As águas voltam a agitar-se com
mais uma referência à Casa Pia e aos seus alunos. De acordo com trabalho da RTP,
500 crianças da instituição foram usadas para testes clínicos sobre as
potencias consequências ou riscos decorrentes do uso de mercúrio em amálgamas
para os dentes. Segundo alguns testemunhos, algumas das crianças terão sido
intervencionadas sem necessidade, tratou-se de um estudo altamente perigoso e
foi desenvolvido a partir de 1996 sob a responsabilidade conjunta da Faculdade
de Medicina Dentária de Lisboa e da Universidade de Washington, com o
conhecimento das autoridades dos respectivos países.
Nada de novo, a vários níveis. Em
primeiro lugar são conhecidas variadíssimas experiências deste tipo levadas
acabo por grandes multinacionais da indústria farmacêutica lavando a cabo
ensaios clínicos em populações pobres de África, América do Sul ou Ásia mas
também na Europa. Com a conivência das autoridades ou das instituições, muitos
milhares de pessoas viram a sua vida devastada em experiências desta natureza.
Raros são os casos em que, conhecendo-se os responsáveis, se conheçam as
sanções.
Por outro lado, neste caso mais
particular, evidencia-se o lado negro da institucionalização sem regulação de
qualidade e responsabilidade. Os miúdos são usados para todo o serviço. Por
incompetência ou negligência, a instituição que devia ser cuidadora é,
intencionalmente ou não, agenciadora de maus tratos e atentados ao direitos dos
miúdos.
Na verdade, muitos destes miúdos
apenas vão cumprindo uma narrativa de abandono, de massificação, de gente
"que não conta" e que, portanto, pode ficar ao serviço de quem for,
seja para o que for.
Esta questão vai estar por algum
tempo, pouco, na espuma dos dias e depois, bem depois, será um novo dia em que
alguns miúdos continuarão, como estes, a ver testados os seus limites, ao
mercúrio ou a outro qualquer trato.
Uns resistem, outros não.
Não vi a reportagem ainda. Não sei como era a legislação em 1996. No entanto, no momento, os Ensaios Clínicos são altamente regulados. Temos uma directriz Europeia desde 2001, transposta para a lei nacional em 2004. Hoje em dia um EC deste género nunca seria aprovado, especialmente em população pediátrica. Para além do mais, actualmente, para um estudo ser publicado (e sendo de iniciativa de investigação, não um novo medicamento, neste caso, esse é o grande objectivo) tem que seguir um conjunto de guidelines harmonizadas entre a UE, EUA e Japão, as guidelines para Good Clinical Practice, que este estudo, aparentemente (como disse, não vi a reportagem), viola a vários níveis.
ResponderEliminarEsta situação é lamentável. De qualquer forma o facto de ser do conhecimento das Autoridades Competentes de cada país descansa-me no sentido em que não foi feito ilegalmente (o que seria bem pior). Evidencia apenas o como na altura a área era pouco regulamentada o que, felizmente, foi alterado. Aliás, a CEIC (Comissão de Ética para a Investigação Clínica) em Portugal é uma das actuais autoridades competentes que precisa de aprovar um EC (para além do Infarmed) mas é um organismo criado muito recentemente.
Felizmente, creio que ganhámos alguma distância em relação a situações deste género, apesar desta nos parecer tão recente.
Joana, creio que ainda importa considerar a decisão das "autoridades" de colocar à disposição do estudo uma população de crianças, sem família, sob sua tutela que se afigura, no mínimo discutível.
ResponderEliminarComo certamente sabe, durante demasidado tempo decorreram (decorrem?) experiências, ensaios clínicos em zonas pobres do planeta, apesar da legislação para para as zonas ricas, por assim dizer.
"o facto de ser do conhecimento das Autoridades Competentes de cada país descansa-me no sentido em que não foi feito ilegalmente"
ResponderEliminarÉ muito relativo... A legalidade não se atribui nacionalmente, caso contrário os presos políticos de regimes ditatoriais não seriam uma questão humanitária e criminosa.
Tendo em conta que em 1996 Portugal era legislado por normativas de Direito Europeu, pouco ou nada importa para a personalidade jurídica da criança experimentada o aval da Universidade de Lisboa, ou sequer do Estado Português. Considerando Bruxelas a ilegalidade de experimentos clínicos em menores institucionalizados a legalidade dos testes clínicos é uma questão de ver até que ponto alguém quer ou não apurar responsabilidades, porque caso o queira, não há nenhum aval estatal válido.
