismo" ou a defender que "então passam sem saber". A leitura das caixas de comentários às notícias sobre estas questões é elucidativa.
Nesta conformidade e do meu ponto de vista, a questão central não é o chumba, não chumba, e quais os critérios ou o número de exames, mas sim que tipo de apoios, que medidas e recursos devem estar disponíveis para alunos, professores e famílias desde o início da percepção de dificuldades com o objectivo de evitar a última e genericamente ineficaz medida do chumbo.
Este discurso não tem rigorosamente a ver com "facilitismo" e, muito menos, com melhoria "administrativa" das estatísticas da educação, uma tentação a que nem sempre se resiste. Pelo contrário, “facilitismo” é acreditar que a retenção resolve o problema do insucesso.
É essencial promover e tornar acessíveis a alunos, professores e famílias apoios e recursos adequados e competentes de forma a evitar a última e genericamente ineficaz medida do chumbo. É fundamental não esquecer que o insucesso continua a atingir fundamentalmente os alunos oriundos de famílias com pior condição económica e social pelo que inibe o objectivo da mobilidade social. A associação entre o insucesso e a pobreza em Portugal é, aliás, a mais forte entre os países europeus. Em Portugal os bons alunos são os que mais trabalham em casa, TPC e explicações, dado a que, evidentemente, não é alheio ao nível de escolaridade dos pais e ao estatuto económico. É necessário também diversificar percursos de formação com diferentes modelos curriculares e carga lectiva finalizando sempre com algum tipo formação profissional. Esta diferenciação não deve acontecer em idades precoces criando percursos irreversíveis de "segunda" para os "sem jeito para a escola" e "preguiçosos".
A qualidade promove-se, é certo e deve sublinhar-se, com a avaliação rigorosa e regular das aprendizagens, sim, naturalmente, mas também com a avaliação do trabalho dos professores, com a definição de currículos adequados, com a estruturação de dispositivos de apoio a alunos e professores eficazes e suficientes, com a definição de políticas educativas que sustentem um quadro normativo simples e coerente e modelos adequados e reais de autonomia, organização e funcionamento desburocratizado das escolas, com a definição de objectivos de curto e médio prazo, etc.
É o que acontece, genericamente, nos países com mais baixas taxas de retenção escolar.
É o que tarda em acontecer de forma consistente em Portugal.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

GOSTEI DE LER, ENTREVISTAS A MÁRIO CORDEIRO


A propósito do próximo lançamento do livro “Pais Apressados, Filhos Stressados”, Mário Cordeiro tem entrevistas no DN e no Observador que justificam leitura e, sobretudo, reflexão. Os conteúdos remetem para as circunstâncias de de vida das famílias actuais.
Os estilos de vida de muitas famílias são, de facto, pouco amigáveis para uma educação saudável que necessita de dois ingredientes fundamentais, tempo e relação/comunicação, que interagem.
Nas conversas com grupos de pais em que regularmente participo coloco invariavelmente uma questão, “Quem de vós dá o tempo que gostava de dar aos filhos levante a mão”. Raramente, não me lembro da última vez, vejo alguém com a mão no ar.
Esta “percepção” de “falta” mesmo quando não está consciente associa-se de forma significativa à forma e aos modelos como muitos pais exercem a sua função.
Também por estas razões e tal como defende Mário Cordeiro precisamos de repensar estilos de vida e dinâmicas de relacionamento familiar com os mais novos.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

