AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

terça-feira, 30 de junho de 2020

EXAMES E EQUIDADE EM TEMPOS ATÍPICOS


Merece reflexão o texto “Reabrir as escolas para a realização de exames foi um erro”, hoje no Público.
Os autores questionam a decisão de retomar aulas presenciais no ensino secundário subordinada à realização dos exames nacionais.
Esta decisão e a manutenção dos exames acentuará a desigualdade de oportunidades entre os alunos e defendem a possibilidade de ordenar os alunos no acesso sem recurso aos próximos exames  e em condições de maior equidade.
(…)
Não é essencial, para uma ordenação equitativa dos candidatos ao ensino superior, a realização dos exames neste ano. Os alunos do 12.º ano, que constituem o grupo de candidatos potenciais ao ensino superior nos próximos meses, já realizaram dois exames nacionais no final do ano letivo passado. Todo o seu percurso de ensino secundário, até março do ano letivo corrente, foi feito com aulas presenciais. É, por isso, possível assegurar uma ordenação dos candidatos ao ensino superior que tenha em conta tanto o percurso escolar ao longo do ensino secundário, como o desempenho em exames de âmbito nacional. (…)
Durante o terceiro período as circunstâncias de funcionamento do secundário já sustentavam uma forte preocupação por várias razões e que aqui fui expressando.
Para os alunos que não frequentavam as aulas presenciais, as escolas não estavam obrigadas a disponibilizar ensino à distância nas disciplinas em que existiam aulas presenciais a decorrer.
Por outro lado, as escolas definiram a carga horária das disciplinas com ensino presencial consoante as disponibilidades logísticas existindo turmas em que terá sido leccionadas metade da carga horária da disciplina.
Neste contexto como e com que critérios de equidade seria feita a avaliação dos alunos, com carga horária total, parcial ou que não foram às aulas presenciais e não tiveram ensino à distância? Qual o nível de preparação para os exames, a razão óbvia para se voltar às aulas presenciais.
Não seria, pois, estranho mais do que habitualmente acontece, a corrida aos centros de explicações. Sendo habitual esta “corrida”, sem aulas presenciais “normais” com uma alternativa com alguns constrangimentos como é o “ensino à distância de emergência”, a procura desta ajuda será certamente bem maior. Mesmo sem os Centros de explicações “oficialmente” abertos assisto na minha zona à azáfama das explicações.
Se como também é reconhecido, a capacidade das famílias para acederem a estes apoios “extra” constitui um factor de potencial desigualdade entre os alunos, na situação actual com quebras de rendimento significativas em muitos agregados familiares o risco de desigualdade é ainda mais preocupante.
Acresce também a situação dos alunos que por razões de saúde pública tiveram aulas suspensas ou sentiram dificuldades no acesso às aulas, alunos com necessidades especiais com dificuldades de acesso aos dispositivos de apoio, etc.
Por outro lado e como referem os autores a pópria realização dos exames levanta questões logisticas e de saúde pública que também merecem atenção.
Numa eventual decisão pela eventual não realização de exames na qual não acredito seria necessário ponderar impacto no enviesamento da ordenação dos efeitos da inflação da avaliação interna em algumas escolas, sobretudo privadas, No entanto, talvez de considerar a ideia.
Apesar de entender que merece discussão tenho defendido por aqui que seria prudente adiar mais os exames de modo a permitir com acrescida segurança aulas presenciais em situação de maior equidade. Não me parece que não fosse acomodável no ensino superior começar os trabalhos do 1.º ano algum tempo depois. Como também creio que seria possível adiar umas semanas o início das aulas no ensino secundário do próximo ano lectivo para os alunos que neste momento estão no 9.º. 10.º e 11.º
No que respeita ao ensino superior não seria a primeira vez que tal acontecia e não seria algo que comprometesse a carreira escolar dos novos alunos e o funcionamento dos estabelecimentos de ensino superior. .


segunda-feira, 29 de junho de 2020

A HISTÓRIA DO PAPAGAIO


Num período de avaliação e de divulgação de rankings que mostram o que sabemos e com vantagens por confirmar, uma história de avaliação escolar lá para trás no tempo.
Há mais de 40 anos estava eu a assistir à prova oral do meu colega Fernando na disciplina de Ciências Naturais, acho que era assim que se chamava, do 5º ano do antigo curso do Liceu, quando o Setôr Jardim, professor competente mas demasiado sério para o nosso gosto, disse ao meu colega para ir buscar uma peça que se encontrava numa mesa com materiais de apoio às provas. Tratava-se de um papagaio embalsamado, empoleirado num pequeno tronco.
Com o papagaio na mão do Fernando, o Setôr Jardim exigiu a classificação do bicho. O meu colega respondeu terminando com a referência à pertença ao grupo das Trepadoras, não sei se será ainda uma designação actual. Inquirido sobre a justificação, respondeu que se devia ao facto de estar equipado com dedos opostos nas patas que optimizavam a função de trepar.
Num raro momento de humor, mas mantendo a habitual sisudez, o professor perguntou-lhe como sabia ele tal coisa se desde o início agarrava o papagaio pelas patas. Pois o meu amigo Fernando respondeu tranquilamente que tinha um papagaio em casa. O exame acabou por ali, com sucesso, diga-se.
Tal como naquele tempo, creio que uma parte da nossa escola ainda desconhece, ou não quer conhecer, o que os miúdos já sabem quando se sentam, seja aprendido em casa, nos ecrãs onde se fecham ou noutro qualquer cenário que não a sala de aula. O que há para saber está dentro do manual, dos manuais, dentro da sala de aula. O que os miúdos carregam, bom ou mau, muito ou pouco, ou não é valorizado ou nem sequer é conhecido.
A escola é sempre melhor sucedida quando conhece o que os miúdos sabem e os leva a um passo adiante.
Como sempre digo, a gente só aprende a partir do que já sabe. Por isso é que muitos miúdos experimentam sérias dificuldades para darem passos na aprendizagem que, algumas vezes, são maiores que as suas pernas.

domingo, 28 de junho de 2020

DOS RANKINGS


Aí está o produto sazonal que dá pelo nome de “rankings escolares” nas suas diferentes declinações. Agora, 2019.
Apesar de continuar com dificuldade em defender a sua bondade não tenho uma atitude fundamentalista face à sua construção considerando, sobretudo, a evolução que se tem verificado nos últimos anos, quer na disponibilização de informação por parte do ME para além dos “meros” resultados da avaliação externa, quer na forma como essa informação é tratada e divulgada por diferentes entidades. Continuo também a sentir-me incomodado com as estratégias de marketing dos negócios da educação a propósito da divulgação dos rankings.
A mais frequente defesa da sua construção assenta na importância da avaliação externa. No entanto, é evidente que a imprescindível avaliação externa não tem que, necessariamente, obrigar à construção dos rankings que, aliás, alguns países não realizam. Curiosamente, em Singapura terá sido decidido em 2018 abolir a construção e divulgação de rankings escolares com base nos resultados em exames bem como não divulgar outras informações de natureza comparativa sobre o desempenho escolar dos alunos.
A decisão, de acordo como o Ministro da Educação, Ong Ye Kung, assenta no princípio a promover junto dos alunos e famílias que “aprender não é uma competição”. Aliás, é interessante considerar toda a argumentação e sustentação da medida. A decisão é ainda mais surpreendente considerando a posição cimeira habitualmente ocupada por Singapura nos estudos comparativos internacionais e na sua habitual defesa destes dispositivos.
Mas de facto, existindo e apesar das mudanças que se têm verificado que mostram, ou não, os rankings?
Dificilmente mostrarão algo de substantivamente diferente.
Mostram que genericamente as escolas privadas apresentam melhores resultados e que também existem escolas privadas com resultados mais baixos. 
Mostram que a maioria das escolas que maior discrepância apresenta entre a avaliação externa e a avaliação interna, sendo esta "inflacionada", são privadas sendo algumas persistentes na tarefa.
Ao contrário, mostram das que se revelam mais exigentes a maioria é do ensino público.
Mostram que existem escolas públicas com bons resultados e escolas públicas com resultados menos bons.
Mostram que existem escolas que face ao contexto sociodemográfico que servem conseguem bons resultados ou, pelo menos, progresso no trajecto dos alunos e que existem escolas públicas que ainda não conseguem contrariar o destino de muitos dos seus alunos.
Mostram que o nível de retenção é elevado e que o recurso à retenção não faz subir os resultados dos alunos.
Mostram que a menor dimensão das turmas pode em escolas em contextos menos favoráveis promover a melhoria de resultados. Curiosamente, na passada semana não avançou uma proposta de redução do número de alunos por turma.
Mostram que a tradição ainda é o que era, pais (mães) mais escolarizados, têm, potencialmente, filhos com melhores resultados.
Mostram que as escolas públicas são as que mais progressos promovem nos alunos.
Mostram que nas escolas com melhores resultados, em regra, são as que têm menos alunos abrangidos pela Acção Social Escolar.
Mostram que a escola, os professores, fazem a diferença.
Mostram ainda que se continua a falar de “melhores escolas” e “piores escolas”
Mostram que …
Enfim, os rankings mostram tudo, só não mostram o que se fará a seguir com a informação que os rankings mostram. Na verdade, também não mostram o tanto que não se consegue medir mas se pode avaliar e que é tão essencial como o que se mede.
Três notas finais.
1 - A propósito de rankings - Gert Biesta da Universidade Stirling numa obra notável, "Good Education in a Age of Measurement - Ethics, Politics, Democracy", afirma que uma obsessão centrada na medida, assenta na gestão continuada de uma dúvida, "medimos o que valorizamos ou valorizamos o que medimos?"
2 - Por onde andam nos rankings os alunos com necessidades educativas especiais?  (desculpem o termo não inovador dentro do novo paradigma mas ainda não me habituei às novas "não categorias" como "adicionais", "selectivas" ou "adicionais").  Provavelmente à espera da operacionalização de um novo indicador-chave da avaliação das escolas, a inclusão de cuja consideração na construção dos rankings não me dei conta.
3 – Continuo com a dúvida expressa por Gil Nata e Tiago Neve do Centro de Investigação e Intervenção Educativas da U. do Porto que num texto no Público a propósito dos rankings do ano passado escreviam, “Assim, passados 20 anos, a pergunta impõe-se onde estão as evidências de que a publicação dos rankings tenha contribuído para a melhoria do sistema educativo?”
Para o ano cá estaremos a tentar perceber que efeito que terá nos rankings o atípico ano que está a terminar.

