É impossível avaliar o nível de sofrimento envolvido na situação de Archie, uma criança inglesa de 11 anos, e da sua família. Como tem vindo a ser referido na imprensa, o drama resultou da resposta de Archie a um desafio colocado na rede “TikTok” e desencadeou-se em Abril.
Lamentavelmente, é mais um
episódio inquietante na linha dos que regularmente vamos tendo conhecimento associados
a jogos ou a redes sociais de que o “Fortnite”, a “Baleia Azul” são exemplos ainda recentes .
Muito já se tem escrito e
divulgado sobre estes processos, sobre a forma como se desenrolam, sobre os
riscos das redes sociais ou jogos e cuidados a ter por pais e educadores, sobre eventual
a intervenção das autoridades, etc.
Assim e neste contexto, para além
do drama da situação de Archie e da família, parece-me necessário reflectir
sobre o conjunto de razões pelas quais adolescentes e jovens se envolvem em
situações desta natureza com riscos graves, incluindo automutilação e suicídio
e que atingem dimensões verdadeiramente preocupantes.
Não conheço dados de estudos mais
recentes, recordo Segundo os últimos dados do estudo “A Saúde dos adolescentes
Portugueses”,relativo a 2018, que integra o estudo internacional Health
Behaviour in School-aged Children, da responsabilidade da OMS, um em cada cinco
alunos (19,6%) entre os 13 e os 15 anos já se magoou a si próprio, de
propósito, nos últimos 12 meses, sobretudo cortando-se nos braços, nas pernas,
na barriga... Referiram que se sentiam “tristes”, “fartos”, “desiludidos”
quando o fizeram.
Também um estudo da Universidade
de Coimbra, creio que divulgado em 2017, que envolveu 2.863 adolescentes, entre
os 12 e os 19 anos, a frequentar o 3.º ciclo e o ensino secundário em escolas
do distrito de Coimbra refere que cerca de 20% afirma já ter desencadeado
comportamentos autolesivos pelo menos uma vez na vida.
Na verdade, os comportamentos de
automutilação em adolescentes são mais frequentes e graves do que muitas vezes
pensamos e devem ser encarados com preocupação. E os casos que vão sendo
conhecidos são apenas isso, os conhecidos, a ponta do iceberg.
É justamente por esta dimensão e
as suas potenciais consequências que me parece fundamental entender tudo isto
como um sinal muito forte do mal-estar que muitos adolescentes e jovens sentem
e a verdade é que em muitas situações não conseguimos estar suficientemente
atentos. Este mal-estar e o que daí pode emergir decorrem de situações de
sofrimento com as mais diversas origens, relações entre colegas, bullying por
exemplo nas suas diferentes formas ou relações degradadas na família que
facilitam a instalação de sentimentos de rejeição, ausência de suporte social
que serão indutoras de comportamentos autodestrutivos.
Começa também a surgir como causa
deste mal-estar a dificuldade que algumas crianças e adolescentes sentem em
lidar com situações de insucesso escolar. Estas dificuldades são frequentemente
potenciadas pela pressão das famílias e pelo nível de competição que por vezes
se instala.
Os tempos estão difíceis e
crispados para muitos adultos e também para os miúdos a estrada não está fácil
de percorrer.
Como disse, alguns vivem,
sobrevivem, em ambientes familiares disfuncionais que comprometem o aconchego
do porto de abrigo, afinal o que se espera de uma família.
Alguns percebem, sentem, que o
mundo deles não parece deste reino, o mundo deles é um espaço, nem sempre um
espaço físico, insustentável que, conforme as circunstâncias, é o inferno onde
vivem ou o paraíso onde se acolhem e se sentem protegidos, mas perdidos.
Alguns sentem que o amanhã está
longe de mais e que um projecto para a vida é apenas mantê-la ou que nem isso
vale a pena.
Alguns convencem-se ou sentem que
a escola não está feita para que nela caibam e onde podem ser vitimizados.
Alguns sentem que podem fazer o
que quiserem porque não têm nada a perder e muito menos acreditam no que têm a
ganhar fazendo diferente.
Alguns transportam diariamente um
fardo excessivamente pesado e que os torna vulneráveis.
Depois das ocorrências torna-se
sempre mais fácil dizer qualquer coisa, mas é necessário pois muitos destes
adolescentes e jovens terão evidenciado no seu dia-a-dia sinais de mal-estar a
que, por vezes, não damos atenção, seja em casa ou na escola, espaço onde
passam boa parte do seu tempo. Aliás, alguns testemunhos ouvidos no âmbito dos
recentes e mediatizados casos mostram isso mesmo.
De facto, em muitos casos,
designadamente, em comportamentos de automutilação ou estados mais persistentes
de tristeza e isolamento, pode ser possível perceber sinais e comportamentos
indiciadores de mal-estar. Estes sinais não podem, não devem, ser ignorados ou
desvalorizados. É também importante que pais e professores atentos não hesitem
nos pedidos de ajuda ou apoio para lidar com este tipo de situações.
O sofrimento e mal-estar induzem
uma espiral de comportamentos em que os adolescentes causam sofrimento a si
próprios o que promove mais sofrimento num ciclo insuportável e com níveis de
perplexidade, impotência e sofrimento para as famílias também
extraordinariamente significativos.
Não, não tenho nenhuma visão
idealizada dos mais novos, nem acho que tudo lhes deve ser permitido ou
desculpado. Também sei que alguns fazem coisas inaceitáveis e, portanto, não
toleráveis. Só estou a dizer que muitas vezes a alma dói tanto que a cabeça e o
corpo se perdem e fogem para a frente atrás do nada que se esconde na
adrenalina dos limites.