RANKINGS ESCOLARES. UM PRODUTO SAZONAL. 2018


Aí está o produto sazonal que dá pelo nome de “rankings escolares” nas suas diferentes declinações. Agora, 2018.
Apesar de continuar com dificuldade em defender a sua bondade não tenho uma atitude fundamentalista face à sua construção, sobretudo considerando a evolução que se tem verificado nos últimos anos, quer na disponibilização de informação por parte do ME para além dos “meros” resultados da avaliação externa, quer na forma como essa informação é tratada e divulgada por diferentes entidades.
E que mostram, ou não, os rankings?
Mostram que genericamente as escolas privadas apresentam melhores resultados e que também existem escolas privadas com resultados mais baixos.
Mostram que a maioria das escolas que maior discrepância apresenta entre a avaliação externa e a avaliação interna, sendo esta "inflacionada", são privadas sendo algumas persistentes na tarefa.
Ao contrário, mostram das que se revelam mais exigentes a maioria é do ensino público.
Mostram que existem escolas públicas com bons resultados e escolas públicas com resultados menos bons.
Mostram que existem escolas que face ao contexto sociodemográfico que servem conseguem bons resultados ou, pelo menos, progresso no trajecto dos alunos e que existem escolas públicas que ainda não conseguem contrariar o destino de muitos dos seus alunos.
Mostram que o nível de retenção é elevado e que o recurso à retenção não faz subir os resultados dos alunos.
Mostram que a menor dimensão das turmas pode em escolas em contextos menos favoráveis promover a melhoria de resultados.
Mostram que a tradição ainda é o que era, pais (mães) mais escolarizados, têm, potencialmente, filhos com melhores resultados.
Mostram que as escolas públicas são as que mais progresso promovem nos alunos.
Mostram que nas escolas com melhores resultados, em regra, são as que têm menos alunos abrangidos pela Acção Social Escolar.
Mostram que a escola, os professores, fazem a diferença.
Mostram ainda que se continua a falar de “melhores escolas” e “piores escolas” enviesando as várias leituras possíveis. Aliás, mostram que existem escolas que só nesta altura merecem alguma atenção, são as últimas dos vários rankings. No ano passado por esta altura dizia a Directora da Escola de Santo António no Barreiro “Estou cansada que só liguem nestas alturas. Os rankings só servem para sistematizar as escolas. São muito desmotivantes para quem faz um enorme esforço” (Expresso). E eu sei que fazem mesmo.
Mostram que …
Enfim, os rankings mostram tudo, só não mostram o que se fará a seguir com a informação que os rankings mostram. Na verdade, também não mostram o que não se pode medir mas se pode avaliar e que é tão essencial como o que se mede.
Deixem-me acrescentar que também mostram que “Há sempre um testo para cada panela, costuma dizer o povo. E eu acredito que também há um lugar para cada aluno na escola. Temos é de encontrar e dar-lhes as coisas que lhes fazem sentido”, Jorge Castro. Escola Profissional de Aveiro Bem avaliada entre as escolas profissionais. (Expresso)
Também dizem que “Sabrosa é uma zona relativamente pobre e muitos dos nossos alunos não têm sucesso porque têm debilidades, sejam familiares, financeiras ou outras. Temos alunos que se perdem ‘entre os pingos da chuva’”, Adelino Tomé, director do agrupamento Miguel Torga em Sabrosa. “Ter uma estrutura atenta permite perceber o que se passa com cada aluno e conseguir agarrá-lo. Isso até pode não se traduzir em notas muito boas, mas numa melhoria. Sei que nos falta chegar aos resultados positivos, mas temos chegado ao resto.” É uma Escola das que mais consegue promover progresso nos alunos apesar de ainda se manter “mal classificada no ranking” (Expresso) 
Também mostram que “Milagres não há, é tudo fruto do trabalho”,  Não podemos preparar os alunos apenas para os exames. Devemos prepará-los para a vida”, Fernando Souto professor de Filosofia no Agrupamento Eça de Queirós, a única escola pública nas primeiras posições na classificação dos exames quer no básico quer no secundário. O Director, Eduardo Lemos  afirma, “Não queremos ter salas muito bonitas, pufes... Isso é conversa fiada! A flexibilidade curricular é zero, porque preferimos a solidez. A base é a disciplina”. (Expresso)
Ainda mostram que (Expresso) “A Escola Básica do Lumiar é um dos estabelecimentos de ensino que aparecem repetidamente nos últimos lugares dos rankings. Entalada entre bairros sociais, a escola que tem o maior número de alunos de etnia cigana em Lisboa e que se orgulha de não recusar nenhuma matrícula não foi além de uma média de 37% e está na 6ª pior posição da tabela que ordena as quase mil básicas públicas e privadas de todo o país com base nas notas dos exames.”
Também se vê nos rankings que  nesta escola “Quando estão dois graus cá fora e as salas de aulas têm janelas partidas e não têm aquecimento, que motivação podem ter estes alunos num sítio onde nem sequer estão confortáveis? Eles sentem que já foram abandonados, às vezes até pela família, que a vida desinvestiu neles, que não prestam e que são sempre os últimos. E depois vêem o estado da escola. Não têm um único local confortável onde estar”, Directora do Agrupamento, Maria Caldeira.
E mostram que a Escola Básica do Bairro Padre Cruz tem quatro em cada cinco alunos com apoio social e a escolaridade média dos pais é de sete anos. Diz uma docente da escola, “Às vezes temos de ser mais pais, avós, tios do que propriamente professores. Fazemos um bocadinho do que os pais não têm capacidade para fazer, ou não sabem ou não querem: o saber estar, ouvir, saber viver em sociedade” (Público)
Este salto é sinal que as medidas estão a funcionar “uma vez por semana os alunos trabalham em grupos organizados consoante o nível em que se encontram, no final do ano há aulas facultativas”, Director  da EBS de Vilela, Paredes que subiu 786 posições, a segunda que mais subiu. (Público)
Também podemos ver pelos rankings que “No ano passado tivemos 34 procedimentos disciplinares. São alunos muito traumatizados, agressivos, pouco empenhados, empurrados de escola em escola porque ninguém os quer” Directora da EB D. Manuel I de Pernes que  acrescenta “a escola procura cativá-los com o pequeno almoço e o lanche, mas também com propostas alternativas.” A escola baixou significativamente no ranking face ao ano anterior.
Também mostram que “Não levar para casa o que se pode fazer na escola”, “nas turmas com maiores dificuldades estão dois professores em cada sala de aula para que possam acompanhar os alunos de uma forma mais próxima e esclarecer dúvidas”, “Os professores conhecem as necessidades dos alunos e preocupam-se em dar-lhes resposta”, e a “principal” “Nesta escola não há alunos dados como perdidos”, são ideias que informam a EB Dr, Carlos Pinto Ferreira, Vila do Conde, que integra o contexto 3 (mais desfavorecido) e é a única escola pública nas cinco primeiras na ordenação pelo “indicador global de sucesso” (Público)
Também se percebe pelos rankings que “Criámos mais instrumentos de avaliação para que não seja um só teste a ditar o destino dos alunos. Aumentámos as ocasiões em que os alunos podem repetir os módulos que tenham ficado em atraso, para que não os acumulem, e os critérios de avaliação. Valorizando as componentes do saber fazer, essencial no ensino profissional, e do saber estar”, Directora da Escola Profissional de Desenvolvimento Rural de Alter do Chão com um elevado nível de sucesso e empregabilidade dos seus alunos. (Público)
E mostram finalmente que “Assim, passados 20 anos, a pergunta impõe-se onde estão as evidências de que a publicação dos rankings tenha contribuído para a melhoria do sistema educativo?” Gil Nata, Tiago Neves, Centro de Investigação e Intervenção Educativas da U. do Porto (Público)
Uma nota final, eu sei que é o mercado a funcionar mas continuo embaraçado com a inserção de publicidade a escolas privadas e ao ensino privado nos suplementos dos jornais dedicados aos rankings.
Post Scriptum 1 - A propósito de rankings - Gert Biesta da Universidade Stirling numa obra notável, "Good Education in a Age of Measurement - Ethics, Politics, Democracy", afirma que uma obsessão centrada na medida, assenta na gestão continuada de uma dúvida, "medimos o que valorizamos ou valorizamos o que medimos?"
Post Scriptum 2 – Por onde andam nos rankings os alunos com necessidades educativas especiais?  (desculpem o termo não inovador dentro do novo paradigma mas ainda não me habituei às novas "não categorias" como "adicionais", "selectivas" ou "adicionais").  Provavelmente à espera da operacionalização de um novo indicador-chave da avaliação das escolas, a inclusão.