sábado, 27 de junho de 2020

"MIMO A MAIS" É COISA QUE NÃO EXISTE


No Público encontra-se uma entrevista com o pediatra Hugo Henriques que merece reflexão e reconhecimento pelo trabalho que desenvolve. Achei particularmente interessante a referência a uma das questões que mais tenho abordado no trabalho com pais, a ideia dos “mimos a mais”. Hugo Henriques considera que “Nenhuma criança se estraga por excesso de mimo; estraga-se muita gente por falta dele”.
Mas a verdade é que com demasiada frequência se afirma que eventuais comportamentos inadequados de crianças e adolescentes se devem a “mimos a mais”. Como também já referi em colaborações com a imprensa, designadamente num texto para a Visão, tal entendimento “tira-me do sério”, não existem "mimos a mais". Ponto.
Tal justificação costuma servir depois para se afirmar a ideia de que as crianças hoje em dia têm muitos mimos que as “estragam”, dito de outra maneira, têm “afecto” a mais ou ainda “gosta-se de mais” das crianças. Estes discursos, que alguns profissionais destas áreas também subscrevem, merecem-me alguma reserva pois assentam, do meu ponto de vista, num equívoco que a entrevista de Hugo Henriques ajuda a combater.
De uma forma geral, as crianças não terão afecto, mimos, a mais, poderão, isso sim, ser objecto de “mau afecto” ou se quiserem, de "maus mimos". É essa falta de qualidade que lhes poderá ser prejudicial. Não é mau por ser muito, é mau porque asfixia, é tóxico, não deixa que os miúdos cresçam, distorce a percepção da criança de si própria e do seu funcionamento, não permite o estabelecimento de uma relação saudável, protectora e promotora da autonomia das crianças, uma condição fundamental para o seu desenvolvimento positivo. No entanto, não é este tipo de reflexão que leva muitos de nós a falar dos “mimos a mais”.
Insisto, as crianças não têm elogios ou mimos a mais. O que se passa mais frequentemente é que recebem “nãos” de menos. Na verdade, muitos adultos, pais, sendo quase sempre capazes de dar os mimos, mostram-se muitas vezes incapazes de dar os “nãos”, de estabelecer os limites e as regras que, como sempre digo, são tão necessárias às crianças como respirar e alimentar-se. Estes “nãos” e para utilizar a mesma terminologia, são outros mimos imprescindíveis na educação de crianças e adolescentes nos seus diferentes contextos de vida.
As regras e os limites são bens de primeira necessidade. Tal como com os afectos, nenhuma dieta educativa pode prescindir de regras e limites como também subscreve Hugo Henriques.
Ficando sem “nãos” muitas crianças, a coberto da ideia dos “mimos a mais”, transformam-se em pequenos ditadores que infernizam a vida de toda a gente, a começar pela sua própria vida. Não crescem saudavelmente.
Neste contexto, apoiar e ajudar os pais a desenvolverem de forma confiante comportamentos de disponibilidade e escuta de crianças e adolescentes, a assumirem com firmeza e sem culpa a necessidade de definir regras e limites, de mostrar afecto sem que se sintam a dar “mimos” a mais que “estragam” os filhos, só pode resultar em bom trabalho, para os pais e para os filhos.
De pequenino é que se constrói … o destino.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

DO ANO LECTIVO MAIS ESTRANHO AO ANO LECTIVO MAIS IMPORTANTE


Terminam hoje as actividades lectivas do ano mais estranho de que me lembro em sessenta anos de ligação à escola. Nunca as aulas terminaram sem que os alunos estivessem na sala … de aulas.
A situação desencadeada pela pandemia atropelou alunos, professores e famílias, virou a nossa vida do avesso e criou enormes dificuldades económicas cuja recuperação não será fácil nem breve.
Após o fecho das escolas importa registar o esforço gigantesco de professores e escolas tentando a tarefa impossível, levar a sala de aula para o cantinho de cada aluno.
Impossível por não se poder levar a sala de aula inteira e como a conhecemos dentro de um ecrã, mesmo para os mais familiarizados com este tipo de trabalho. O que foi feito com enorme esforço, com metodologia e dispositivos nem sempre adequados foi um plano de emergência. É verdade que muita gente pareceu deslumbrada e alguns mais prudentes, apesar de reconhecer o esforço, desde cedo referiram enormes limitações e riscos, sobretudo, para as crianças mais novas, menos autónomas e para alunos com necessidades especiais.
Impossível ainda porque os cantinhos dos alunos são muito diferentes, alguns nem sequer têm cantinhos. Dificuldades nos recursos digitais e no acesso à rede, literacia digital e global das famílias, idade, número de crianças em idade escolar em casa, pais em teletrabalho ou a trabalhar fora, famílias monoparentais, etc., são apenas algumas das variáveis associadas ao que será o “cantinho” de cada aluno.
Assim e sem estranheza, mas com enorme preocupação foi-se percebendo como a desigualdade se alimentava, que muitos alunos foram ficando mais distantes da escola ou completamente desligados, que muitos alunos com necessidades especiais ficaram em situação muito complicada. Muitas famílias, dividindo-se entre parentalidade, apoio escolar, logística familiar, teletrabalho ou trabalho no exterior e dificuldades económicas, também nem sempre conseguem a serenidade e disponibilidade necessárias.
O ano termina sem que todos os recursos digitais necessários tivessem chegado a todos os alunos apesar do esforço de escolas, autarquias e outras entidades.
O trabalho realizado foi de uma extrema latitude em metodologias, dispositivos e plataformas utilizadas, actividades e gestão curricular e horários, literacia docente em matéria de e-learning (muito do que foi feito como E@Distância está longe de e-learning) entre outros aspectos.
Estamos agora na fase de avaliação e, naturalmente, a tarefa é difícil na metodologia, conteúdos, objecto, etc., como qui tenho referido e tem sido objecto de muitas referências.
Considerando tudo isto, é crítico que o próximo ano seja mesmo um Novo ano lectivo. Assim como este ano não foi atípico também o próximo o será, mas é urgente a definição tanto quanto possível do que será, não podemos correr o risco de termos como em 2019/2010 sobretudo abordagens reactivas, precisamos de abordagens proactivas.
Ainda não sabemos se será possível como toda a gente deseja o regresso às aulas presenciais ou um modelo misto.
Em qualquer das situações precisamos de definir rapidamente as orientações e os recursos necessários ao primeiro grande grupo de objectivos, reconstruir a relação com a escola perdida por muitos alunos, consolidar aprendizagens, promover aprendizagens e desenvolvimento não realizado.
Precisamos de definir um quadro flexível e não burocratizado de disponibilização de recursos necessários, docentes e técnicos para dispositivos de apoio, tutoria, trabalho com grupos mais pequenos ou de dimensão flexibilizada de acordo com as especificidades de cada contexto/comunidade e a avaliação de docentes e escolas.
Precisamos de definir orientações em matéria de carga horária para alunos e professores, metodologias e formação adequada no caso de alguma parte do trabalho continuar de forma não presencial. A experiência deste terceiro período mostra o quento está por fazer apesar de boas práticas que, como sempre, também acontecem e merecem reconhecimento.
Não me parece que, como já vi, referências a custos incomportáveis dos dispositivos de apoio sejam correctas. Primeiro, porque os custos não sobem de forma aritmética. Não se trata de “dividir as turmas em duas e precisarmos do dobro dos professores”, é disparate, desculpem. Trata-se de, com base nas avaliações e com orientações claras, regulação e autonomia assumirmos o grau de diferenciação nas respostas que precisamos de garantir para promover educação tão bem-sucedida quanto possível para todos os alunos.
Em segundo lugar por que a educação de qualidade e conforme as necessidades é matéria de direitos e é o único caminho que nos leva a um futuro melhor. Acresce que as políticas públicas traduzem uma visão de sociedade e prioridades que a história julgará.
Este ano lectivo terá sido o ano lectivo mais estranho de quem o viveu. O próximo ano lectivo poderá ser o mais importante para quem viveu este.