Alguns destes miúdos carregam diariamente
uma dor de alma que sentem, mas nem sempre entendem ou têm medo de entender.
Espreitem a alma dos miúdos, sem
medo, com vontade de perceber porque dói e surpreender-se-ão com a fragilidade
e vulnerabilidade de alguns que se mascaram de heróis para uns ou bandidos para
outros, procurando todos os dias enganar a dor da alma.
Eles não sabem, eu também não, o
que é a alma. Um adolescente dizia-me uma vez, “dói-me aqui dentro, não sei
onde”.
Muitos pais, mostra-me a
experiência, sentem-se de tal forma assustados que inibem um pedido de ajuda
por se sentirem impotentes e perplexos.
O resultado de tudo isto pode ser
trágico e obriga-nos a uma atenção redobrada aos discursos e comportamentos dos
adolescentes e dos jovens.
Desculpem a repetição, mas é
preciso insistir.
E na imprensa o que é que passa: se devem desligar, ou não, as máquinas.
ResponderEliminarSendo a mais premente, não nos podemos também afastar da causa. A proibição de determinados conteúdos deve ser colocada em cima da mesa. A proibição protege.
Olá Rui, apesar de alguns dispositivos de controlo o acesso é fácil. Não interessa aos produtores e gestores de conteúdos e plataformas a sua regulação. A proibição pode ter eventuais efeitos, mas, certamente, provocará a criação de alternativas e a migração para essas alternativas (passou-se, creio, com o FB e depois a TikTok). Acho que um caminho poderá ser promover a autoregulação dos mais novos através dos processos educativos familiares e escolares. Boas férias.
ResponderEliminarCaro Zé Morgado, não concordo. Nos mais novos não existe autoregulação porque os seus interesses são, não poucas vezes, divergentes do seu ser. E a proibição que falo é a dos pais.
ResponderEliminarOlá Rui, agora sou eu a não estar de acordo. Desde muito cedo os miúdos autoregulam oos seus comportamentos. Um exemplo pequenino. Não tenho nenhum código de proibições estabelecidos com os meus netos. Sei, falamos sobre isso, que ao pé de colegas também ouvem e dizem algumas asneiras. Comigo, em casa ou na escola, não dizem. Também sabem que tarefas se esperam deles e quando as realizam ainda que, são miúdos, também asneirem.O que acontece, é que com alguma frequência não promovemos proactivamente estratégias de autoregulação, seja nas aprendizagens, seja na educação familiar. Dito isto, é claro que os limites e o "não" são bens de primeira necessidade na vida dos miúdos. Muitos deles têm "nãos" e limites a menos. Muitas vezes abordo isto em trabalho com pais. De qualquer forma, esta questão dava uma longa e estimulante conversa. Boas férias
ResponderEliminarMuitos deles têm "nãos" e limites a menos.
ResponderEliminarOnde está a discordância?
Sem o "não" e sem os limites o neófito vai subindo degraus. A ênfase está sempre, incorretamente, "como o tirar do degrau 100". Não. Não pode sequer passar do 2.º. E se assim for, estes, e outros, fenómenos serão menos frequentes. Imponderáveis? Sim, haverão sempre. Interessa é agir para a regra.
Cumprimentos.
Olá Rui, a discordância não está nos limites ou nos "nãos", está na afirmação do primeiro comentário, "Nos mais novos não existe autoregulação porque os seus interesses são, não poucas vezes, divergentes do seu ser". Existe autoregulação nos mais novos e desde muito cedo, podendo, naturalmente, ser mais "eficiente" quanto "melhor" promovida por adultos e pares. Boas férias
ResponderEliminarO poderio da criança precisa de ser enquadrado muito cedo, uma vez, que sem isso, ele tende a impor-se sem limites.
ResponderEliminarNão há nada pior para uma criança do que o facto de não ter limites. A ausência de limites assemelha-se a maus tratos.
É muito difícil, até mesmo impossível, ensinar boas maneiras a uma criança mal-educada. E, sobretudo, os pais que não castigam o suficiente, e que acreditam que, por isso mesmo, não culpabilizam demasiado a criança, enganam-se redondamente. Com efeito, chegam ao resultado rigorosamente inverso. Porquê? Muito simplesmente, porque o sentimento de culpabilidade não desaparece com a ausência de castigo, antes pelo contrário. Ele continua a desenvolver-se mais do que nunca e contribui para o aparecimento de comportamentos complexos nos quais entra precisamente em jogo a necessidade de punição.
Delaroche, P. (1996). Aprender a dizer não. (M. M. Laura, & J. M. Silva, Trads.) Paris: Éditions Albin Michel.
Insisto Rui, não estou a falar da questão da necessidade de limites, é clara. Apenas afirmo que as crianças são capazes de se autoregularem, (dentro das limitações em cada idade) se assim forem ajudadas e apoiadas (com os nãos, por exemplo), têm capacidades que lhes permitem fazê-lo desde muito cedo. É "só" isto. Quanto à literatura, neste contexto, não comento.
ResponderEliminarBoas férias.
As crianças são capazes de se autoregularem, (dentro das limitações em cada idade)... Concordamos.
ResponderEliminarPortanto, as crianças não são capazes de se autoregularem em todas situações. Na sua incapacidade deve, pois, ser-lhe colocado um limite.