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

NÃO SENHORES BISPOS, UM CASO DE ABUSO JÁ SERIA DEMAIS


Tinham-me passado despercebidas as declarações do secretário e porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa reafirmando a preocupação da Igreja portuguesa com os abusos sexuais mas admitindo “uma dezena” de abusos o que … “São pouquíssimos”. E reforça, “os casos presumíveis ou já decididos pela justiça, já com sentença penal, são mesmo reduzidos" e que “"os casos tratados nos tribunais eclesiásticos onde chegam as denúncias são pouquíssimos e, desses, mais de metade a investigação prévia parou por falta de fundamento".
Ainda me consigo surpreender.
Não espero a santidade de ninguém como também não espero a perfeição. Também defendo uma educação com e para valores e não uma educação para a santidade.
Mas Senhores Bispos, sois a cúpula da Igreja, um caso de abuso sexual seria demais. Nem vos pergunto como estabelecem a fronteira entre pouquíssimos e muitos. Tenho medo da resposta.
Como se sabe, os Senhores Bispos também sabem, importa não esquecer um aspecto fundamental, a maioria dos abusos sexuais sobre crianças ocorre nos contextos familiares e envolve família e amigos e figuras percebidas pelas crianças e jovens como protectoras e “amigas”, por exemplo os membros da Igreja.
Este cenário ajuda a explicar a grande dificuldade e culpa que crianças e jovens vítimas de abuso sentem em denunciar o facto de que pessoas que cuidam delas lhes façam mal e a falta de credibilidade eventual das suas queixas bem como das consequências para si próprias, uma vez que se sentem quase sempre abandonadas e sem interlocutores em que possam confiar. Esta questão ajuda a explicar tantas dificuldades na investigação, nas queixas e nas provas.
Neste quadro continua a ser absolutamente necessário que as pessoas que lidam com crianças, designadamente na área da saúde e da educação, sejam capazes de “ler” os miúdos e os sinais que emitem de que algo se passa com eles.
Esta atitude de permanente, informada e intencional atenção aos comportamentos e discursos dos miúdos é, do meu ponto de vista, uma peça chave para minimizar a tragédia dos abusos.
O que não é aceitável é minimizá-la porque os casos são reduzidos. Insisto, um já seria demais

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

EM DIA DE S. VALENTIM

Peço desculpa mas ainda uma outra reflexão neste dia de S. Valentim, o Dia dos Namorados.
As relações de namoro integram-se naturalmente num universo que de forma simples podemos referir como sexualidade e constituem um padrão de comportamento que apesar de sujeito a diferenças culturais ou de outra natureza é … de toda a gente.
No entanto, existe um grupo de pessoas para as quais a questão do namoro e da sexualidade nem sempre é devidamente valorizada e considerada pela comunidade alargada, as pessoas com deficiência.
Trata-se de uma questão muito importante, respeitante a direitos, qualidade de vida e felicidade.
É fundamental o conhecimento e a reflexão sobre estas matérias apesar da sua enorme complexidade, que, aliás, as pessoas mais próximas dos problemas, pais, técnicos e as próprias pessoas, reconhecem.
É certo que para muitos de nós os problemas que afectam as minorias são … problemas minoritários pelo que não nos afectam. No entanto, como tantas vezes afirmo, os níveis de desenvolvimento de uma sociedade também se aferem pela forma como lida com os problemas de grupos sociais minoritários.
Assim, a reflexão e conhecimento mais alargado sobre estas questões são desde logo um contributo para combater um enorme equívoco instalado, sexualidade na deficiência não é a mesma coisa que deficiência na sexualidade.
A experiência e alguns estudos dizem-me que este equívoco está também presente em discursos e atitudes de famílias e técnicos para além da comunidade em geral.
É uma questão complexa, no caso das pessoas com deficiência cognitiva mais severa pode colocar-se a questão da autodeterminação e do risco de abuso, por exemplo, sendo muito contaminada pelos valores dos indivíduos, dos técnicos e das famílias incluindo, naturalmente, as das pessoas com deficiência, quer relativos à sexualidade, quer relativos à vida e direitos das pessoas com deficiência. Aliás, com demasiada frequência parece esquecer-se que muitos dos problemas que as pessoas com deficiência e as suas famílias sentem, não são matérias de opção, são matéria de direitos.
Acresce ainda que em muitas circunstâncias é uma matéria da qual "se foge" pois subsistem as dúvidas sobre o que pensar, como agir ou atitudes a adoptar
Fica esta nota para que não nos esqueçamos.