quinta-feira, 25 de junho de 2020

O TEMPO DA ABSURDIDADE


Os tempos vão estranhos. Os discursos que circulam nos inúmeros suportes são excessivamente contaminados por agendas, muitas vezes ocultas. A produção e circulação de informação e conhecimento são excessivamente determinadas pela “pós-verdade”, pelos “factos alternativos” ou, em inglês é mais sofisticado, em “fake news”.
Os padrões éticos da nossa vida política, económica e social baixaram e a mentira, as mentiras, são regra, deixaram de ser excepção seja qual for a designação. Os últimos tempos têm sido particularmente elucidativos e o impacto da pandemia potencia este clima.
Lembrei-me, nesta inquietação, de uma obra lamentavelmente pouco divulgada, do Professor António Bracinha Vieira, um homem enorme, um mestre que me marcou e recordo de vez em quando pela sua lucidez e densidade cultural e científica. Aliás, há uns dias tinha um artigo Público, “Anotações sobre racismo e raças”.
O livro, "Ensaio sobre o termo da história - trezentos e sessenta e cinco aforismos contra o Incaracterístico" é um notável ensaio de Bracinha Vieira sobre o que designa como tempo da Absurdidade em que predomina o Incaracterístico e organiza-se em 365 parágrafos antológicos, os "aforismos", que combatem esse personagem dominante, o Incaracterístico. A primeira edição do livro é de 1994, foi objecto de alguma discussão num círculo diminuto e é evidente em muitos dos aforismos uma espécie de premonição do que agora vivemos
Partilho convosco os aforismos 15 e 18.
"Instalou-se no jargon cripto-anglófono do Incaracterístico uma inversão radical do sentido das palavras liberal, liberalismo (ainda presas a um étimo comum com liberdade) insinuando sob o totalitarismo da Absurdidade uma negaça de democracia. Decidido a desnaturar conceitos prestigiosos dos quais nem sequer consegue discernir o alcance, o Incaracterístico investe esses termos de um significado oposto ao que lhes cabia."
"A democracia da Absurdidade exerce-se num cenário oposto ao da cidade-estado: o Incaracterístico elege o Incaracterístico, e todas as alternativas em jogo a ele conduzem. Os sujeitos cujos nomes são designados logo surgem nos ecrãs-circo da Grande Absurdidade, preenchendo hiatos entre a publicidade mercantil, sem se aperceberem que são mercadoria de outras espécies. Dali debitam os seus sirénicos e sorumbáticos cantos e a escolha entre eles é o fiel da liberdade do Incaracterístico".
A pensar.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

DA AVALIAÇÃO ESCOLAR E DO PRÓXIMO SETEMBRO


No dia 4 de Abril, ainda antes do início das aulas do terceiro período e a propósito da sempre crítica questão da avaliação afirmei aqui a necessidade de considerar “que competências e saberes decorrentes dos conteúdos curriculares seriam estabelecidas como objectivo e seriam adquiridas em função de uma enorme diversidade nos contextos familiares, nos recursos e competências disponíveis, na diversidade do trabalho realizado por escolas e professores em situações múltiplas na sua natureza, actividades, meios utilizados, duração, dispositivos de apoio, etc.
O esforço será no sentido do cumprimento “integral” dos programas? Dependerá dos ciclos e anos de escolaridade? Teremos as actividades mais dirigidas para “consolidação” e menos peso em “matéria nova? E realizam-se as provas de aferição ou os exames nacionais, sobretudo no básico?
Sim, é necessário avaliar, mas avaliar o quê e como? Avaliar o que avaliaríamos num cenário de “normalidade” com a adaptação possível de dispositivos e suportes?
Como regular e promover equidade também na questão da avaliação.
Já temos a experiência do final do segundo período, temos desafios enormes pela frente, as respostas não são fáceis, antes pelo contrário, mas nesta questão importa, do meu ponto de vista, minimizar o risco da pulverização de entendimentos sobre o “que fazer” e “como fazer”.
A autonomia das escolas é importante, nenhuma dúvida sobre isto, mas importantes também me parecem algumas orientações claras, desburocratizadas, sem um entendimento "mágico" da realidade, nas quais então sim, a autonomia e iniciativa das escolas pode assentar diferenciando e optimizando iniciativas e procedimentos face às especificidades do contexto em que se inscreve.
Creio que só assim será potenciado o esforço gigantesco que professores, pais e alunos estão a desenvolver e a motivação para assim continuar.
Estamos no final do período, não temos exames finais no básico e a imprensa divulga hoje alguns dados de um trabalho realizado pela Universidade Nova durante o mês de Maio inquirindo 2647 docentes da educação pré-escolar ao secundário.
Dos inquiridos, 33,7% realizou testes durante este período escolar e 84.1% assentará a avaliação nos trabalhos realizados em casa e enviados pelos alunos.
No que se refere à gestão dos conteúdos curriculares 68.1% leccionou matéria nova e 26.3% procurou consolidar aprendizagens anteriores.
Ainda em matéria de avaliação, 67.7% dos docentes refere ir considerar a assiduidade e 64.8% a participação nas aulas. Segundo os inquiridos cerca de 73% dos alunos enviaram regularmente os trabalhos solicitados, 15% dos alunos não terão computador ou acesso à internet em casa e 24% dos docentes enviou aos alunos material em papel.
Neste contexto importa ainda recordar que segundo um inquérito realizado pela Fenprof já durante o 3º período a 3548 docentes, 54,8% continuava na altura da resposta sem conseguir contactar com todos os seus alunos, através da net ou por outras vias.
Este quadro sublinha, por um lado a multiplicidade de abordagens de professores e escolas e, por outro lado, a confirmação do cenário de desigualdade entre alunos associada aos contextos familiares e aos recursos disponíveis, mais de 80% dos docentes assentará a avaliação nos trabalhos realizados em casa, opção que se comprende, mas que potencia as disparidades atendendo às assimetrias dos contextos familiares e também considerando os alunos com necessidades especiais. Também pela mesma razão a opção por testes acabará, sobretudo, por certificar a desigualdade. Trata-se na verdade de uma situação extramente complexa e difícil sem soluções óbvias, perfeitas e imediatas no que concerne à avaliação.
Assim e conforme escrevi há dias, parece ser o tempo de se conhecer o que chamei de Plano de Emergência para o Ensino Presencial partindo do pressuposto ainda não adquirido de que teremos aulas presenciais em Setembro.
Em primeiro lugar parece imprescindível conhecer com rigor a situação em cada escola ou agrupamento, quer no volume de situações, quer na sua tipologia.
No entanto e com os indicadores conhecidos, parece possível antecipar algumas medidas que poderão contribuir para a desejada e imprescindível recuperação de muitos alunos e nas quais insisto
Redefinir o número de alunos por turma em contextos mais vulneráveis e ou a constituição de grupos para trabalho tutorial.
Reforçar os dispositivos de apoio específico a alunos com necessidades mais acentuadas e a alunos com necessidades especiais reforçando os recursos das EMAEI. Apesar de ser parte interessada parece-me claro a necessidade de reforço de profissionais de psicologia da educação.
É claro que é necessário investimento em recursos pelo que reforço a minha estranheza pela quase total ausência da educação no Programa de Estabilização Económica e Social e no Orçamento Suplementar apenas se refere a dotação para apoio à transição digital, o novo mantra.
Neste quadro o Ministério admite a contratação de professores “se for necessário”. O que não é particularmente animador.
Como escrevi e reforço, estamos a falar do futuro e do direito à educação.

terça-feira, 23 de junho de 2020

A NOSSA NECESSIDADE DE CONSOLO


A minha avó Leonor usava com muita frequência o termo desconsolo para caracterizar qualquer situação ou facto que considerasse menos positivo, "está um frio que é um desconsolo", "não faças isso, é um desconsolo", "são pessoas infelizes, é um desconsolo". Se ela ainda estivesse connosco muito mais desconsolo haveria de encontrar. Os tempos são tempos de desconsolo.
Stig Dagerman acha que a "nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer". Se se entender como ele que "só existe uma consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, ser inviolável, soberano dentro dos seus limites", então estaremos condenados ao desconsolo. Um homem livre, inviolável, soberano, parece do domínio da utopia, não da distopia em que parecemos viver.
No entanto, sou um tipo moderadamente optimista, quando olho para miúdos pequenos que estão a aprender a ser gente, os meus netos por exemplo, gosto de acreditar que não estarão condenados ao desconsolo. Talvez possamos ser menos exigentes que Dagerman no seu angustiado opúsculo, talvez possamos encontrar consolo, algum consolo.
Do meu ponto de vista a dignidade e o afecto são fontes fundamentais de consolo e acho que para muitos de nós a dignidade e o afecto serão alcançáveis, devendo mesmo ser exigidos.
É, se não deixarmos que nos roubem a dignidade e se encontrarmos o Outro a nossa necessidade de consolo é possível de ser cumprida, quase.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

