No âmbito da realização da 1.ª Conferência Mundial sobre Maus Tratos na Infância, da Organização das Nações Unidas em Bogotá na semana passada em Bogotá, mais alguns países decidiram proibir os castigos corporais a crianças alargando o já significativo número de países em que isso acontece. Relembro que o Código Penal Português estabelece desde 2007 no Arº 152 a proibição dos “castigos corporais”.
No entanto, a realidade para
muitas crianças ainda integra os castigos corporais.
Em 2022 o Instituto de Apoio à
Criança apresentou a campanha “Nem Mais uma Palmada” que tem como objectivo o
minimizar ou acabar com os castigos corporais e promover outros procedimentos
no âmbito da acção educativa familiar. Realizou também um estudo, “Será que uma
palmada resolve?”, sobre procedimentos adoptados no âmbito da acção educativa
familiar. Responderam 1943 pessoas, 73% com filhos e 44% a trabalhar com
crianças. Cerca de 30% dos inquiridos “ainda consideram poder usar-se castigos
corporais” em situações como o não-cumprimento de regras ou limites definidos
por familiares, a “má criação” ou a desobediência.
Quer em termos profissionais,
designadamente em muitas conversas com pais, quer em notas aqui deixadas, tenho
abordado frequentemente esta temática.
Num trabalho divulgado em 2021
desenvolvido por investigadores da Universidade de Xangai evidenciou-se uma
relação autoritária dos pais para com os filhos tem impactos negativos no seu
desenvolvimento. O estudo, recorrendo a técnicas de electroencefalografia,
evidenciou atraso no desenvolvimento das funções cerebrais em comparação com
outras crianças educadas através de estilos parentais menos autoritários.
Ao abordar estas questões prefiro
a terminologia “parentalidade severa" que me parece mais adequada e também
usada na literatura e envolve recorrer com regularidade ao gritar, bater ou
outro tipo de comportamento coercivo, humilhação, além de ameaças físicas e
verbais como forma de punição.
A referência ao impacto negativo
da parentalidade severa não é nova, embora seja importante sublinhar nesta
investigação as consequências no desenvolvimento de funções cerebrais.
Recordo um trabalho desenvolvido
pela Universidade de Pittsburgh nos EUA divulgado na Society for Research in
Child Development em 2017, “Harsh parenting predicts low educational attainment
through increasing peer problems”. Considerando diferentes variáveis foram
seguidos 1482 alunos durante nove anos e evidenciou-se uma relação sólida entre
o que foi considerado “parentalidade severa” e baixo rendimento escolar e
problemas de comportamento nas crianças envolvidas nesse “modelo” de educação
familiar.
Em 2018 a Academia Americana de
Pediatria produziu novas orientações sobre a parentalidade afirmando
veementemente que bater nas crianças, insultá-las, humilhá-las ou
envergonhá-las são comportamentos a banir.
Um trabalho mais recente de Liz
Gershoff divulgado em 2021 é também elucidativo sobre a mesma questão.
Dados divulgados em 2019
relativos ao Projecto Geração XXI, do Instituto de Saúde Pública da
Universidade do Porto, que acompanha desde o nascimento um número muito
significativo de crianças na área metropolitana do Porto, mostraram que 75% das
crianças com 7 anos serão vítimas de agressão psicológica ou castigos corporais
em contexto de educação familiar. Cerca de 10% sofreram agressões graves (como
bater com cinto ou objecto contundente ou queimar) com frequência. As
avaliações mostram que que impacto na saúde é significativo, 58% apresentam
valores de inflamação elevados, quase o dobro das que não são vítimas de
maus-tratos.
Como acima referi, no trabalho
realizado com pais é muito frequente estas questões serem afloradas assim como
é habitual que quando na imprensa se refere comportamentos menos positivos de
crianças ou adolescentes são inúmeros os comentários e discursos sobre a
alegada falência das famílias na definição de regras e limites nos
comportamentos de crianças e adolescentes. Muitos destes discursos e
comentários têm sido acompanhados de referências ao facto de não se recorrer a
umas “palmadas”, à “pedagogia do chinelo” ou outras variações no mesmo tom, com
uns “tabefes” a coisa resolvia-se. Muitas vezes as referências são mitigadas
com o recurso à ideia de “palmada educativa” ou a variante “palmada pedagógica”.
As alusões às dificuldades das
famílias ou da escola na regulação dos comportamentos de crianças e
adolescentes podem ser justificáveis, mas lidar com estas dificuldades através
do bater parece-me na verdade preocupante para além da sua potencial ineficácia.
Ninguém pode garantir que foram ou que são as “tareias” que constroem pessoas
de bem.
Confesso que sinto alguma
dificuldade em compreender como um comportamento de violência de várias formas
dirigido a uma criança possa ser algo de educativo.
No entanto e dito tudo isto,
também entendo que comportamentos inadequados ou incompetentes não significam
necessariamente que estejamos perante pessoas, pais, más ou incompetentes.
Todos nós, alguma vez, agimos de
uma forma menos ajustada ou adequada com os nossos filhos e isso não nos
transforma em pessoas más, significa que somos apenas pessoas, que somos
imperfeitos, por assim dizer e para utilizar uma expressão actual.
Assim sendo, creio que devemos
ser cautelosos, quer na defesa da "palmada ou estalada educativa",
quer na diabolização definitiva de pais que numa situação eventualmente
esporádica e de tensão assumem um comportamento de que podem ser os primeiros a
arrepender-se.
Esta nota, não branqueadora ou
desculpabilizante de nada, pode não ser particularmente simpática, mas estou
cansado, tanto de discursos de legitimação do efeito "educativo" da
violência e outros comportamentos integrados na parentalidade severa dirigidos
a crianças, como de discursos demagógicos e, por vezes hipócritas, que clamam
pelo "crucificação" cega de uma pessoa, o outro que bate, mas são
produzidos por gente desatenta ou mesmo autora ou apoiante doutros
comportamentos dirigidos a miúdos tão indignos quanto a "palmada"
ainda que menos visíveis.
Finalmente, a experiência
mostra-me que muitos pais desejam ou exprimem a necessidade de alguma ajuda ou
orientação nestas questões.
PS – O texto de Beatriz Imperatori,
Directora Executiva – UNICEF Portugal, “Violência contra crianças. É tempo de agir!” no Público é um retrato preocupante da situação mundial e portuguesa no
que respeita à forma como são (des)tratadas muitas crianças.
“Mas as crianças, Senhor, porque
lhes dais tanta dor?!....”, já se interrogava Augusto Gil.
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