AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

domingo, 17 de dezembro de 2023

UMA FAMÍLIA É UM BEM DE PRIMEIRA NECESSIDADE. MAIS UMA VEZ

 No Expresso encontra-se uma peça sobre o universo da adopção familiar, das dificuldades, da natureza dos processos e dos constrangimentos existentes. Com alguma frequência tenho  abordado esta questão e retomo com alguns dados do Relatório do Conselho Nacional para a Adopção relativos a 2022 também considerado no trabalho do Expresso.

Em 2021 foram adoptadas 185 crianças e em 2022 foram 173. A situação de espera por adopção continua bastante elevada, entre seis e sete anos, nomeadamente para famílias que pretendem adoptar crianças até aos 7 anos, sem problemas de saúde ou com deficiência.

Até ao final de 2022 o número de candidaturas a adopção em espera era cerca de 6 vezes superior ao número de crianças em situação de adaptabilidade, 1322 candidaturas para 229 crianças e jovens em situação de adaptabilidade.

A maioria dos candidatos a adoptar (66%) expressa preferência por crianças dos 0 aos 3 anos, enquanto as crianças com indicação de adopção nesta faixa etária eram bem menos e totalizavam 26%. Por outro lado, as crianças com 7 ou mais anos, 62% do universo, são “preferidas” por menos de 8% das candidaturas e, praticamente, não existem candidaturas para adopção de jovens entre os 10 e os 15 anos.

Este cenário alimenta a manutenção em situação de acolhimento criando um universo de NAP (Necessidades Adoptivas Particulares) que, para além da idade, são também sustentadas por variáveis como existência de irmãos, problemas de saúde ou deficiência e etnia.

Trata-se, evidentemente de um universo muito complexo, mas, por outro lado, a solicitar a sua definição com questão central nas políticas de família.

Em termos internacionais, recordo que dados de 2018 mostravam que em Portugal apenas cerca de 3% das crianças retiradas às famílias estavam em famílias de acolhimento e 97% institucionalizadas. Em países como a Irlanda e a Noruega o acolhimento institucional não ultrapassa 10% das suas crianças retiradas aos pais pelo Estado.  Mesmo em países em que está mais presente a cultura de institucionalização, a Alemanha ou a Itália por exemplo, a percentagem é de 54% e 50% respectivamente, apesar de tudo bem mais baixa que o indicador português, 97%.

Precisamos de insistir nos processos de mudança relativa ao acolhimento, à adopção, ao funcionamento e calendário dos processos de decisão sobre as crianças que vivem em circunstâncias familiares adversas.

Retomando o Relatório do Conselho Nacional para a Adopção é de considerar um outro dado relevante. Contrariamente à diminuição que se fazia sentir desde 2018, em 2022 aumentou o número de crianças que estando em processo de adopção foram devolvidas, 14 crianças, 7,7% do total de crianças envolvidas.

Esta situação, crianças com diferentes idades serem devolvidas à estrutura de acolhimento depois de iniciado um processo de adopção, pela qual algumas passam mais do que uma vez é absolutamente devastadora.

Como relatei em algumas ocasiões em que aqui abordei esta questão, os motivos para esta “devolução” passam por situações que assim podem aconselhar, maus-tratos da família adoptante por exemplo, mas também por justificações como “não correspondem às expectativas”, “'venderam-me gato por lebre” ou que atrapalham as rotinas com os animais de estimação da família.

Relembro que há alguns anos o DN, num trabalho sobre o mesmo tema, citava o caso em que uma criança foi devolvida e trocada por outra porque não se adaptava ao cão da família. Outros casos de devolução envolvem dificuldades de adaptação a outros elementos da família ou a questões económicas.

Vejamos com mais atenção. Uma criança que por qualquer razão não tem uma família, está numa instituição, envolve-se num processo de adopção, entra numa família que entende passar a ser a SUA família, deve sentir-se num caminho bonito e prometedor. Passado algum tempo é devolvida, provavelmente, sem perceber porquê e vive uma, certamente mais uma, devastadora experiência de abandono e rejeição com efeitos que não podem deixar de ser significativos. É muito sofrimento.

Como é evidente, admito que em circunstâncias excepcionais o processo possa ser interrompido, mas, insisto, só mesmo numa situação limite depois de esgotados os dispositivos de apoio às famílias adoptantes.

Não sei se foi alterada, mas a lei permite o período de transição e um período de pré-adopção. Há uns anos em conversa sobre esta questão com o então presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, Juiz Armando Leandro, este reconhecia que a devolução não tem de ser baseada em "critérios necessariamente válidos".

Os serviços competentes têm-se esforçado para que estas situações se minimizem quer através da adequação das famílias candidatas, quer nas orientações e apoios para a optimização dos processos de adopção, mas, algumas situações continuarão certamente a acontecer.

Voltando ao tão apregoado "superior interesse a criança", é difícil imaginar o que se passará na cabeça de um miúdo que passa anos a construir uma ideia de família, a certa altura entra numa família a que chama sua e de repente dizem-lhe que volta a estar só, na instituição, porque ... não se dá bem com o cão ou não corresponde às expectativas. Que sentirá a criança?

Porquê? Não presta? Não a querem? ...

Mas as crianças, Senhores?

Deixem-me ainda recordar de novo uma expressão que ouvi em tempos a Laborinho Lúcio num dos encontros que tenho tido o privilégio de manter com ele. Dizia Laborinho Lúcio, "só as crianças adoptadas são felizes, felizmente a maioria das crianças são adoptadas pelos seus pais”. Na verdade, muitas crianças não chegam a ser adoptadas pelos seus pais, crescem sós e abandonadas. No entanto, é imperativo criar uma oportunidade para que as crianças "desabrigadas" possam ser adoptadas, possam ser felizes.

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