UM OUTRO LADO DA TRANSIÇÃO DIGITAL


Num trabalho do DN lê-se que em diferentes agrupamentos e escolas muitas famílias de alunos identificados com necessitando de equipamento para acesso ao ensino presencial e integrando, naturalmente, os escalões mais carenciados no âmbito da Acção Social Escolar não procederam ao seu levantamento nas escolas. Estes equipamentos foram colocados à disposição das escolas pelas autarquias e por entidades particulares
Ao que se refere, este procedimento estará associado à obrigatoriedade de devolução deste material até 5 de Julho e à responsabilização das famílias pelo estado dos equipamentos.
Não vou entra numa discussão que dificilmente será conclusiva em torno da interpretação
da recusa de muitas famílias em levantar e usar os equipamentos.
Preocupa-me mais os efeitos.
Numa situação completamente atípica que não terá um fim próximo, dado o volume de situações e numa perspectiva de proteger a equidade claramente ameaçada julgo que, tal como a exigência de devolução dos manuais, a obrigatoriedade de devolução dos equipamentos deveria ser repensada de forma a que as famílias pudessem ultrapassar eventuais razões para o seu não levantamento.
Recordo que ainda não é seguro que em Setembro tenhamos aulas presenciais, que temos pela frente uma gigantesca tarefa de recuperação de aprendizagens não realizadas, de recuperação de alunos que perderam na distância a que ficaram da escola, de recuperação o impacto negativo e significativo que estes meses de confinamento sem escola terão causado em alunos com necessidades especiais.
O deslumbramento com o novo mantra, transição digital, ainda terá que gerir situações como estas, as famílias que estão tão longe que a não percebem.
Sim, é preciso que se responsabilizem, que não se excluam e só a educação e a persistência o podem conseguir.
Desistir não é opção.

domingo, 21 de junho de 2020

AS OBRAS DE ARTE


A terminologia que usamos e que, naturalmente, está em permanente construção oferece, por vezes, algumas situações menos esperadas.
Até à altura em que devido a circunstâncias familiares a comecei a ouvir, não conhecia a expressão "obras de arte" como designação das estruturas mais conhecidas, por mim pelo menos, por pontes. De facto, no mundo da construção civil uma ponte não é uma ponte, é uma obra de arte. Devo dizer que me parece ser uma opção mais bonita e que desconheço a sua origem.
No entanto, depois de alguma surpresa inicial, acho que a designação é apropriada. Uma ponte é um dispositivo, por assim dizer, que, em muitas circunstâncias, permite a ligação mais fácil, ou é mesmo a única forma de ligar dois pontos, duas instâncias, que uma qualquer barreira separa. Dito de outra forma, uma ponte é algo que permite a comunicação.
Embora estejamos, diz-se, num mundo cuja característica mais marcante é a comunicação, tenho para mim que atravessamos uma séria e generalizada dificuldade em comunicar. São demasiados os monólogos e poucos os diálogos. As barreiras, os muros e valores que acreditávamos em desaparecimento emergem e minam a comunicação, os entendimentos.
Devo dizer que gostava de ser eu a estar enganado mas um olhar sobre o que nos rodeia, seja à escala individual, miúdos sós, famílias com baixos níveis de comunicação, seja a escalas de outra dimensão, as dificuldades ou até a ausência de diálogo, de comunicação, é preocupante em muitos contextos de vida. No caso dos miúdos, nas actuais circunstâncias e em relação à escola a comunicação está altamente comprometida para muitas crianças.
Nesta perspectiva e pela sua importância, acho que qualquer dispositivo que promova a comunicação, que aproxime distâncias, que facilite a relação, é sempre uma obra de arte.
E como estamos necessitados de obras de arte. A questão é que a arte nunca parece ser uma prioridade.

sábado, 20 de junho de 2020

E UM PLANO PARA O ENSINO PRESENCIAL?


Começa a ser inquietante o lento desconfinar do Ministro da Educação. Estamos a terminar o este atípico ano lectivo e seria crítico conhecer-se alguma ideia estruturada para o próximo ano lectivo e os enormes de safios que nos esperam.
O Ministro surgiu na tão patética quanto insustentável cerimónia de entrega de um prémio aos profissionais de saúde, a realização em Lisboa dos jogos finais da Champions de futebol, há uns dias admitiu que poderia ser necessário recorrer a um modelo misto entre ensino presencial e ensino à distância e na imprensa de hoje lê-se que em Setembro o ensino será presencial para todos os anos de escolaridade e que ao Expresso o Ministério terá admitido que “em caso de necessidade haverá contratação de mais professores”. É curto, muito curto. Perdão, esqueci-me que também está assente que os pais terão de devolver os manuais. Presumo que seja para consolidar de forma mais eficiente as aprendizagens e conteúdos que este ano não foi possível trabalhar.
Apesar do esforço gigantesco de escolas e professores ficou claro desde o início do E@D de emergência que por várias razões as desigualdades se acentuaram por múltiplas razões. Professores e directores referem o volume significativo de alunos que terá perdido o contacto continuado e envolvido com a escola. Numa reunião de um Conselho Geral de que faço parte admitia-se que em cada turma existiriam 2 a 3 alunos em enorme risco de se perderem. Acresce que mesmo nos alunos que foram acompanhando o trabalho à distância muitas aprendizagens ficaram comprometidas. No caso dos alunos com necessidades especiais as dificuldades foram amplificadas pela não acessibilidade a apoios específicos.
Por outro lado, a dispersão de práticas e metodologias entre as escolas em termos de gestão curricular, gestão das cargas horárias curriculares, metodologias de trabalho e de acompanhamento dos alunos etc., geraram múltiplas situações de desigualdade. Sendo menos referida julgo que a situação dos alunos do 1º ciclo é preocupante pois a todas as dificuldades da situação, acresce a sua menor autonomia e resiliência a um quadro desconhecido e exigente para muitos deles e a que nem sempre a ajuda indispensável e difícil dos pais minimiza.
Recordo o trabalho realizado pela Fenprof a que responderam 3548 docentes sendo que a maioria, 63.9%, dão do 3º ciclo e secundário.
Dos docentes inquiridos, 93,5% dos docentes entende que se agravaram as desigualdades entre alunos sendo que mais de metade, (54,8%) continuava na altura da resposta sem conseguir contactar com todos os seus alunos, através da net ou por outras vias. Por outro lado, dos cerca de 75% de docentes com alunos com necessidades especiais, 40,8% referem desconhecer se as medidas de apoio disponibilizadas a estes estudantes serão as “adequadas” ainda que dos professores que afirmam conhecer o trabalho desenvolvido com os alunos com mais necessidades, 43,9% consideram que as medidas de apoio são “adequadas”.
São ainda interessantes as referências à avaliação associadas à gestão curricular na medida em que são leccionados conteúdos “novos” que não chega aos alunos que estão “distantes” da escola, sendo que 70,5% dos professores afirmam a leccionar novos conteúdos e 47,8% avaliarão estes conteúdos no final deste período.
No que respeita ao seu próprio trabalho, 65% dos inquiridos afirma que a exigência do ensino à distância é mais exigente que o trabalho presencial.
Na generalidade dos países em que as escolas foram encerradas a questão do risco de desigualdade foi considerado significativo, justificou o regresso às escolas em muitos países e a recuperação dos impactos negativos é a grande prioridade tal como também sublinham entidades internacionais ligadas à educação como a UNESCO.
Assim, seria absolutamente necessário conhecer o que poderemos chamar de EnsinoJPresencial de emergência pois não basta regressar à escola para que se apaguem as eventuais consequências de quatro meses sem aulas presenciais
Em primeiro lugar parece imprescindível conhecer com rigor a situação em cada escola ou agrupamento, quer no volume de situações, quer na sua tipologia.
No entanto e com os indicadores conhecidos, parece possível antecipar algumas medidas que poderão contribuir para a desejada e imprescindível recuperação de muitos alunos.
Redefinir o número de alunos por turma e ou a constituição de grupos para trabalho tutorial.
Reforçar os dispositivos de apoio específico a alunos com necessidades mais acentuadas e a alunos com necessidades especiais reforçando os recursos das EMAEI. Apesar de ser parte interessada parece-me claro a necessidade de reforço de profissionais de psicologia da educação.
É claro que é necessário investimento em recursos pelo que reforço a minha estranheza pela quase total ausência da educação no Programa de Estabilização Económica e Social e no Orçamento Suplementar apenas se refere a dotação para apoio à transição digital, o novo mantra.
Neste quadro o Ministério admite a contratação de professores “se for necessário”. O que não é particularmente animador.
Talvez seja de recordar que estamos falar do futuro e do direito à educação e que, desculpem o toque demagógico, esse futuro depende mais do investimento na educação para todos que do investimento no Novo Banco só para alguns.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