MALTRATAR NÃO É GOSTAR


Em dia de S. Valentim e sem querer bulir com a simpatia terna que nos merece a referência ao enamoramento consideremos as relações de namoro mas no seu lado B, sim, existe o lado B desta relação que deveria ser bonita. Tem como face as diversas formas de violência presentes nas relações entre gente que namora.
Foi agora conhecida uma nova actualização do estudo sobre a Violência no Namoro 2019, que a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) tem vindo a realizar nos últimos anos tendo como participantes jovens.
O número de jovens, que namoram ou já namoraram que refere ter sofrido pelo menos uma forma de violência por parte do parceiro(a) é de 58% sendo que em 2018 era de 56%. Um dado ainda mais inquietante é manutenção de taxa dramaticamente elevada de jovens que que entendem estas práticas como “normais”, 67% no inquérito deste ano e 68,5% no estudo anterior.
Os comportamentos considerados envolvem difamação, o recurso às redes sociais para chantagear o outro, o hábito de intromissão no telemóvel ou nos bolsos, as agressões físicas e a coacção para práticas sexuais não desejadas, etc.
Um outro trabalho também agora divulgado, “Violência no Namoro em Contexto Universitário: Crenças e Práticas”, promovido pela Associação Plano i mas envolvendo apenas jovens e jovens adultos com frequência ou formação universitária” confirma os indicadores do trabalho desenvolvido pela UMAR, 54,7% dos jovens em Portugal já sofreram pelo menos um acto de violência no namoro. Sublinho que estamos a falar de estudantes universitários o que tora tudo ainda mais preocupante.
O que ainda me parece mais dramático é a manutenção sem grandes alterações destes indicadores ao longo dos anos o que talvez ajuda a perceber como a violência doméstica parece indomesticável.
Também hoje, Dia dos Namorados, o Governo divulga uma campanha, #NamorarMemeASério, com o objectivo de eliminar a violência no namoro identificando as suas diferentes forma e o seu entendimento como “natural”.
Os dados convergem no indiciar do que está por fazer em matéria de valores e comportamentos sociais. Acresce que boa parte das situações de abuso não são objecto de queixa.
Este conjunto de dados é preocupante, gostar não é compatível com maltratar, mas creio que não é surpreendente. Os dados sobre violência doméstica em adultos que permanece indomesticável deixam perceber a existência de um trajecto pessoal anterior que suporta os dados destes e de outros trabalhos. Aliás, nos últimos anos a maioria das queixas de violência doméstica registadas pela APAV foram de mulheres jovens.
Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem mais lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores sociais presentes em cada época. De facto, e reportando-nos apenas aos dados mais gerais, é criticamente relevante a percentagem de jovens, incluindo estudantes universitários, que afirmam um entendimento de normalidade face a diferentes comportamentos que evidentemente significam relações de abuso e maus-tratos.
Como todos os comportamentos fortemente ligados à camada mais funda do nosso sistema de valores, crenças e convicções, os nossos padrões sobre o que devem ser as relações interpessoais, mesmo as de natureza mais íntima, são de mudança demorada. Esta circunstância, torna ainda mais necessária a existência de dispositivos ao nível da formação e educação de crianças e jovens; de uma abordagem séria persistente nos meios de comunicação social; de um enquadramento jurídico dos comportamentos e limites numa perspectiva preventiva e punitiva e, finalmente, de dispositivos eficazes de protecção e apoio a eventuais vítimas.
Só uma aposta muito forte na educação, escolar e familiar, pode promover mudanças sustentadas nesta matéria. É uma aposta que urge e tão importante como os conhecimentos curriculares.
Entretanto e enquanto não muda, "só faço isto, porque gosto de ti, acreditas não acreditas?"

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

EM FAMÍLIA, OUTRO DIÁLOGO IMPROVÁVEL


Estavam na sala e como um tom de voz já estava um pouco alterado dava para ir apanhando.
...
És a pessoa mais estúpida que conheço. Cada vez sou menos capaz de perceber como alguma vez gostei de ti.
Não sejas idiota, o enganado fui eu. Deixei-me arrastar pela tua conversa de menina fina e com estudos. Longe estava de imaginar como alguém pode ser tão desagradável e egoísta.
Algumas amigas avisaram-me de que não prestavas, demorei a entender, mas ao fim de doze anos de casamento, se é que pode chamar casamento a este inferno, já não tenho dúvidas, odeio-te.
Não fosse o que a família acharia de tudo isto não aguentava nem mais um minuto nesta casa. A tua presença e proximidade são insustentáveis.
Olha, vê se te calas que a Andreia vem aí.
...
Quando é que jantamos? Tenho o TPC para acabar.
Vamos já jantar, estávamos mesmo a falar sobre ti e como estamos contentes contigo. Daqui a cinco minutos podes vir para a mesa. E depois, enquanto jantamos aproveitamos para conversar. Não gosto daquelas famílias que mal falam uns com os outros.
Então vou ao quarto mandar uma mensagem à Carla.
...
Devem pensar que sou parva. Já não posso mais. Nunca mais cresço para não ter que estar em casa a aturá-los, sempre a fingir. Ganda seca.