Mas as expressões "responsabilidades" e "estatal" conjugam-se muito mal juntas, portanto, este assunto morre na próxima semana.
Claro, não tenho qualquer dúvida que éticamente isto é horrível. Creio é que hoje seria impossível de "passar".
ResponderEliminarNa verdade pergunto-me como se processa (mesmo actualmente) a questão do Consentimento Informado em casos destes. Por lei este deverá ser dado pelo tutor dos menores mas, sempre que possível, respeitando a vontade do menor. Tem que lhe ser explicado dentro da medida da sua compreensão. O estado é o tutor nestes casos? Pode o seu "poder" chegar a este ponto? (é claro que não deve. Mas pode?). Vou colocar este caso nas aulas (estou a fazer uma pós-graduação em EC) porque mesmo à luz da legislação actual não sei se um CI obtido desta forma é legal.
Peço desculpa a todos pela falta de cordialidade e observação polida, mas exactamente como é que é um mal menor utilizar crianças institucionalizadas, algumas sem pais que as defendam ou representem, para experiências clínicas alheias aos sujeitos?
ResponderEliminarO que traz o debate da legalidade ou ilegalidade para a questão do abuso de menores que deveriam de encontrar nos adultos um nicho de segurança e protecção honesto?
Pode ser confusão minha, mas como nunca conheci ninguém preso no 1º estágio de moralidade que soubesse escrever, a questão da legalidade como um mal menor a mim faz-me alguma confusão. Regra geral tento reger-me por direitos universais que se sobrepõem moralmente ao apenas legal ou ilegal, e se é legal tudo bem.
Já a ilusão de que estas são realidades "distantes"...por favor...que se viva numa realidade alheia com condições de primeiro mundo é um direito,que se negue a existência de outras como coisas do passado e "distantes" é ignorância arrogante. Ainda recentemente foram expressamente proibidas os ensaios clínicos em Indore. Eram à mesma crianças institucionalizadas...e agora,ilegal na Índia, legal em Portugal...um está certo o outro não ou estão ambos correctos porque o meu umbigo é mais bonito?
Peço desculpa pelo comentário, mas a lógica simplista do mal menor é o que permite a existência destas práticas ainda hoje em dia. Custa-me a aceitar que aceitemos o desprezo ético por legalidade.
Bom, em primeiro lugar queria esclarecer que, obviamente, não acho um mal menor a "utilização" de crianças institucionalizadas, seja para o que for, em comparação com crianças não institucionalizadas.
ResponderEliminarDeixe-me ver se consigo explicar o meu ponto.
1) Esta situação em particular é, tanto hoje, como na altura, a meu ver, muito pouco ética (tanto a experiência em si como a forma como foi feito o recrutamento).
2) Uma vez que foi levada a cabo legalmente, com o conhecimento e autorização das entidades competentes leva-me a concluir que o que é óbvio para mim (e para si) não é (ou não foi) assim tão óbio para outras pessoas (as que tiveram a iniciativa desta experiência e as que a autorizaram).
3) Desta forma fico "contente" pelo contexto legal actual ter evoluido de forma a que, hoje em dia, caso houvesse novamente alguem com a ideia de fazer algo semelhante por não ter a sensibilidade de quão pouco ético isto é,uma situação destas nunca poderia ser legalmente autorizada.
4) Assim, ao dizer "o facto de ser do conhecimento das Autoridades Competentes de cada país descansa-me no sentido em que não foi feito ilegalmente (o que seria bem pior)", o que poderá ter sido uma forma infeliz de colocar as coisas, aceito isso, significa apenas que, fico contente que caso hoje houvesse uma iniciativa identica esta nunca vir a concretizar-se por não ser aprovada. Em oposição a, se isto tivesse sido ilegal em 1996, hoje voltaria a acontecer, pois os responsáveis, mais uma vez, não careceriam de aprovação.
Talvez de uma forma mais simples, o que eu pretendia dizer era:
Em 1996:
- o filtro moral não funcionou
- o filtro legal tb não funcionou
Hoje:
- se o filtro moral continuar a falhar
- o filtro legal impediria esta situação
Caros Atentos, a vossa participação dá mais sentido ao meu texto. Quanto maior a reflexão e a discussão, mais atentas e exigentes as comunidades se tornam
ResponderEliminar