CRIANÇAS E ECRÃS


A imprensa divulga hoje um trabalho “Social inequalities in traditional and emerging screen devices among Portuguese children: a cross-sectional study” publicado em BMC Public Health e realizado por uma equipa do Centro de Investigação em Antropologia e Saúde da Universidade de Coimbra que merece reflexão atenta.
O trabalho envolveu 8.430 crianças entre os três e os dez anos e sugere que até aos cinco anos as crianças passam por dia e em média 154 minutos em frente a um ecrã considerando os diferentes dispositivos disponíveis. Nas crianças mais velhas o tempo de exposição é superior, 201 minutos em média. Independentemente de outras variáveis como género, idade ou dispositivo utilizado, o tempo de exposição é sempre maior em famílias de menor estatuto académico e económico.
Recordo que há poucos meses a agência francesa de saúde pública lançou um novo alerta a partir de estudos realizados relativos à exposição excessiva das crianças aos ecrãs, sobretudo nas crianças até aos três anos.
Sublinhe-se também que a OMS, tal como a Associação Americana de Pediatria indicam extrema prudência para crianças até aos dois e anos e aconselham a que tempo de exposição ao ecrã não exceda uma hora diária até aos cinco anos e duas horas depois dos seis anos.
Estão também identificados os riscos da sobreexposição, sedentarismo e obesidade, falta de qualidade e tempo de sono ou alterações no desenvolvimento, por exemplo na linguagem. A evidência também sugere que os riscos aumentam quando, como é frequente, a presença excessiva em frente de um ecrã está associada a um menor nível de interacção com adultos, designadamente com os pais.
Como tantas vezes já tenho referido o ecrã, qualquer ecrã, é hoje a “baby-sitter” de muitíssimas das nossas crianças e adolescentes que neles, ecrãs, passam um tempo enorme “fechados”, às vezes "acompanhados" de outros miúdos tão sós quanto eles.
Nos últimos tempos e pelas razões que conhecemos a presença face aos ecrãs terá crescido significativamente, o mundo passou a estar no ecrã, até a escola ou a creche e o jardim-de-infância.
Acontece também que, como referido acima, durante o período de sono e sem regulação familiar muitas crianças e adolescentes estarão diante de um ecrã, pc, tv ou "smartphone". Com é óbvio, esta situação não pode deixar de implicar consequências nos comportamentos durante o dia, sonolência e distracção, ansiedade e, naturalmente, o risco de falta de rendimento escolar num quadro geral de pior qualidade de vida.
Comer é necessário faz bem às crianças, mas comer excessivamente e produtos de má qualidade, provoca sérios problemas de saúde. Que se eduque o consumo, sem se diabolizar ou exaltar o produto.
Estas matérias, a presença das novas tecnologias na vida dos mais novos, são problemas novos para muitos pais, alguns deles com níveis baixos de alfabetização informática como constato em muitas conversas que mantenho com grupos de pais.
Considerando as implicações sérias na vida diária e que só estratégias proibicionistas não são muito eficazes, importa que se reflicta sobre a atenção e ajuda destinada aos pais para que a utilização imprescindível seja regulada e protectora da qualidade de vida das crianças e adolescentes.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

EDUCAÇÃO E ORÇAMENTO SUPLEMENTAR


Foi ontem aprovado no Parlamento e na generalidade o Orçamento Suplementar para 2020. Teremos ainda que aguardar o debate na especialidade para conhecer o resultado final. Do que pude seguir a discussão centrou-se quase só nos eventuais milhões para a TAP e para o poço sem fundo também conhecido por Novo Banco. Nada de novo.
Fiquei inquieto pois, quer do debate, quer do que consegui conhecer da proposta de orçamento, o universo da educação ainda não saiu do confinamento.
Ao que parece, consta a disponibilização de recursos para a nova bandeira da “transição digital” destinados à renovação do parque informático e de acesso digital das escolas e da disponibilização de equipamentos informáticos a alunos já omitindo a universalidade prometida há uns tempos nesta matéria e consta também a realização das inacabadas obras de recuperação do parque escolar.
Estas iniciativas são importantes, evidentemente, mas num Orçamento que surge para sustentar um cenário de desejada recuperação dos impactos brutais da situação causada pela Covid 19 a educação deveria ser também uma matéria prioritária dadas implicações conhecidas com o encerramento das escolas.
Designadamente no ensino básico que se mantém até dia 26 num E@D de emergência julgo que ainda não conseguimos avaliar o impacto que as condições geradas a partir de 16 de Março terão causado nos processos educativos de um número muito significativo de alunos.
O plano de emergência estruturado e o esforço de escolas e professores não será suficiente para manter “ligados” e “apoiados” muitos alunos, sobretudo os mais novos, os de famílias mais vulneráveis e com menos recursos e literacia e os alunos com necessidades específicas.
Apesar de sabermos da existência de boas práticas também sabemos das perdas de contactos entre a escola e muitos alunos e famílias, das dificuldades de acompanhamento das actividades escolares, da falta de apoio a alunos com necessidades especiais promovendo situações familiares muito complexas e exigentes.
Seria urgente a caracterização tão próxima quanto possível desta situação e dos milhares de alunos envolvidos e em alto risco de insucesso.
Num Orçamento Suplementar que tem como grande orientação conter danos e recuperar perdas a educação precisaria de ter sido mais acautelada.
São necessários recursos de diferente natureza para os dispositivos de recuperação e apoio de aprendizagens não realizadas, para a reconstrução de uma relação bem-sucedida com a escola, para a recuperação de retrocessos sentidos em muitas crianças com necessidades especiais.
Tudo isto é ainda mais crítico se no Próximo ano lectivo e como já admitiu o Ministro se verificar a um modelo misto de aulas presenciais e ensino à distância embora seja indispensável em qual quer cenário.
Veremos o que ainda pode acontecer na discussão na especialidade deste Orçamento suplementar, mas, contrariamente ao Primeiro-ministro o meu optimismo … ainda está um bocadinho confinado.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

NÃO HÁ VOLTA A DAR


Ontem, mais de três meses depois, voltei a entrar numa sala de aula. Duas horas de seminário com um grupo de alunos candidatos ao ensino superior.
Não há volta a dar. Continuo com uma enorme dificuldade em entender o ensino à distância como uma alternativa a não ser em contextos e modelos específicos e para ofertas formativas também específicas.
O ensino à distância, quando de facto é ensino à distância e não aulas através de um suporte digital, disponibiliza um conjunto enorme e importante de ferramentas, mas, num quadro global dos sistemas de ensino, do básico ao superior, não substitui o ensino presencial.
Como é óbvio, também sei que o ser presencial não garante, só por si, qualidade no ensino e na aprendizagem. A qualidade nos processos educativas é uma matéria complexa e associada a múltiplas variáveis.
Neste quadro preocupa-me a possibilidade da continuidade do ensino à distância, sobretudo se for nos moldes em que tem sido apesar de boas práticas conhecidas.
No ensino básico e secundário os riscos de afastamento de muitos alunos e do risco de exclusão e insucesso são significativos e importa definir os dispositivos de apoio e recuperação adequados. Parece também necessário reflectir sobre os recursos, as metodologias, a gestão curricular, os dispositivos de avaliação, etc. O tempo é curto.
No ensino superior inquieta-me a eventual tentação de substituir o ensino presencial por más práticas de ensino à distância com objectivos nem sempre muito claros, mas em nome da mudança e inovação.
A verdade é que ontem, apesar do desconforto das máscaras, voltei à sala de aula. Gostei, soube a pouco.  

terça-feira, 16 de junho de 2020

A HISTÓRIA DO NADA


Num tempo de muitos tudos e muitos nadas, a história de um Nada.
Era uma vez um homem chamado Nada. O seu nascimento não foi mais que um nada numa família de Nadas pelo que nada de relevante se registou, apenas mais um Nada.
A escola do Nada foi uma passagem que quase nada lhe deixou, aliás, abandonou-a antes da altura devida pois sentia que ali não fazia nada e para nada lhe serviria. Pelo facto do Nada ter saído da escola nada aconteceu.
O Nada atravessou a adolescência sem que nada lhe mostrasse um futuro. Já de pequeno quando alguém, raramente pois as pessoas não se interessam muito por Nadas, lhe perguntava o que queria ser quando fosse grande, respondia num indiferente encolher de ombros, nada.
A vida do Nada era, pois, composta dos pequenos nadas que se sucediam com nada de mudança.
Um dia, sem que nada dissesse, o Nada partiu daquela terra onde nada tinha, à procura de uma terra onde nada teria.
Ninguém sentiu a falta do Nada, nem a família que nada sabia dele desde um tempo sempre.
No meio de tantos Nadas, a ausência de um passa completamente despercebida. É assim a vida dos Nadas, um nada feito de nadas.
Chamam-lhe destino ou falta de sorte. Também se pode dizer, actualizando a terminologia, que a vida do Nada ficou à distância.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA À DISTÂNCIA