É sempre preferível uma boa separação a uma má família, as crianças percebem muito bem quando têm pais casados por fora e “descasados” por dentro. Compete aos adultos o esforço, por vezes pesado, de construir uma boa separação. Aliás, provavelmente, só assim terão serenidade para voltar a construir uma boa família.
Importante mesmo é que também todos os que de nós lidamos com crianças e com os seus problemas possamos ajudar os pais neste entendimento, poupando sofrimento a adultos e crianças e mesmo decisões de guarda parental pouco amigáveis para o superior interesse da criança.

A METADE DO CÉU


O estudo “As mulheres em Portugal, hoje: quem são, o que pensam e como se sentem” coordenado por Laura Sagnier por iniciativa da Fundação Francisco Manuel dos Santos estabelece um retrato elucidativo da condição das mulheres em Portugal.
As situações de desigualdade no âmbito profissional traduzido em assimetrias salariais, oportunidades de carreira, precariedade, dificuldade em conciliar carreira com maternidade, etc., mantêm-se de forma significativa.
Também no contexto familiar é elevada a disparidade no envolvimento de tarefas entre homens e mulheres com a sobrecarga destas. A tradição ainda é o que era.
Na verdade, a metade do céu que as mulheres representam carrega um fardo pesado.


terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

A HISTÓRIA DOS ERRANTES


Nas escolas, em todas as escolas, existe um grupo de miúdos, sobretudo na fase da pré-adolescência e adolescência, a que podemos chamar de Errantes, não são, naturalmente, os miúdos que erram no que fazem, são aqueles miúdos que erram pela vida e pela escola numa espécie de deriva sem destino sonhado e, muito menos, com destino desejado.
Parece relativamente fácil identificar os errantes, quase sempre não têm boas notas, embora alguns, poucos, as consigam, quase sempre mostram-nos o seu Errante estado com comportamentos que nos incomodam e embaraçam, de que muitos deles também não gostam, mas que fazem questão de assumir, numa tentativa, perante si próprios, de esconder a condição de Errante e de ganharem uma identidade. Existem também alguns Errantes que parecem transparentes, transparecem tristeza, mal damos por eles de tão invisíveis.
Estes Errantes estragam as estatísticas do sucesso e da qualidade, contribuem para as estatísticas dos problemas e, por isso, não são desejados, sobretudo nas escolas muito boas, que não gostam de Errantes, preferem os Destinados, ou seja, os miúdos que já no presente carregam o destino que lhes sonharam e que eles assumem, desejando ou não.
Os Errantes que agora estão na escola, tal como aconteceu com a maioria dos Errantes que já por lá andaram, serão os Errantes da vida, seja lá o que for a vida que os espera, porque eles não esperam a vida. Imaginam apenas o amanhã, que ainda assim e como se costuma dizer, já é longe demais. E esse amanhã imaginado é rigorosamente igual ao hoje vivido.
Se nos abeirarmos dos Errantes, o que nem sempre conseguimos, sabemos, podemos ou queremos, fazer talvez possamos perceber como é difícil a história dos Errantes. Ninguém gosta de andar perdido.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

AS TERRAS TRISTES COM ESCOLAS FECHADAS


Conforme se lê no DN e se verifica na rede pública das escolas divulgada pelo ME mantêm-se abertas 54 das escolas do 1º ciclo que deveriam estar encerradas por terem menos de 21 alunos. No último ano lectivo foram encerradas 9 e, provavelmente, algumas destas 54 fecharão portas no próximo ano lectivo, aliás, 40 destas escolas estão na lista para encerramento desde 2010/2011. Em alguns casos o encerramento pode ser evitado devido ao aumento de população.
Sinto sempre alguma tristeza quando leio sobre o fechamento das escolas embora também o compreenda em algumas situações. Algumas notas.
Muitas das questões que se colocam em educação, como noutras áreas, independentemente da reflexão actual, solicitam algum enquadramento histórico que nos ajudem a melhor entender o quadro temos no momento. Durante décadas de Estado Novo, tivemos um país ruralizado e subdesenvolvido. Em termos educativos e com a escolaridade obrigatória a ideia foi “levar uma escola onde houvesse uma criança”. Tal entendimento minimizava a mobilidade e a abertura sempre evitadas. No entanto, como é sabido, os movimentos migratórios e emigratórios explodiram e o interior entrou em processo de desertificação o que, em conjunto com a decisão de política educativa referida acima, criou um universo de milhares de escolas, sobretudo no 1º ciclo, com pouquíssimos alunos. Como se torna evidente e nem discutindo os custos de funcionamento e manutenção de um sistema que admite escolas com 2, 3 ou 5 alunos, deve colocar-se a questão se tal sistema favorece a função e papel social e formativo da escola. Creio que não e a experiência e os estudos revelam isso mesmo. Parece pois ajustada a decisão de em muitas comunidades proceder a uma reorganização da rede.
É também verdade que muitas vezes se afirma que a “morte da escola é a morte da aldeia”. No entanto, creio que será, pelo menos de considerar, que os modelos de desenvolvimento económico e social promovem a litoralização e desertificação do interior. Apostas políticas erradas não contrariam este processo, antes pelo contrário, promovem-no fechando os equipamentos sociais, incluindo as escolas, uma das formas evidentes de fixação das pessoas. Cria-se assim um ciclo sem fim, as pessoas partem, fecham-se equipamentos, as pessoas não voltam ou continuam a partir.
Seria fundamental a coragem e a visão para outros caminhos.
Por outro lado, afirmo-o com frequência, a concentração excessiva de alunos não ocorre sem riscos. Para além de aspectos como distância a percorrer, tipo de percurso e apoio logístico, importa não esquecer que escolas demasiado grandes são mais permeáveis a insucesso escolar e exclusão, absentismo, problemas de indisciplina e outros problemas de natureza comportamental como bullying.
Neste cenário, a decisão de encerrar escolas não deve ser vista exclusivamente do ponto de vista administrativo e económico, não pode assentar em critérios cegos e generalizados esquecendo particularidades contextuais e, sobretudo, não servir como tudo parece servir em educação, para o jogo político.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

