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sexta-feira, 25 de novembro de 2022

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, CRIANÇAS E ADOLESCENTES

 Retomo uma questão que frequentemente aqui abordo, a violência doméstica, mas hoje numa perspectiva que apesar de alguns avanços continua a ter contornos inquietantes, a situação das crianças e adolescentes envolvidas em contextos de violência doméstica.

De acordo com o relatório anual de 2021 da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, as situações que envolveram violência doméstica estavam entre as que maior subida tiveram relativamente a 2020.

No Público de hoje trata-se a dramática situação ocorrida em 2020 de uma criança de nove anos que experienciou diversos episódios de violência doméstica que culminaram com o assassinato da mãe e o suicídio do pai, tendo a criança assistido a esta tragédia.

O relatório desta situação foi elaborado pela Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica que sublinha o facto da criança não ter sido considerada vítima de violência doméstica e que a Comissão de Protecção de Crianças Jovens terá desenvolvido uma intervenção “claramente desadequada” pois não “conseguiu identificar e caracterizar a situação grave de perigo em que esta criança se encontrava, não percepcionou a agudização do conflito familiar em que estava envolvida, não a tratou realmente como um autónomo sujeito de direitos e não se mostrou habilitada a definir uma linha de rumo capaz de garantir a sua protecção e promoção do desenvolvimento”. Uma avaliação no mesmo sentido é dirigida à equipa de saúde familiar que conhecia também a situação.

A imprensa de hoje refere um trabalho de uma equipa do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade Lusófona que envolveu 1205 crianças filhas de 1010 mulheres que nos anos de 2014, 2015 e 1016 apresentaram queixa por violência doméstica.

Em termos sintéticos, a taxa de retenção no seu trajecto escolar é cinco vezes a superior à restante população escolar, revelam mais perturbação da sua saúde mental e mobilizam mais comportamentos ilícitos em contexto escolar, maiores níveis de consumo de álcool ou drogas. Trata-se de facto, de um quadro preocupante e indicador do caminho que importa percorrer.

Em Setembro de 2021 foi formalmente anunciada a constituição de 31 equipas para apoio a crianças e jovens vítimas de violência doméstica. Estas equipas integram as Respostas de Apoio Psicológico para crianças e jovens atendidos ou acolhidos na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.

Importa ainda registar que em Julho de 2021 foi finalmente aprovado o estatuto de vítima para as crianças e jovens em contexto de violência doméstica algo reclamado de há muito pelo Instituto de Apoio à Criança e pela a Ordem dos Advogados.

Para além de sublinhar os danos potenciais que esta exposição pode provocar nas crianças ou adolescentes, como o estudo agora divulgado mostra de forma bem elucidativa, gostava de chamar a atenção para um outro potencial efeito nas crianças que assistem a episódios, por vezes violentos, de violência doméstica, os modelos de relação pessoal que são interiorizados. Aliás, nos últimos anos tem-se verificado que a maioria das queixas de violência doméstica é apresentada por mulheres jovens o que permite pensar em crianças pequenas que assistirão a estes episódios e nas potenciais consequências. Nesse sentido, operacionalização das equipas de apoio foi uma boa notícia e desejo que o trabalho esteja em desenvolvimento.

Numa avaliação por defeito aos casos participados de violência doméstica, estima-se que cerca de um terço serão testemunhados por crianças. Se considerarmos que existem muitíssimas situações não reportadas, pode concluir-se que estas testemunhas, por vezes também vítimas, serão em número bem mais elevado.

Este quadro lembra o velho adágio "Filho és, pai serás", ou seja, num processo de modelagem social muitas crianças tenderão a replicar ao longo da sua vida, em adultos também, os comportamentos a que assistiram e que, tal como podem produzir efeitos traumáticos, poderão adquirir aos seus olhos, infelizmente, um estatuto de normalidade.

Não é certamente por acaso que estudos recentes em Portugal evidenciaram números elevadíssimos de violência em casais de jovens namorados universitários, uma população já com níveis de qualificação significativos.

Neste contexto e com o objectivo de contrariar uma espécie de fatalidade em círculo vicioso, os miúdos assistem à violência doméstica, replicam a violência, a sociedade é violenta, quando crescem são violentos em casa, e assim sucessivamente, importa que os processos educativos e de qualificação sublinhem a dimensão, a formação cívica e o quadro de valores.

Não é nada de novo, a afirmação desta necessidade.

A questão é que a intervenção junto das famílias e a tentativa de contrariar dinâmicas disfuncionais, violência doméstica por exemplo, não dispõe dos meios e recursos suficientes e os riscos para crianças e jovens são significativos.

Como afirma, Benedict Wells em “O fim da solidão”, “Uma infância difícil é como um inimigo invisível. Nunca se sabe quando nos vai atingir”.

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