A propósito de um trabalho no Observador sobre o impacto no processo educativo e de desenvolvimento do fim das aulas presenciais e da resposta de emergência E@D nos alunos com necessidades educativas especiais bem como a enorme inquietação das famílias de alunos com a eventual continuidade deste modelo no próximo ano lectivo, retomo algumas notas sobre esta questão.
Há algumas semanas o Ministro da Educação admitiu a possibilidade de que no próximo ano se recorra a um modelo que envolva aulas presenciais e aulas à distância. Apesar de boas práticas que sempre existirão, afirmei “o que com enorme esforço e motivação foi estruturado no ensino à distância (E@D) foi uma resposta de emergência que procurou substituir e minimizar o impacto do encerramento das escolas, mas não é uma alternativa, dificilmente o será sobretudo nos primeiros anos de escolaridade e em particular no caso de alunos com necessidades especiais".
A eventual manutenção de aulas não presenciais, mesmo que em tempo parcial, solicita uma séria reflexão sobre o que deverão ser, sobretudo nos primeiros anos de escolaridade e para alunos com necessidades especiais e o tempo não é muito.
Na peça do jornal estão bem retratadas dificuldades e os riscos de retrocesso decorrentes da situação de ensino à distância e de acesso a apoios adequados.
De facto vivemos num tempo estranho, estamos a falar de educação inclusiva num cenário de “ensino à distância” e com os alunos ausentes dos espaços onde se realiza a educação escolar, a sala de aula, a escola. Para muitos alunos com necessidades especiais e para muitos outros e por diferentes razões tem mesmo aumentado a sua distância para a escola o que naturalmente terá efeitos negativos, quer no progresso nas aprendizagens, quer numa perspectiva de educação inclusiva.
Como tenho afirmado, não esqueço que mesmo em tempos “normais” também temos constrangimentos e insucessos, mas, ainda assim, temos uma variável muito importante, proximidade.
O ME divulgou em Abril “Orientações para o trabalho das Equipas Multidisciplinares de Apoio à Educação Inclusiva na modalidade E@D”.
Como disse na altura, sendo importante que se conheçam orientações da tutela, o que foi divulgado as “orientações” reflectiam fundamentalmente as competências e funções das EMAEI o que no quadro da resposta que temos será de uma enorme dificuldade de operacionalização.
Na altura afirmei que me parece pertinente definir duas grandes linhas de trabalho.
A primeira seria a colaboração com os docentes para o trabalho a desenvolver neste contexto particular em que a planificação “existente” não tem obviamente condições para funcionar. Questões como que objectivos a manter ou redefinir, que actividades e com que recursos a desenvolver em casa, que duração, que rotinas de trabalho, que apoio solicitam pais ou de irmãos, etc., são alguns dos exemplos em que o que está definido nesta imensidade de RTP/PEI/PIT poderá necessitar de ser reconfigurado.
Uma segunda linha seria o apoio aos pais. No entanto, creio que tanto ou mais do que criar formas de apoio aos pais no sentido de serem “professores” ou “técnicos” dos seus filhos, ou seja, o apoio dos pais ao “trabalho” dos filhos no “ensino à distância” julgo que precisamos de apoiar os pais enquanto pais num quotidiano altamente exigente em matéria de resistência física e psicológica. São grandes os riscos de cansaço, impotência desânimo, culpabilização, etc. para mais dentro de um cenário de isolamento. Esta questão quanto a mim é crítica.
O trabalho do Observador é elucidativo.
Como na altura afirmei e não querendo ser polémico ou provocador, não é de todo a intenção, um contacto regular próximo e acessível e com alguma disponibilidade para “ouvir” será talvez mais importante que o cumprimento rigoroso dos RTP/PEI/PIT.
No entanto e como é evidente cada situação sugerirá a melhor abordagem.
Parece provável que o Setembro de 2020 não será igual ao Setembro de 2019, as inquietações e as dúvidas são muitas e o tempo já não é muito.


domingo, 14 de junho de 2020

DESCONFINAR OS MIÚDOS. MAS DESCONFINAR MESMO


Neste processo de desconfinamento que se vive devolvendo muito de nós aos espaços que fazem parte das nossas rotinas também, naturalmente, os mais novos estão envolvidos. As crianças que frequentam creche e jardim-de-infância e os alunos do ensino secundário foram os primeiros nesse processo inda que de uma forma gradual e com receios de pais e profissionais.
Gostava que este processo de desconfinamento dos mais novos fosse um pouco mais longe do que regressar aos espaços escolares ou a outras rotinas. Sei que não será, fácil mas gostava que se aproveitasse o balanço e se revalorizasse o brincar no exterior que por várias razões, segurança, estilos de vida ou alteração das percepções sobre a infância e sobre a relevância do brincar se foi perdendo em muitas contextos familiares. Nem sempre é uma questão de tempo ou oportunidade, não tardaremos a ter os grandes centros comerciais como “parque de diversões” para muitas famílias.
Este fim-de-semana o encanto do Alentejo ficou ainda maior com a estadia dos netos no monte. O Simão é um assumido “especialista” em projectos e sistemas e com uma imaginação que não pára e conta com a ajuda de voluntarioso ajudante, o Tomás.
Inspirado por algo que tinha visto numa pesquisa entendeu por bem construir uma barragem e uma casa de “terra de barro”, palha e canas como viu que faziam os homens de "antigamente”. A casa serviria para as “Titas”, as gatas, sobretudo as duas recém-chegas ainda pequeninas dormirem.
O resultado está aqui documentado.





Depois de várias horas de trabalho o Simão e o Tomás adormeceram felizes. Eu também.
São também assim os dias do Alentejo.

sábado, 13 de junho de 2020

DA SAÚDE MENTAL DOS PORTUGUESES NOS TEMPOS QUE VIVEMOS


Como escrevi há algum tempo, a dimensão e a complexidade da situação inédita que que temos vivido e estará ainda longe de terminar não pode deixar de ter múltiplos reflexos significativos no nosso quotidiano, uns mais óbvios e abordados que outros. Uma das dimensões que também solicita grande atenção é o forte impacto na saúde mental e no bem-estar psicológico das pessoas, pequenas e grandes ou ainda as “mais grandes”, os mais velhos. Algumas inquietações.
Começando por estes últimos e integrando desde o início os grupos de risco o dever de recolhimento a situação é ainda mais séria. Muitos idosos, boa parte a viver sós, e depois confinados, sentirão muito provavelmente aumentar os níveis de isolamento. Sendo certo que viver só não significa viver isolado, a verdade é que a situação em que vivem aumenta o risco de isolamento. Não saem de casa ou saem muito menos, os pequenos estabelecimentos e as relações de vizinhança, um suporte funcional e psicológico na sua vida, estiveram muito menos disponíveis. Acresce que muitas destas pessoas não têm competências digitais e recursos que poderiam ter ajudado a minimizar a solidão e o isolamento que alimentam o risco da ansiedade, do stresse ou de um quadro depressivo. As famílias, quando existem, também têm vivido enredadas nos seus próprios constrangimentos e também devido à situação sanitária e necessidade de protecção própria e dos idosos baixam o nível de contacto.
É na verdade um quadro de risco elevado em termos de saúde mental e bem-estar-psicológico.
No que respeita às famílias as questões são mais complexas.
Os contextos familiares são extraordinariamente diversificados. Muitas pessoas, devido à sua profissão, continuaram a trabalhar, boa parte delas em actividades com risco elevado o que, naturalmente se repercute nas dinâmicas familiares. São conhecidos múltiplos casos de profissionais de saúde que estiveram ou estarão ainda a residir em espaços que não a sua casa de família para a proteger. É um factor acrescido de preocupação e risco.
Em muitos milhares de famílias com crianças até aos 12 anos um dos pais, pelo menos, estará em casa no apoio aos filhos. Em muitas famílias os pais estão em casa em situação de teletrabalho que têm de conciliar com as rotinas familiares e com o apoio às actividades escolares dos filhos, tanto mais exigente quanto mais novos são por menor autonomia e maior necessidade de suporte e atenção.
Ainda no quadro familiar, o número de pessoas, a tipologia dos espaços, os equipamentos e recursos disponíveis, as idades e o número de filhos, os níveis de literacia global e digital para as tarefas de apoio às actividades dos filhos no âmbito do ensino à distância, são outras variáveis que importa considerar.
Famílias monoparentais, em situação de guarda partilhada dos filhos ou famílias com crianças ou jovens com necessidades especiais experimentam também dificuldades significativas de adaptação a estes tempos de chumbo.
Se considerarmos ainda que muitas famílias atravessaram e atravessam sérias dificuldades económicas por perda total ou parcial de rendimentos vivendo ou aguardando por apoios, e por um regresso à “normalidade” possível que não se sabe se e quando acontecerá, teremos um quadro global extremamente preocupante.
Acresce que apesar de se vislumbrar como tem sido dito uma luz ao fim do túnel, o túnel terá ainda um comprimento muito pesado.
Neste quadro, considerando os múltiplos aspectos que referi, parece claro o enorme risco de situações de stresse e crispação ou tensão, solidão, ansiedade, impotência e algum desespero. Este mal-estar ou o risco da sua instalação pode afectar os adultos e, naturalmente, também as crianças e jovens. Não será de estranhar que se possam verificar alterações no seu comportamento. Importa estar atento a essas alterações, perceber e tentar entender, procurar apesar de não ser fácil uma dose suplementar de paciência e confiança ou, se necessário e sem reserva, solicitar alguma orientação através de canais que têm sido divulgados.
Assim, todo este cenário não será certamente alheio ao facto divulgado pelo Infarmed de que no primeiro trimestre de 2020 foram vendidas cerca de cinco milhões de embalagens de psicofármacos fundamentalmente ansiolíticos e antidepressivos, mais 400 000 que no mesmo período do ano anterior, sendo que se regista um preocupante recurso à automedicação. Muito provavelmente o segundo trimestre será também marcado pela aumento do consumo. Aliás, Portugal é o quinto país da OCDE no consumo destes fármacos.
Tem sido também divulgado que estruturas do Serviço Nacional de Saúde ou privadas têm disponibilizado linhas de apoio de natureza psicológica como também o têm feito outras identidades ou mesmo através de iniciativas de natureza individual.
Também sabemos que o impacto de problemas de saúde mental ou de bem-estar psicológico qualidade de vida de pessoas e famílias é fortíssimo.
A situação que vivemos torna tudo mais difícil, mas importa estar atento e ter confiança que na forma como iremos saindo dela estará contemplada a promoção da saúde mental
Existe muita gente a passar mal, pode ser na casa do lado.
No entanto, somos resilientes e queremos viver, seremos capazes de continuar.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