FALTA DE PROFESSORES, ESTAVA ESCRITO NAS ESTRELAS


No Expresso começa a escrever-se uma crónica de um problema anunciado mas negligenciado, a falta de professores.
Muitos directores reportam a enormes constrangimentos no funcionamento das escolas em condições normais devido à extrema dificuldade de substituição de docentes em situação de baixa, um número crescente. As dificuldades decorrem das condições de precariedade e carreira ou da falta de docentes em alguns grupos.
Recordo que em meados de 2018 e segundo a Fenprof existiriam perto 12000 docentes em situação de baixa médica sendo que em Março, de acordo com a ADSE estavam mais de seis mil professores com baixa médica há mais de sessenta dias a aguardar pela realização de junta médica.
Por curiosidade relembro que também em 2018, em Março, se realizou em Lisboa um encontro internacional organizado pelo ME, OCDE e pela organização Internacional da Educação em que o tema central da cimeira foi o bem-estar dos professores pois “Não se deve perder a oportunidade de colocar o bem-estar dos professores no centro das políticas de todos os países que participam nesta cimeira”, afirmou a propósito o secretário-geral da IE, David Edwards e o bem-estar dos professores terá de ser percebido pelos Governos como “um tema político de primordial importância”. Sabe-se que se os docentes “se sentem bem com eles próprios podem fazer uma diferença positiva no ensino dos seus alunos” lia-se na nota de imprensa.
Em Dezembro escrevi aqui um texto sobre esta questão que de há muito se anuncia a que chamei “Mayday, Mayday” tendo retirado o título de um artigo histórico de um dos meus Mestres, o Professor Joaquim Bairrão Ruivo que também o usou com o sentido que tem na aviação. A situação é mesmo grave.
Num trabalho divulgado no final de 2018 pela OCDE, “Reviews of School Resources: Portugal 2018” retoma-se algo que tem vindo ser questionado nos últimos anos, designadamente nos dados divulgados pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência e em estudos do CNE, o envelhecimento brutal da classe docente e as potenciais consequências negativas e que se agrava a cada ano que passa. Como escrevi várias vezes a este propósito, num país preocupado com o futuro o cenário existente faria emitir, como agora se usa, um alerta vermelho e agir em conformidade.
Ao perfil dos docentes profundamente  inquietante em termos de idade acresce que como é reconhecido em qualquer país, a profissão docente e altamente permeável a situações de burnout, estado de esgotamento físico e mental provocado pela vida profissional, associado a baixos níveis de satisfação profissional. Também o estudo da OCDE refere aspectos desta natureza e numa classe envelhecida o risco é, obviamente, mais elevado.
Dados já conhecidos do estudo realizado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova em parceria com a Fenprof sobre as condições pessoais dos professores considerando dimensões relativas ao “desgaste emocional, “burnout” incluído”, e sobre as condições em que estes trabalham - se há cansaço, desânimo, desmotivação ou, pelo contrário, alegria” em que responderam perto de 16000 docentes e os resultados são elucidativos e inquietantes. Quase metade dos docentes que responderam revela sinais preocupantes de “exaustão emocional”, (20,6% mostram sinais “preocupantes”, 15,6% apresentam “sinais críticos” e 11,6% têm já “sinais extremos” de esgotamento) e mais de 40% não se sentem profissionalmente realizados.
Foram identificados alguns factores explicativos dos resultados, a idade dos docentes, as questões relativas à carreira, organização (burocracia na escola e gestão hierarquizada das escolas) e o comportamento indisciplinado dos alunos.
Na verdade, os dados só podem surpreender quem não conhece o universo das escolas, como acontece com boa parte dos opinadores que pululam pela comunicação social perorando sobre educação e sobre os professores. Aliás, esta situação verifica-se noutros países, sendo que para além dos professores, os profissionais de saúde e de apoios sociais também integram os grupos profissionais mais sujeitos a stresse e burnout.
Este quadro é inquietante, uma população docente envelhecida e a revelar preocupantes sinais de desgaste.
Também se sabe que as oscilações da demografia discente não explicam a saída de milhares de professores do sistema, novos e velhos, como também não explicam a escassíssima renovação, contratação de docentes novos. Sem estranheza, no universo do ensino privado é bastante superior a presença de docentes mais jovens. Não esqueçamos ainda a deriva política a que o universo da educação tem estado exposto nas últimas décadas, criando instabilidade e ruído permanente sem que se perceba um rumo, um desígnio que potencie o trabalho de alunos, pais e professores. Acresce que sucessivas equipas ministeriais têm empreendido um empenhado processo de desvalorização dos professores com impacto evidente no clima das escolas e nas relações que a comunidade estabelece com estes profissionais.
Sabemos que os velhos não sabem tudo e os novos nem sempre trazem novidade. Mas também sabemos que qualquer grupo profissional exige renovação pelas mais variadas razões incluindo emocionais, de suporte, partilha de experiência ou pela diversidade.
As salas de professores são cada vez mais frequentadas, quando há tempo para isso, por gente envelhecida, cansada e pouco apoiada que muitas vezes pergunta "Quanto tempo é que te falta?"
Na verdade, ser professor é uma das funções mais bonitas do mundo, ver e ajudar os miúdos a ser gente, mas é seguramente uma das mais difíceis e que mais respeito e apoio deveria merecer. Do seu trabalho depende o nosso futuro, tudo passa pela educação e pela escola.
Como já estamos a sentir com as situações de baixa médica e de forma mais aguda com a previsível aposentação de milhares de professores num prazo relativamente curto teremos falta de docentes. O problema é que muito pelo contributo de opinadores e por efeitos de algumas das políticas públicas e matéria de educação a profissão de professor perdeu capacidade de atracção.
Seria desejável que não nos esquecêssemos que os sistemas educativos com melhores resultados são, justamente, os sistemas em que os professores são mais valorizados, apoiados e reconhecidos.

