AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

PARA ALÉM DA CASA PIA

Estou a escrever este texto sem conhecer a sentença uma vez que a leitura do acórdão ainda não terminou. Independentemente do que em matéria de punição venha, ou não, a ser decidido, parece-me muito significativo depois de tudo o que se passou o entendimento pelo tribunal de que se verificaram crimes e, portanto, existem criminosos. Arriscávamo-nos a ter um daqueles processos em que só existem vítimas, não existem agressores. Temos todos a convicção de que o que foi conhecido e levado a tribunal neste caso foi apenas uma parte do que efectivamente se passava naquele universo. Também sabemos que a leitura da sentença é apenas um passo mais deste processo que se arrastará ainda por muito tempo através do expediente dos recursos.
Apesar do enorme espaço mediático e social que este caso tem ocupado, ocupa e ainda ocupará, parece-me muito importante que a comunidade assuma e não esqueça que os abusos de crianças em instituições sendo um risco e, por vezes, mais do que um risco, uma verdade, não são os que com maior incidência acontecem, De facto, a análise dos casos denunciados, ainda que constituam apenas uma parte do todo, mostra que a maioria dos abusos sexuais sobre crianças ocorre nos contextos familiares e envolve família e amigos, não acontece, repito, em instituições que, provavelmente na sequência do caso Casa Pia, até se terão tornado mais atentas e eficazes na prevenção de abusos.
Assim sendo, embora tenhamos realizado alguns avanços em termos legais e processuais, ainda não parece muito sólida uma verdadeira cultura de protecção dos miúdos. Este cenário, leva a que muitas crianças e adolescentes, tal como sucessivas notícias mostram, estejam expostos a sistemas de valores e cultura familiar que toleram e mascaram abusos com base num sentimento de posse e usufruto dos filhos quase medieval. Muitas crianças em situação de abuso no universo familiar são esmagados pela culpa que podem sentir pela denúncia das pessoas da família ou amigos, pela enorme dificuldade em gerir o facto de que pessoas que cuidam delas lhes façam mal e a falta de credibilidade eventual das suas queixas bem como das consequências para si próprias, uma vez que se sentem quase sempre abandonadas e sem interlocutores em que possam confiar.
Neste quadro, continua a ser absolutamente necessário que as pessoas que lidam com crianças e adolescentes, designadamente na área da saúde e da educação, sejam capazes de “ler” os miúdos e os sinais que emitem de que algo se passa de menos positivo na sua vida.
Esta atitude de permanente, informada e intencional atenção aos comportamentos e discursos dos miúdos é, do meu ponto de vista, uma peça essencial para minimizar a tragédia dos abusos.

3 comentários:

  1. Apenas duma pequena observação e uma muito sucinta reflexão:
    1 - Em direito o recurso não é, nem pode ser considerado, como "expediente", antes um norml passo processual definido na lei, logo passível de ser legitimammehte utilizado pelas partes. Não há recursos bons e recursos maus....
    2 - Independentemente das verdades, meias verdades, mentiras, fantasias, encenações, contradições, etc de que este processo deve estar recheado, há um "erro" de base na apreciação generalizada do mesmo: na verdade estamos perante factos que configuram PROSTITUIÇÃO INFANTIL, e esta vertente dos factos nunca foi devidamente ponderada e enquadrada, o que não obsta à existência de abusos sexuais mas transporta(ria) toda a matéria de facto para outro nível de análise. Isto daria pano-para-mangas e seria muito interessante ver os "experts" habituais a discorrer sobre o tema.

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  2. como casapiana que fui e ainda sinto que sou,manifesto tristeza por penas tao leves,e quando diz que se deve fazer leitura das crianças,naqueles cassos era demasiadamente evidente,pois como e que entre os alunos internos que eram calçados pela intituiçao com tenis sanjo...apareciam um pequeno numero de internos que calçavam tennis de marcas...sera que isso nao despertou curiosidade dos educadores ou dos directores dos lares?crianças que nao tinham familia,logo...nao poderia sequer ser uma oferta...enfim....demasiada indignaçao

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  3. Cara Rosa, Como diz, para "ler" as crianças é preciso quere fazê-lo. Há décadas que se conhecia o que se passava com algumas das crianças da Casa Pia, mas pouca gente deu voz e "leu" as crianças, até ao Mestre Américo. No entanto, insisto, no mundo familiar os abusos são muito significativos e menos objecto de atenção.

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