DAS ESCOLAS SIMPÁTICAS. DE NOVO


Ao que a imprensa divulga está em curso uma acção da Inspecção-Geral da Educação e Ciência envolvendo cerca de 100 escolas secundárias, públicas e privadas, analisando a avaliação escolar do 11.º e 12.º ano. Está em causa a eventual existência de notas anormalmente elevadas na avaliação interna decorrente da simpatia e generosidade de algumas escolas, maioritariamente privadas, no sentido de contribuir para uma maior facilidade no acesso dos seus alunos ao curso superior desejado.
Esta acção já iniciada a 2019 terá motivado 57 processos disciplinares dos quais duas dezenas estão em fase conclusão e agora acentua-se considerando os ajustamentos verificados no acesso em consequência da situação que atravessamos.
Esta recorrente situação, as eventuais “mãos largas “ de algumas escolas, sobretudo privadas, nos processos de avaliação interna é algo que que deveria merecer a mais célere e severa condenação. A percepção de competência, rigor e equidade é crítica nos processos de avaliação escolar em qualquer comunidade. Este cenário, para além do seu enquadramento do ponto de vista legal, é também preocupante pela mancha pantanosa lançada sobre as instituições de ensino minando a confiança e favorecendo os negócios da educação.
Recordo que em Maio de 2019 foram divulgadas várias pautas do 10º ano do Colégio Ribadouro (sempre bem posicionado nos rankings, claro) relativas a Educação Física em que nenhum aluno do 10º teve nota inferior a 18 no 2º período. Mais precisamente, de 248 alunos do 10º, 128 (52%) tiveram 20 valores, 108 alunos (44%) tiveram 19 e apenas 12 desajeitados alunos tiveram 18. Notável o desempenho dos alunos em Educação Física, tão notável quanto o desempenho da escola em rigor, seriedade, ética e manhosice.
A questão, também preocupante, dadas as implicações é que este cenário é conhecido há já alguns anos. Pelo menos, desde 2015, 2016 que sucessivos trabalhos do Conselho Nacional da Educação, da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e da Inspecção-Geral da Educação e Ciência referem este tipo de procedimentos. Estranho mesmo é que só agora estejam em fase de conclusão os primeiros inquéritos.
No entanto, neste contexto parece-me de sublinhar que sendo certo que entre as escolas “simpáticas”, as que inflacionam as notas, predominam as escolas privadas, também se verifica que no caso das escolas em que os alunos obtêm melhores resultados nos exames que nas avaliações internas predominam habitualmente as públicas, ou seja, o “facilitismo” das escolas públicas que alguns apregoam não será assim tão claro.
Os responsáveis pelas escolas em que o “fenómeno” da simpatia e generosidade é mais evidente tentam explicá-lo de formas diferentes e em alguns aspectos até bastante curiosas, projecto pedagógico ou educativo da instituição, entendimento diferenciado sobre o próprio papel da avaliação interna, etc.
É também por razões desta natureza que de há muito defendo que a conclusão e certificação de conclusão do ensino secundário e a candidatura ao ensino superior deveriam ser processos separados. Os exames nacionais destinam-se, conjugados com a avaliação interna realizada nas escolas, a avaliar e certificar o trabalho escolar produzido pelos alunos do ensino secundário e que, obviamente, está sediado no ensino secundário.
Não está em causa a existência de exames finais no ensino secundário são importantes como regulador externo do processo de avaliação. O que me parece ajustado é que as classificações, internas e externas no ensino secundário deveriam constituir apenas um factor de ponderação a contemplar com outros critérios nos processos de admissão organizados pelas instituições de ensino superior como, aliás, acontece em muitos países.
O acesso ao ensino superior é um outro processo que deveria ser da responsabilidade do ensino superior e estar sob a sua tutela.
A situação existente alimenta os negócios da educação. Curiosamente, os estudos da Universidade do Porto mostram, pelo menos desde 2012, que as notas de acesso dos alunos do ensino secundário privado não sustentam carreiras escolares no ensino superior no mesmo patamar, os alunos oriundos de escolas pública obtêm melhores resultados.
Já tenho afirmado a minha curiosidade sobre o que pensarão sobre estes expedientes os alunos, os pais e os professores destas escolas "batoteiras". Dos responsáveis institucionais adivinho o que dirão, se disserem alguma coisa, "nada lhes pesa na consciência". Como sempre.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

GOSTEI DE LER "VÍRUS NO ENSINO SUPERIOR"


Gostei de ler e merece reflexão o texto de Mariana Gaio Alves no Público, “Vírus no ensino superior”.
A tentação que parece emergente de diminuição significativa das aulas presenciais no ensino superior substituindo-as por ensino não presencial com o apoio de ferramentas digitais ou a diminuição de cargas horárias nas actividades lectivas merece ser acompanhada e analisada com muita prudência.
Da minha experiência e do que conheço de muitas instituições de ensino superior a resposta de emergência que foi estruturada no contexto que atravessamos não é “ensino à distância”, longe disso. 
É evidente que, do meu ponto de vista, é imprescindível integrar dispositivos de “ensino à distância” no contexto dos processos de formação no ensino superior, acontece por cá, caso da Universidade Aberta num quadro e modelos específicos, oferta também já presente noutras institições  de ensino superior de forma mais integrada e noutros países com objectivos e recursos diferenciados.
Há algum tempo que se utiliza de forma mais ou menos regular suportes digitais para trabalho regular com grupos pequenos para orientação de trabalhos e projectos, orientação de dissertações, seminários, conferências, reuniões, etc, e são ferramentas extremamente potentes com grande capacidade apoio e versatilidade.  
No entanto e do meu ponto de vista, continuo a entender como essenciais nos processos educativos incluindo no ensino superior, a proximidade, a presença inteira, a comunicação e a relação, o olhar e os gestos, etc.
No entanto e como escreve Maria Gaio Alves, pode haver a tentação de “aproveitar a rápida e adequada resposta dos docentes e das instituições à emergência pandémica que se declarou em março para instalar, de forma perene, algo que erradamente se designa de ensino à distância, em que se aumenta exponencialmente o número de alunos por turma, se eliminam unidades curriculares e se diminuem as horas de contacto entre estudantes e professores.
Acresce, continuo a citar, que “Eliminar a possibilidade do encontro entre professores e a diversidade de alunos que frequentam os cursos e as instituições é uma opção que arrisca contribuir para o aumento do número dos que desistem de frequentar as universidades e os politécnicos. E tal é particularmente preocupante num país como Portugal, onde os níveis de escolarização superior são ainda baixos por comparação com o que se verifica em geral nos países europeus.”
Aguardemos os desenvolvimentos, mas importa estar atento.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