sábado, 9 de fevereiro de 2019

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E CRIANÇAS


Continuam verdadeiramente preocupantes e aparentemente incontroláveis os casos de violência doméstica. Para além dos episódio trágicos mais mediatizados, a morte de nove mulheres só em Janeiro, existe um outro grupo de vítimas que, do meu ponto de vista, também não tem a atenção e protecção que deveria, o das crianças envolvidas.
O caso trágico da criança morta pelo pai num cenário de violência doméstica elucida esta preocupação, tanto mais quando se sabe que algumas entidades foram avisadas da situação de risco da criança.
Para além deste caso dramático os dados disponíveis sugerem que em cada ano e em termos médios, 10 crianças ou adolescentes ficam órfãs na sequência de um episódio de violência doméstica. Muitos porque perdem a mãe por homicídio realizado por marido ou companheiro, outros porque os pais foram presos ou se suicidaram após o crime. Não é necessário sublinhar o impacto destas situações na vida de crianças e adolescentes.
Para além desta situação devastadora, julgo importante também chamar a atenção para o número de crianças que assistem a cenas de violência doméstica e dos efeitos dessas vivências.
Como indicador recordo que segundo o Relatório relativo a 2017 produzido pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças, é de 12,5% a percentagem de casos sinalizados devido a exposição à violência doméstica.
Para além de sublinhar os danos potenciais que esta exposição pode provocar nas crianças gostava de chamar a atenção para um outro potencial efeito nas crianças que assistem a episódios, por vezes violentos, de violência doméstica, os modelos de relação pessoal que são interiorizados. Aliás, nos últimos anos tem-se verificado que a maioria das queixas de violência doméstica é apresentada por mulheres jovens o que permite pensar em crianças pequenas que assistirão a estes episódios.
Numa avaliação por defeito aos casos participados de violência doméstica estima-se que cerca de metade serão testemunhados por crianças. Se considerarmos que existem muitíssimas situações não reportadas, pode concluir-se que estas testemunhas, por vezes também vítimas, serão em número bem mais elevado.
Este quadro lembra o velho adágio "Filho és, pai serás", ou seja, num processo de modelagem social muitas crianças tenderão a replicar ao longo da sua vida, em adultos também, os comportamentos a que assistiram e que, tal como podem produzir efeitos traumáticos, poderão adquirir aos seus olhos, infelizmente, um estatuto de normalidade.
Não é certamente por acaso que estudos recentes em Portugal evidenciaram números elevadíssimos de violência em casais de jovens namorados universitários, uma população já com níveis de qualificação significativos.
Neste contexto e com o objectivo de contrariar uma espécie de fatalidade em círculo vicioso, os miúdos assistem à violência doméstica, replicam a violência, a sociedade é violenta, quando crescem são violentos em casa, e assim sucessivamente, importa que os processos educativos e de qualificação sublinhem a dimensão, a formação cívica e o quadro de valores.
Não é nada de novo, a afirmação desta necessidade.
A questão é que o próprio discurso social e político sobre a escola e sobre os professores não me parece contribuir para que se possa encarar a escola com a confiança necessária a que possa cumprir o seu papel e contribuir para quebrar o círculo vicioso do processo de modelagem social envolvido.
Acresce que a intervenção junto das famílias e a tentativa de contrariar dinâmicas disfuncionais, violência doméstica por exemplo, não dispõe dos meios e recursos suficientes.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

