AS MINHAS CONVERSAS POR AÍ

sábado, 22 de abril de 2023

JÁ NÃO AGUENTO

 Os comportamentos autolesivos observados em crianças, adolescentes e jovens é uma das questões mais inquietantes para quem por qualquer razão está ligado ao universo dos mais novos. Quando uma criança ou adolescente provoca sofrimento severo a si próprio toda a comunidade perceberá que o mal-estar é enorme e importa estar atento e intervir.

O Expresso aborda esta questão a partir dos dados do mais recente estudo, "A Saúde dos adolescentes Portugueses", o de 2022, que integra o estudo internacional "Health Behaviour in School-aged Children", da responsabilidade da OMS, realizado de quatro em quatro anos e coordenado em Portugal pela excelente equipa da Aventura Social, de que destaco Margarida Gaspar de Matos e Tânia Gaspar. Na altura da sua divulgação também aqui registei estes e outros dados que justificam reflexão.

O estudo envolveu 5809 alunos do 6.º, 8.º e 10.º anos, uma amostra representativa destes anos de escolaridade. A natureza e diversidade dos dados encontrados justificará várias reflexões, mas hoje consideremos os indicadores relativos a adolescentes que se magoam a si próprios num quadro de mal-estar. Este comportamento é referido por 24,6% dos inquiridos, maioritariamente raparigas e mais no 8º ano. Em 2018, último estudo, a percentagem era de 19,6%. Trata-se, de facto, de um dado inquietante e reflexo do mal-estar em muitos adolescentes que é coerente com outros indicadores do trabalho.

Alguns estudos internacionais apontam para cerca de 10% da população em idade escolar com comportamentos de automutilação pelo que os dados encontrados em Portugal são, de facto, preocupantes. Conheceremos melhor a situação comparativa quando estes dados forem cruzados com os de outros países envolvidos

Na verdade, os comportamentos de automutilação em adolescentes são mais frequentes do que muitas vezes pensamos e devem ser encarados com preocupação. E os casos que vão sendo conhecidos são apenas isso, os conhecidos, a ponta do iceberg.

Num estudo da Universidade de Coimbra, creio que divulgado em 2017, que envolveu 2.863 adolescentes, entre os 12 e os 19 anos, a frequentar o 3.º ciclo e o ensino secundário em escolas do distrito de Coimbra se referia que cerca de 20% afirma já tinha desencadeado comportamentos autolesivos pelo menos uma vez na vida.

É justamente por esta dimensão e as suas potenciais consequências que me parece fundamental entender tudo isto como um sinal muito forte do mal-estar que muitos adolescentes e jovens sentem e a verdade é que em muitas situações não conseguimos estar suficientemente atentos. Este mal-estar e o que daí pode emergir decorrem de situações de sofrimento com as mais diversas origens, relações entre colegas, bullying por exemplo nas suas diferentes formas ou relações degradadas na família que facilitam a instalação de sentimentos de rejeição, ausência de suporte social que serão indutoras de comportamentos autodestrutivos.

Começa também a surgir como causa deste mal-estar a dificuldade que algumas crianças e adolescentes sentem em lidar com situações de insucesso escolar. Estas dificuldades são frequentemente potenciadas pela pressão das famílias e pelo nível de competição que por vezes se instala.

Os tempos estão difíceis e crispados para muitos adultos e também para os miúdos a estrada não está fácil de percorrer.

Como disse, alguns vivem, sobrevivem, em ambientes familiares disfuncionais que comprometem o aconchego do porto de abrigo, afinal o que se espera de uma família.

Alguns percebem, sentem, que o mundo deles não parece deste reino, o mundo deles é um espaço, nem sempre um espaço físico, insustentável que, conforme as circunstâncias, é o inferno onde vivem ou o paraíso onde se acolhem e se sentem protegidos, mas perdidos.

Alguns sentem que o amanhã está longe de mais e que um projecto para a vida é apenas mantê-la ou que nem isso vale a pena.

Alguns convencem-se ou sentem que a escola não está feita para que nela caibam e onde podem ser vitimizados.

Alguns sentem que podem fazer o que quiserem porque não têm nada a perder e muito menos acreditam no que têm a ganhar fazendo diferente.

Alguns transportam diariamente um fardo excessivamente pesado e que os torna vulneráveis.

Depois das ocorrências torna-se sempre mais fácil dizer qualquer coisa, mas é necessário pois muitos destes adolescentes e jovens terão evidenciado no seu dia-a-dia sinais de mal-estar a que, por vezes, não damos atenção, seja em casa ou na escola, espaço onde passam boa parte do seu tempo. Aliás, alguns testemunhos ouvidos no âmbito dos recentes e mediatizados casos mostram isso mesmo.

De facto, em muitos casos, designadamente, em comportamentos autolesivos ou estados mais persistentes de tristeza e isolamento, pode ser possível perceber sinais e comportamentos indiciadores de mal-estar. Estes sinais não podem, não devem, ser ignorados ou desvalorizados. É também importante que pais e professores atentos não hesitem nos pedidos de ajuda ou apoio para lidar com este tipo de situações.

O sofrimento e mal-estar induzem uma espiral de comportamentos em que os adolescentes causam sofrimento a si próprios o que promove mais sofrimento num ciclo insuportável e com níveis de perplexidade, impotência e sofrimento para as famílias também extraordinariamente significativos.

Não, não tenho nenhuma visão idealizada dos mais novos nem acho que tudo lhes deve ser permitido ou desculpado. Também sei que alguns fazem coisas inaceitáveis e, portanto, não toleráveis. Só estou a dizer que muitas vezes a alma dói tanto que a cabeça e o corpo se perdem e fogem para a frente atrás do nada que se esconde na adrenalina dos limites.

Alguns destes miúdos carregam diariamente uma dor de alma que sentem, mas nem sempre entendem ou têm medo de entender.

Espreitem a alma dos miúdos, sem medo, com vontade de perceber porque dói e surpreender-se-ão com a fragilidade e vulnerabilidade de alguns que se mascaram de heróis para uns ou bandidos para outros, procurando todos os dias enganar a dor da alma.

Eles não sabem, eu também não, o que é a alma. Um adolescente dizia-me uma vez, “dói-me aqui dentro, não sei onde”.

Muitos pais, mostra-me a experiência, sentem-se de tal forma assustados que inibem um pedido de ajuda por se sentirem impotentes e perplexos.

O resultado de tudo isto pode ser trágico e obriga-nos a uma atenção redobrada aos discursos e comportamentos dos adolescentes e dos jovens."

Desculpem a insistência nestas questões, mas é necessário.

Sem comentários:

Enviar um comentário