RESET


Muitos de nós temos uma relação com a informática apenas funcional e em patamares básicos. Somos o que eu costumo considerar como utilizadores conservadores, utilizamos as novas tecnologias apenas na exacta medida das nossas necessidades e sem grande investimento. Para me sossegar, lá vou pensando que não somos capazes de nos interessarmos por tudo e ter sempre um bom desempenho.
Neste cenário, acontece, não raras vezes, deparar-me com algumas dificuldades ou pior, pois fico mais atrapalhado, esbarrar com uma mensagem ou aviso indecifráveis para os meus conhecimentos. As pessoas mais sabedoras a quem peço ajuda dizem-me muitas vezes qualquer coisa do tipo, “faz um "reset" que isso passa”. E não é que às vezes passa?! Aí não fico com a auto-estima muito bem tratada.
A propósito desta experiência, de que me socorri há minutos devido a um misteriosa “recusa” do meu PC em obedecer às minhas sábias ordens, estava a lembrar-me como era bom podermos provocar um "reset" em algumas circunstâncias da vida dos miúdos e mesmo na nossa, mais velhos.
Já pensaram no extraordinário que seria nós podermos com um Ctrl+Alt+Del reiniciar, apagando, uma situação difícil de aprendizagem, um episódio mais complicado na sala de aula ou uma qualquer experiência de vida pesada ou violenta a que muitas crianças e jovens não conseguem escapar e que alguns não conseguem mesmo ultrapassar? Com as devidas cautelas seria uma ferramenta fantástica.
A questão é que, como costumo dizer, para o melhor e para o pior, os miúdos continuam a não ser providenciados à família, à comunidade e à escola com manual de instruções. Por isso, às vezes, sentimos dificuldades para os entender e ajudar.

terça-feira, 9 de junho de 2020

DOS ALUNOS E DAS APRENDIZAGENS QUE FICARAM À DISTÂNCIA

No Público encontra-se a referência a um inquérito realizado pela Fenprof sobre a forma como está decorrer o ensino à distância de emergência.
Responderam 3548 docentes sendo que a maioria, 63.9%, dão do 3º ciclo e secundário.
Não conheço os detalhes do estudo e a sua robustez, mas julgo que alguns indicadores merecem reflexão e associam-se a inquietações aqui expressas desde o final do 2º período.
Parece de sublinhar que 93,5% dos docentes inquiridos entende que se agravaram as desigualdades entre alunos sendo que mais de metade, (54,8%) continuava na altura da resposta sem conseguir contactar com todos os seus alunos, através da net ou por outras vias. Por outro lado, dos cerca de 75% de docentes com alunos com necessidades especiais, 40,8% referem desconhecer se as medidas de apoio disponibilizadas a estes estudantes serão as “adequadas” ainda que dos professores que afirmam conhecer o trabalho desenvolvido com os alunos com mais necessidades, 43,9% consideram que as medidas de apoio são “adequadas”.
São ainda interessantes as referências à avaliação associadas à gestão curricular na medida em que são leccionados conteúdos “novos” que não chega aos alunos que estão “distantes” da escola, sendo que 70,5% dos professores afirmam a leccionar novos conteúdos e 47,8% avaliarão estes conteúdos no final deste período.
No que respeita ao seu próprio trabalho, 65% dos inquiridos afirma que a exigência do ensino à distância é mais exigente que o trabalho presencial.
Neste quadro referem cansaço e exaustão associados também à percepção de “falta de apoio” do ME enquanto referem o apoio sentido por parte das direcções escolares, 86.5%, e dos pais, 91,5%.
Em síntese, sublinham-se os riscos acrescidos de desigualdade entre alunos no quadro do ensino à distância e que, evidentemente, envolve múltiplas variáveis, a disparidade de práticas e entendimentos, veja-se o caso da resposta a alunos com necessidades especiais ou a gestão curricular e avaliação.
Ainda de registar a percepção de exigência profissional desta situação e o apoio percebido por parte de direcções e de escolas e agrupamentos e dos pais contrastando com uma bem menor percepção de apoio por parte do ME.
Ainda não sabemos como poderá vir a ser o próximo Setembro no que respeita ao modelo de resposta educativa embora o Ministro da Educação tenha referido em entrevista recente a possibilidade de recurso a um modelo misto de aulas presenciais e aulas online.
Mas já sabemos o enorme esforço que terá de ser feito por escolas e professores no sentido de recuperar, tanto quanto possível, as crianças e adolescentes que ficaram mais distantes da escola, de recuperar as aprendizagens não realizadas por diferentes razões, desmotivação, metodologias e dispositivos inadequados para algumas idades, problemas de competência digital e acesso a recursos e à rede, contextos familiares pouco amigáveis, necessidades especificas de alguns alunos, etc. Não está em causa o esforço e empenho dos professores e de outros intervenientes mas, sobretudo, as circunstâncias que estes tempos criaram.
Creio que começa a ser tempo de irmos conhecendo os objectivos e orientações, os dispositivos, os recursos humanos e de outra natureza, etc. com que as escolas contarão já em Setembro para lidar com esta situação.
Os riscos de insucesso são enormes e como sempre são selectivos, ameaçam mais uns que outros.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

OS RESULTADOS A MATEMÁTICA. SERÁ DESTINO?


Um relatório da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência com os resultados escolares por disciplina entre 2011/2012 e 2017/2018 referido no Público merece atenção e reflexão. Nos sete anos considerados o número de alunos que termina o 9º ano e transita para o 10º ano com negativa a Matemática subiu 10%, de 23% em 2011/2012 para 33% em 2017/2018 contrariamente ao que se verifica nas outras disciplinas.
A Matemática é ainda a disciplina em os alunos mais dificuldades sentem em recuperar de uma nota negativa, apenas 30% dos que repetem o 9º ano conseguem nota positiva a Matemática no ano seguinte. Também se regista que dos alunos que entram no secundário com negativa a Matemática só 18% recupera.
Talvez seja de juntar um outro dado também de um relatório do ME. Dados de 2018/2019 mostram que apesar da melhoria global, a retenção escolar continua fortemente associada ao nível socioeconómico das famílias dos alunos.
Dos dados agora divulgados pelo ME e em síntese releva que em 2018/2019 apenas 21% dos alunos abrangidos pela Acção Social Escolar cumpriram o 9º ano sem retenções, entre os alunos com meios familiares mais favorecidos a percentagem de trajectos sem retenção foi 56%. No ensino secundário a diferença é menor, mas ainda bastante significativa, 29% e 45%.
Os números ilustram uma situação que, lamentavelmente, não tem nada de novo, os resultados em Matemática continuam mais baixos e também associados a variáveis sociodemográficas, condições económicas e nível de escolarização familiar.
Para além destas questões que são críticas a explicação para os resultados a Matemática é complexa e nem sempre consensual como a peça do Público bem ilustra com os diferentes pontos de vista de duas Associações, Sociedade Portuguesa de Matemática e a Associação dos Professores de Matemática.
Os resultados serão influenciados, não numa relação de causa-efeito, por múltiplas variáveis como modelo e conteúdos curriculares, número de alunos por turma, tipologia das turmas e das escolas, dispositivos de apoio às dificuldades de alunos e professores ou questões de natureza didáctica e pedagógica. Variáveis desta natureza terão também algum peso e algumas vezes já aqui referimos estas questões.
Acresce a esta complexidade um conjunto de outras variáveis menos consideradas por vezes mas que a experiência e a evidência mostram ter também algum impacto.
São variáveis de natureza mais psicológica como a percepção que os alunos têm de si próprios como capazes de ter sucesso, os alunos de meios menos carenciados percebem-se como mais capazes de aprender matemática.
É também conhecido que os pais com mais qualificação e de mais elevado estatuto económico têm expectativas mais elevadas sobre o desempenho escolar dos filhos o que se repercute na acção educativa e nos resultados escolares e, naturalmente, mais facilmente mobilizam formas de ajuda para eventuais dificuldades, seja nos TPC, seja através de ajuda externa.
Finalmente uma outra variável neste âmbito, a representação sobre a própria Matemática. Creio que ainda hoje existe uma percepção passada nos discursos de muita gente com diferentes níveis de qualificação de que a Matemática é uma “coisa difícil” e ainda de que só os mais “inteligentes” têm “jeito” para a Matemática. Esta ideia é tão presente que não é raro ouvir figuras públicas afirmar sem qualquer sobressalto e até com bonomia que “nunca tiveram jeito para a Matemática, para os números”. É claro que ninguém se atreve a confessar uma eventual “falta de jeito” para a Língua Portuguesa e às vezes bem que “parece”. A mudança deste cenário é uma tarefa para todos nós e não apenas para os professores e seria importante que acontecesse.
De facto, este tipo de discursos não pode deixar de contaminar os alunos logo desde o 1º ciclo convencendo-se alguns que a Matemática vai ser difícil, não vão conseguir ser “bons” e a desmotivar-se.
Não fica fácil a tarefa dos professores, mas no limite e como sempre será a escola o braço operacional da comunidade que quer fazer a diferença a fazer a diferença.
Não podemos falhar.