Desculpem a insistência, ainda há pouco aqui deixei umas notas, mas existem matérias que não podem, não devem, sair da agenda de preocupações em termos de cidadania e, obviamente, das prioridades das políticas públicas. A violência doméstica é uma dessas questões e retomo o que tenho escrito.
Lê-se no Expresso que, de acordo
com dados da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, a GNR e a PSP
registaram até 30 de Setembro 25327 episódios de violência doméstica, o valor
mais elevado dos últimos sete anos, no mesmo período, Janeiro a Setembro. Entre
1 de Julho e 30 de Setembro, as forças de segurança registaram 10558 situações.
Também neste período foram registados cinco homicídios em contexto de violência
doméstica, aumentando para 18 o número de mortos este ano, 16 mulheres e dois
homens.
Também como já aqui tinha
referido, entre Abril e Junho, a PSP e a GNR receberam, em média, 86 queixas
por dia relativas a violência doméstica, num total de 7713 denúncias que
chegaram às autoridades. Estes indicadores revelam uma subida face ao primeiro
trimestre, mais 657 queixas, de acordo com dados do Portal da Violência
Doméstica, da Comissão para Cidadania e Igualdade.
São dados impressionantes e os
tempos que vivemos não permitem grande optimismo. Acresce que, para além de
sabermos que a violência doméstica está habitualmente no topo das
participações, este mundo é bem mais denso e grave que a realidade que
conhecemos, ou seja, aquilo que se conhece, apesar de recorrentemente termos
notícias de casos extremos, é "apenas" a parte que fica visível de um
mundo escuro que esconde muitas mais situações que diariamente ocorrem numa
casa perto de nós.
Por outro lado, para além da
gravidade e frequência com que continuam a acontecer episódios trágicos de
violência doméstica e como recorrentemente aqui refiro, é ainda inquietante o
facto de que alguns estudos realizados em Portugal evidenciam um elevado índice
de violência presente nas relações amorosas entre gente mais nova mesmo quando
mais qualificada. Muitos dos intervenientes remetem para um perturbador
entendimento de normalidade o recurso a comportamentos que claramente
configuram agressividade e abuso ou mesmo violência.
Importa ainda combater de forma
mais eficaz o sentimento de impunidade instalado, as condenações são bastante
menos que os casos reportados e comprovados, bem como alguma “resignação” ou
“tolerância” das vítimas face à situação de dependência que sentem relativamente
ao parceiro, à percepção de eventual vazio de alternativas à separação ou a uma
falsa ideia de protecção dos filhos que as mantém num espaço de tortura e
sofrimento. Felizmente este cenário parece estar em mudança, mas demasiado
lentamente. Os sistemas de valores pessoais alteram-se a um ritmo bem mais
lento do que desejamos e estão, também e obviamente, ligados aos valores
sociais presentes em cada época.
Torna-se criticamente necessário
que nos processos de educação e formação dos mais novos possamos desenvolver
esforços que ajustem quadros de valores, de cultura e de comportamentos nas
relações interpessoais que minimizem o cenário negro de violência doméstica em
que vivemos. A educação, a cidadania e o desenvolvimento que sustentam
constituem a ferramenta de mudança mais potente de que dispomos.
É uma aposta que urge e tão
importante como os conhecimentos curriculares. Percebe-se, também por estas
questões, a importância da abordagem do universo da “Cidadania e
Desenvolvimento” na educação escolar e para todos os alunos. Seria ainda
desejável que a ignorância e o preconceito não inquinassem a discussão.
Entretanto, torna-se fundamental
a existência de dispositivos de avaliação de risco e de apoio como instituições
de acolhimento suficientes e acessíveis para casos mais graves, um sistema de
protecção e apoio eficiente aos menores envolvidos ou testemunhas destes
episódios, e, naturalmente, um sistema de justiça eficaz e célere.
A omissão ou desvalorização
destas mudanças é a alimentação de um sistema de valores que ainda “legitima” a
violência nas relações amorosas, que a entende como “normal”. Tudo isto tem
como efeito a continuidade dos graves episódios de violência que regularmente
se conhecem, muitos deles com fim trágico.
Apesar da natureza estranha e
complexa dos dias que vivemos, é fundamental não esquecer que questões como estas devastam o quotidiano ou a vida de muita gente. Pode estar a acontecer numa
casa ao nosso lado.
Neste contexto, é também de
registar a iniciativa há tempo divulgada de criar um primeiro instrumento legal
de âmbito europeu para combater a violência doméstica e contra as mulheres.
Sem comentários:
Enviar um comentário