BRINCAR É UMA COISA MUITO SÉRIA


Num destes dias encontrei na imprensa on-line, não consigo lembrar-me em que título, mais um trabalho em que se reafirmava as múltiplas vantagens para as crianças que assume o brincar e o brincar na rua.
Muitas vezes aqui abordo esta questão mas nunca é demais chamar a atenção para o papel central do brincar na vida dos mais novos.
Recordo que em relatório recente, a Academia Americana de Pediatria recomendou aos pediatras que na sua prática clínica prescrevam “tempo para brincar”, um bem de primeira necessidade para o bem-estar dos mais novos com impacto em diferentes dimensões.
Insistem que não se trata de uma ideia “frívola” e os actuais estilos de vida de muitas famílias, por diferentes razões, tornam ainda mais importante que se reafirme a importância de brincar. Felizmente, nos últimos tempos começam a ouvir-se muitas vozes nesse sentido. Os que por aqui vão passando reconhecerão a frequência com que aqui refiro esta questão.
Durante os últimos anos foi-se instalando a ideia que o brincar é supérfluo, é perda de tempo, o foco deve ser em trabalhar, em rendimento e resultados, em nome da competitividade e da produtividade, condição para a felicidade.
Com esta visão foram retirando aos miúdos o tempo e o espaço que nós tínhamos e empregam-nos horas sem fim nas fábricas de pessoas, escolas, chamam-lhes. Aí os miúdos trabalham a sério, a tempo inteiro, dizem, pois só assim serão grandes a sério, dizem também.
Às vezes, alguns miúdos ainda brincam de forma escondida, é que brincar passou a uma actividade quase clandestina que só pais ou professores “românticos”, “facilitistas”, “eduqueses” ou “incompetentes” acham importante.
Muitos outros miúdos vão para umas coisas a que chamam “tempos livres”, que de livres têm pouco, onde, frequentemente, se confunde brincar com entreter e, outras vezes, acontece a continuação do trabalho que se faz na fábrica de pessoas, a escola.
Também são encaixados em dezenas de actividades fantásticas, com nomes fantásticos, que promovem competências fantásticas e fazem um bem fantástico a tudo e mais alguma coisa.
O brincar da infância vai-se encurtando, algum dia os miúdos vão nascer crescidos para já não precisarem de brincar.
Era bom escutar os miúdos. Se lhes perguntarem (das diferentes formas de fazer perguntas) vão ficar a saber que brincar é a actividade mais séria que realizam, em que põem tudo o que são, sendo ainda a base de tudo o que virão a ser e a saber.
No caso mais particular mas também essencial do brincar na rua sabemos que as questões da segurança e, sobretudo dos estilos de vida e a mudança verificada nos valores e nos equipamentos, brinquedos e actividades dos miúdos, o brincar na rua começa a ser raro.
Embora consciente das questões como risco, segurança e estilos de vida das famílias, creio que seria possível alguma oportunidade de “devolver” aos miúdos o circular e brincar na rua, talvez com a supervisão de velhos que estão sozinhos as comunidades e as famílias conseguissem alguns tempos e formas de ter as crianças por algum tempo fora das paredes de uma casa, escola, centro comercial, automóvel ou ecrã.
Ao reescrever estas notas lembrei-me com enorme nostalgia dos tempos em que jogava ao berlinde. Há muitos anos.
Lembro-me da minha bela colecção sempre em actualização, com os berlindes, também lhes chamávamos bilas ou carolos, as esferas de metal, os abafadores, as leiteiras, as pilecas, os olho-de-boi, etc., numa variedade de cores e valores que serviam de moeda de troca para gerir as colecções ou se perdiam e ganhavam no jogo das covas.
Não era um jogador de excelência mas tinha um divertimento excelente. A minha mediana pontaria não chegava para bater o genial Xico, o imbatível cromo do berlinde na minha rua.
Nos jogos com o Xico as apostas tinham que ser pelo mínimo, caso contrário arriscávamos um rombo sério na colecção. Tentávamos compensar escolhendo adversários mais acessíveis, com um ranking mais baixo como hoje se diria, que nos davam alguma garantia de acabar a sessão com mais uns berlindes no saco.
Usava os berlindes nuns sacos pequeninos de pano que a minha mãe, costureira, fazia aproveitando as sobras do trabalho dela. Um saco de berlindes e uma fisga constituíam o equipamento de saída para a rua, o cenário de todas as brincadeiras. É verdade, já houve tempos em que se brincava na rua.
Os renhidos jogos eram pretexto para acaloradas discussões, às vezes, mais do que discussões, mas crescíamos assim, percebendo limites e fronteiras para além, deve dizer-se, do peso das mãos dos outros que, à vez, eram nossos amigos ou nossos adversários. Nas mais das situações os conflitos surgiam da excessiva “elasticidade” com que medíamos o palmo, o ganso como lhe chamávamos, que nos levava a ficar mais perto do berlinde inimigo, facilitando a tarefa de lhe acertar. Lembro-me de a importância de, ao aceitar ou fazer um desafio para um jogo, gritar primeiro “marralhos p’ró carolo ao ganhas” que nos assegurava ser os últimos a iniciar o jogo e já ter os berlindes adversários no teatro de operações, como agora falam e escolher a táctica.
Na minha terra, há já alguns anos que não vejo os miúdos a jogar ao berlinde, devem, seguramente, estar a fazer outras tarefas que dão mais resultado e são boas para mais áreas do seu desenvolvimento, não podem perder tempo com actividades estúpidas e antigas.
Na verdade, também já não podem brincar na rua, é perigoso e a rua também já não permite as covinhas, só em zonas de terra.
Na verdade, também já quase não brincam.
Mas o futuro é risonho e feliz. Produzem e aprendem coisas fantásticas desde pequenos, para não perder tempo. Tempo é dinheiro.